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O encenador

Como diretor, ele combateu a “mercantilização” e o “aburguesamento da arte”, opondo-se a tudo que fosse “imitação da vida”, valorizando a interpretação dos atores

TEXTO Anco Márcio Tenório Vieira

01 de Julho de 2017

O encenador Hermilo Borba Filho

O encenador Hermilo Borba Filho

Foto Acervo de família/cortesia

[conteúdo na íntegra | ed. 199 | julho 2017]

Criado em 1940, o Teatro do Estudante de Pernambuco (TEP) tinha um papel secundário na cena teatral do Recife, quando Hermilo Borba Filho (1927–1976) assumiu, em 1945, a sua direção. Para refundá-lo, Hermilo escreve um manifesto que não só orienta, a partir de então, os passos do TEP, mas também muitas das reflexões que irão calçar, a partir de 1947, a sua coluna diária Fora de Cena, na Folha da Manhã (Recife) e, posteriormente, em 1960, a sua atividade de encenador no Teatro Popular do Nordeste (TPN). Uma das preocupações desse manifesto, e que terminou por se tornar um cavalo de batalha para Hermilo, é denunciar os “maiores entraves” do nosso teatro: o seu “aburguesamento”, a sua “mercantilização” e a sua dramaturgia irrelevante. 

Para reverter esse estado de coisas, Hermilo defende um teatro “genuinamente brasileiro” que se alimente de assuntos nacionais e possa revelar a “potencialidade” das narrativas que povoam o imaginário popular. Entremeando o campo da dramaturgia com o da encenação no combate à “mercantilização” e ao “aburguesamento da arte”, ele se opõe tanto às obras que, quando levadas ao palco, buscam “imitar ou reproduzir a vida” (o teatro, para Hermilo, não é a continuação da vida no palco), quanto aos cenários que, dentro da arquitetura cênica, se sobrepõem aos demais elementos cênicos. O que se deve valorizar é a interpretação dos atores, defendia; o cenário, no caso, deve apenas sugerir ou promover a imaginação do expectador.

Buscando efetivar uma literatura dramática “genuinamente brasileira”, o TEP lança, em 1946, o Concurso de Peças do Teatro do Estudante. Em seu regulamento, lemos que “Os autores deverão pensar alto e livremente, apresentando, de preferência, os problemas brasileiros, através de personagens e situações, sem medo ou vergonha deles, e aproveitando os motivos humanos e telúricos regionais do Brasil”. Alinhado com o Movimento Regionalista de 1926, o TEP entrega a presidência da Comissão Julgadora a quem vinha pensando o Brasil a partir dos conceitos de Tradição, Região e Modernidade: Gilberto Freyre. Apesar de não obter o voto de Freyre, Uma mulher vestida de sol, de Ariano Suassuna, fica com o primeiro lugar; José de Moraes Pinho leva o segundo prêmio, com O poço.

A iniciativa do TEP deu frutos. Entre 1945 e 1960 (ano de criação do TPN), o Teatro do Nordeste (nome dado por Paschoal Carlos Magno às peças escritas por nordestinos e que tinham como matéria fabulatória o universo humano e cultural da sua região, apesar da diversidade ideológica e estética dessas obras) revelou um número significativo de novos autores, a exemplo de Aristóteles Soares, José de Moraes Pinho, Sylvio Rabello, Isaac Gondim Filho, José Carlos Cavalcanti Borges, Osman Lins, Luiz Marinho, Aldomar Conrado, Ariano Suassuna e Hermilo Borba Filho.

No entanto, se não foram apenas os “motivos humanos e telúricos regionais” que irmanaram Freyre e Hermilo, mas também as suas aversões por uma arte fundada nas estéticas realista e naturalista, Hermilo, atento à carpintaria do teatro, sabia que para perfazer-se um teatro “genuinamente brasileiro” era necessário ir além desses mesmos “motivos humanos e telúricos”. Não bastava constituir uma dramaturgia “genuinamente brasileira” nas suas substâncias de expressão e nas suas formas dramáticas, fazia-se também necessário se voltar para um novo modo de encenação. Modo de encenação esse que o Teatro do Nordeste só irá conhecer com o TPN: seja na sua primeira fase, entre 1960 e 1963; seja na segunda, entre 1965 e 1970; e, por fim, entre 1974 e 1975, quando o pano cai em definitivo.

HOMEM ORQUESTRA
Como nota Luís Augusto da Veiga Pessoa Reis em livro definidor sobre o teatro e a critica teatral hermiliana – Fora de cena, no palco da modernidade (2008) –, o amadurecimento teórico do Hermilo encenador se deve, em grande parte, ao período em que ele esteve à frente da sua coluna Fora de Cena. Nessas páginas, ele sistematizou muitas das suas reflexões sobre a dramaturgia europeia e americana; meditou sobre as principais teorias e críticas teatrais do seu tempo, a exemplo do teatro épico e anti-ilusionista de Bertold Brecht; ponderou sobre as encenações levadas aos palcos do Recife (texto, direção, cenário, figurino, maquiagem, iluminação, sonorização, atores); declinou a sua opinião sobre a dramaturgia brasileira e, principalmente, sobre os “espetáculos populares” do Nordeste. Assim, o Hermilo que funda com Ariano Suassuna, em 1960, o TPN, é um Homem Orquestra que tem pleno domínio da teoria dramática, da crítica teatral, da história do teatro, da dramaturgia, da cultura popular e, como se não bastasse, da linguagem do romance, do conto e da novela.

