CONTINENTE Qual foi o ano em que você começou a realizar o documentário?MARIANNA BRENNAND Cheguei aqui no final de 2002. Eu me formei em cinema na Califórnia e vim direto para o Recife, para fazer o documentário. Nas conversas, ele me mostrou o diário e me entregou os manuscritos. Na verdade, eram transcritos. Ele já tinha passado tudo para o Word, com a ajuda de uma secretária. Após uma pré-edição, me entregou esse material, que serviu como guia para mim, como um mapa para construir a história de Brennand e contar um pouco sobre sua vida e obra no filme. Nas nossas conversas, ele me demonstrou que o seu grande sonho era que esse diário fosse publicado em vida. Eu acabei assumindo esse compromisso, que, quando eu terminasse o filme, esse seria um projeto que levaria à frente.
CONTINENTE E já ali você leu todo esse material?
MARIANNA BRENNAND Li muito. Na época do filme, para construir o documentário, a narração, que é toda baseada no diário. Ela não tem nenhum trecho literal, mas usei o conteúdo do diário, o espírito do Brennand que está ali dentro para construir uma narração que é muito íntima, que tenta fazer um retrato psicológico dele, sentimental. Tem trechos que sei de cor. E agora, para editar, a gente passou por um processo de dois anos editando o livro, inúmeras revisões, formatação.
CONTINENTE Como foi esse processo?
MARIANNA BRENNAND Foi um processo em conjunto. Sempre consultando. Brennand me deu muita liberdade. Mas, ao mesmo tempo, deixou muito claras as coisas que ele queria. Ele queria manter fiel que era uma obra literária. Às vezes, as pessoas perguntavam, “mas não tem desenho no diário, não tem ilustração?”. A gente tem isso tudo no projeto gráfico. A capa tem um design lindo, uma estampa gráfica que a gente fez a partir de obras dele, mas o miolo do livro, mesmo, ele queria que fosse fiel ao diário. É literatura, realmente. Então, não tem ilustração. Só no volume quatro, mas faz parte da narrativa. O narrador encontra os manuscritos. Por isso que eles estão lá no meio do diário. Sabia que não podia ilustrar o discurso dele. E eu queria fazer uma coisa que remetesse um pouco ao passado, que remetesse às referências dele, dos livros, dos diários que ele leu. Mas que, ao mesmo tempo, tivesse uma pegada contemporânea, moderna. As ideias que eu tinha, preparava alguma coisa, mostrava para ele. Geralmente, ele aprovava. Tivemos um designer maravilhoso, que trabalhou comigo, que é o Flavio Flock, que tinha feito toda a arte gráfica do documentário. Ele conhecia o universo de Brennand e o diário.
CONTINENTE Quando você fala em edição, a parte em que ele participou foi a do texto, ou ele chegou a suprimir trechos?
MARIANNA BRENNAND Na verdade, Brennand se editou ao longo da vida. Esse processo todo de supressão, a grande parte aconteceu antes de a gente começar a fazer a diagramação, mas, ao longo dos dois anos, ele mexeu numa coisa ou outra, sempre que fazíamos uma revisão, ele dava uma lida, fazia um ajustezinho. Agora, como editora, “acho que a gente tem que cortar isso”. Isso eu não fiz. O diário é o que ele escreveu e o que não existe no diário foi também ele que cortou.
CONTINENTE Você tem ideia do quanto já foi descartado por ele do que escreveu?
MARIANNA BRENNAND Na verdade, os originais ainda existem. Quando ele se edita, corta no próprio caderno, tem folha dele mesmo riscando, mas isso num processo de escrita diária, quando você escreve, “ah, não quero mais isso”. A partir do momento em que ele passou para o computador, que já foi transcrito, acho que pouca coisa, o que ele eliminou mesmo, o grosso, foram esses anos, de 1963 a 1974 – ele pegou esses cadernos e queimou num fogo de cerâmica, para não ter nenhum vestígio do que ele tinha escrito nessa época.
CONTINENTE Agora, você já está acostumada com essa obra. Mas qual foi a impressão que teve dessa pessoa, que é da sua família, que você conhecia pelo lado afetivo, ao ler esse diário pela primeira vez?
MARIANNA BRENNAND Um grande artista. Fiquei impressionada. Primeiro, com a dedicação de uma pessoa muito fiel, muito certa do que quer, custe o que custar, apesar de todas as dificuldades, de todas as dúvidas que teve. Mas a certeza de que ele tinha de persistir nesse ideal, que era o fazer artístico, fosse pintando, fazendo cerâmica, restaurando a fábrica que pertenceu ao pai dele, de uma dedicação, de uma lucidez impressionante, e uma cultura que me deixou quase constrangida. Quando Brennand começou a escrever o diário, tinha 22 anos. Eu tinha 22 anos, quando voltei da Califórnia e comecei a ler. Fiquei me sentindo completamente iletrada, ignorante, porque ele já começa o diário com o volume de Guerra e paz, fala sobre o livro, disseca, tem o poder de associação, de crítica, do que lia, tudo o que já tinha lido, todos os escritores, todos os pintores, artistas que conhecia. Ele tinha uma cultura imensa e isso me impressionou. E impressionou também a maneira verdadeira como ele se colocou no diário. Eu senti uma grande responsabilidade de ter ali, em mãos, esse material. Na primeira vez em que eu li, tive certeza de que não poderia fazer um documentário sem incorporar alguma coisa do diário. Uma coisa é o depoimento dele, a obra dele, outra é o sentimento dele, o que ele escreveu.
CONTINENTE Qual é o diálogo dessa publicação com o documentário?
MARIANNA BRENNAND O documentário foi todo inspirado pelo clima do diário, pelo Brennand que eu vi ali, como a narração do filme foi construída a partir disso, do que eu sentia que eram as preocupações dele, que eram as suas questões. Então, desde o início, em que ele inaugura uma obra e não tem ninguém, e aí ele entra num táxi e foge