Defendendo que os “espetáculos populares”, como o bumba meu boi, o fandango, o mamulengo e o pastoril, devem ser encarados em seus aspectos cênicos e não como meras manifestações folclóricas – pois só assim eles poderiam “indicar aos eruditos certos caminhos que até então não haviam sido explorados” na construção de uma dramaturgia ou de uma encenação erudita brasileira de larga compreensão e “aceitação popular” (uma dramaturgia e uma encenação que se inscrevessem na tradição do “teatro popular” ocidental ou ocidentalizado) –, ele, Hermilo, dá ao Teatro do Nordeste um dos procedimentos cênicos que lhe faltavam para dar conclusão a um teatro “genuinamente brasileiro”: a encenação. Não só: como se tudo dependesse dele, Hermilo cria uma encenação que se revela de vanguarda ao transigir, de modo inovador, as formas dos “espetáculos populares” com a forma do anti-ilusionismo de Brecht.

Frise-se, no entanto, que esse teatro de “aceitação popular” que o TPN almejava não era sinônimo de algo “formalístico”, “sem comunicação com a realidade”, “frívolo,” “estéril”, como era a arte “burguesa” e “mercantilizada”; muito menos um teatro “fácil”, “meramente político”, “gratuito”, “alistado”; ou mesmo um teatro que fosse uma mera “concepção de mundo das classes subalternas”, como defendiam, à época, tanto o Movimento de Cultura Popular (MCP), no Recife, quanto o Centro Popular de Cultura (CPC), da União Nacional dos Estudantes (UNE). Para Hermilo e Ariano, o “teatro popular” era aquele que se inscrevia na melhor tradição do teatro ocidental ou ocidentalizado: os trágicos gregos, a comédia latina, o teatro religioso medieval, elisabetano e do século de ouro espanhol; as obras de Molière, Gil Vicente, Goldoni, Goethe e Schiller; e os brasileiros que realizavam um “teatro dentro da seiva popular coletiva”: Aristóteles Soares, Sílvio Rabelo, José Carlos Cavalcanti Borges, Osman Lins, José Morais Pinho, Ariano Suassuna e Hermilo Borba Filho.

Assim, a palavra popular perde, aqui, a concepção de manifestação cultural feita pelo povo, ou mesmo das formas artísticas que traduzem uma visão de mundo das camadas populares, como são os “espetáculos populares”, e ganha outro sentido: o de uma obra erudita que encerrava “a visão épica e coletiva do mundo”. No caso, uma arte erudita de “aceitação popular”; que contém temas que devem ser compreendidos e discutidos pelo povo; que não impõe “uma visão pré-determinada do mundo”; e que pulsa com a sua carne e o seu sangue.

ANTI-ILUSIONISTA
Munido dessa nova concepção de popular, Hermilo vai transigir três conceitos distintos: o de “teatro popular”, o de “espetáculos populares” e o de teatro épico e anti-ilusionista de Bertolt Brecht. Em um primeiro momento, ele percebe que tanto os “espetáculos populares” quanto o teatro épico de Brecht estão, cada um ao seu modo, assentados em uma mesma forma de encenação anti-ilusionista. Em seguida, ele vai buscar ler os procedimentos formais do teatro anti-ilusionista de Brecht pelos procedimentos formais dos “espetáculos populares”, e vice-versa. Nesse entremear dos haveres de um e de outro, Hermilo vai delineando as bases do seu “teatro popular”. Vamos por etapas.


Estudando os “espetáculos populares”, a exemplo do bumba meu boi, Hermilo nota que dois pontos nele se destacam: primeiro, “o ator do bumba é uma mistura de improvisação e tradicionalismo”; segundo, o espectador da “dança dramática” também se faz partícipe do espetáculo. Hermilo ainda nota que o “lugar da ação” dramática em que ocorre o espetáculo do bumba meu boi (caracterizado por uma “ausência total de decoração”) é o mesmo em que ocorre a representação. Representação essa que envolve, como “parte do jogo”, um diálogo entre os atores e um público que “grita piadas, aplaude, tudo isso sem que o interesse diminua”. Esse transigir, esse diálogo concomitante entre espaço cênico, ação dos atores, música, dança e público, fratura o ilusionismo do teatro clássico e perfaz o que Hermilo passa a chamar de “espetáculo total”. Não só: relacionando esse espetáculo dramático com o “teatro popular”, Hermilo nota que neles os atores “improvisam como na comédia italiana, usam travestis como no teatro elisabetano, usam máscaras como no teatro grego, dançam como no teatro oriental, fazem acrobacias como no teatro chinês, cantam como nas óperas, dão pancadas como nas velhas farsas medievais”.

No que diz respeito ao método anti-ilusionista de Brecht, os atores, ao modo do corifeu do teatro clássico, adotam um “efeito de distanciamento” em relação aos seus personagens. Quando se faz necessário, interrompem a ação dramática e se dirigem diretamente ao público que, por sua vez, é levado a experimentar o objeto da representação com uma sensação de “estranheza”. Assim, ao interromper a ação, os atores saem dos seus personagens fictícios, colocam em suspensão os seus personagens, e, de modo crítico, comentam com o público presente uma dada situação ou mesmo algumas ideias que foram colocadas no decorrer da peça. Esse teatro que, de certo modo, encerra um caráter didático e pedagógico, vem substituir o “conflito” da forma dramática clássica pela ideia de “contradição”, evitando, assim, que a peça tenha um desfecho conclusivo.

Entremeando os haveres dos procedimentos formais de Brecht com os haveres dos “espetáculos populares”, Hermilo vai perseguir um anti-ilusionismo que não se dá nem no distanciamento do ator com o seu personagem, nem com o público espectador, muito menos na própria ação dramática, mas, sim, inscrevendo-se na própria constituição da forma dramática. Dois bons exemplos são as encenações de A pena e a lei, de Ariano Suassuna, em 1960, e de O inspetor, de Nikolai Gogol, em 1966.

Peça em três atos, A pena e a lei é composta a partir do entremez para mamulengos – Torturas de um coração –, escrita em 1951. O primeiro ato é A inconveniência de ter coragem; o segundo, O caso do novilho furtado; e o terceiro, Auto da virtude da esperança. No primeiro ato, os atores (a matéria animada) interpretavam os seus papéis como bonecos do mamulengo (a matéria inanimada); no segundo ato, ora os atores atuavam como humanos, ora como bonecos; por fim, no terceiro ato, os atores agiam apenas como humanos. Aqui, nessa encenação, Hermilo toma o teatro de mamulengo não em sua substância de expressão, mas em sua forma dramática. Assim, o anti-ilusionismo se fazia manifesto ao reverter o aguardo do público: desejando encontrar uma encenação de mamulengo (no caso, uma matéria inanimada – o boneco – que finge ser matéria animada, um humano), ele, o espectador, se deparava com a matéria animada fingindo ser matéria inanimada.

No caso de O inspetor, o ator, para representar os seus personagens, lançava mão das máscaras como os brincantes dos espetáculos populares. Ainda ao modo desses brincantes, o ator trocava de máscaras e, por decorrência, de personagem na frente do público e, caso assim desejasse (e a ocasião merecesse), dirigia-lhe a palavra, fraturando todo o ilusionismo do espetáculo.

Com essas encenações, Hermilo reitera o que dissera no Manifesto do TEP: primeiro, o teatro não era imitação ou reprodução da vida. Segundo, o cenário, tal como nos “espetáculos populares”, deve ser secundário na arquitetura cênica, pois o lugar em que se representa é também o lugar da ação. Sendo secundário, o cenário deve apenas sugerir, instigando a imaginação do espectador, convidando-o a criar ou perfazer o que lhe é insinuado pela peça. Terceiro, é a interpretação, as ações e os diálogos dos atores que devem ser valorizados em uma encenação.

Ao contrário do ator brechtiniano, que mantém um “efeito de distanciamento” em relação ao objeto da representação como forma de chamar a atenção do espectador para determinada passagem da peça e, por sua vez, “conscientizá-lo” da necessidade de se posicionar criticamente ante a realidade que o circunda, Hermilo prefere chamar a atenção do espectador para o texto, para o modo como os personagens interpretam cada uma das suas falas e, por sua vez, para a própria ação dramática. Há, no seu anti-ilusionismo, um tênue limite entre o ilusionismo do texto (promovido pela sua ficcionalidade) e o anti-ilusionismo que é promovido tanto pelo lugar em que se representa a ação quanto pelo cenário que deve apenas sugerir; tanto pela troca de máscaras (logo, de personagens) realizada pelos atores no lugar em que se desenvolve a ação dramática quanto pelo ator que finge ser um boneco inanimado e, ato após ato, abandona o fingimento e torna-se apenas e somente matéria animada. Ou seja, na encenação hermiliana texto e interpretação contêm, em si, e quando tensionados, elementos suficientes para que possam provocar alguma reação no espectador; reação que prescinde do “efeito de distanciamento”, como queria Brecht.

Ao perceber que a arte é essencialmente forma (seja como estilização das ideologias do seu tempo, seja como um conjunto de regras que dispõem, integram e organizam os elementos da encenação), e que seria somente pelo entremeio das diversas formas dramáticas (eruditas ou populares) que se poderia dar ao Teatro do Nordeste uma encenação inovadora, de vanguarda, Hermilo pôde escapar tanto das estéticas teatrais que encaravam a cultura popular como folclore (caminho que muitos da sua geração terminaram por sucumbir) quanto das encenações paternalistas, “demagógicas”, que vivem de promover a “mercantilização” dos “espetáculos populares”. 

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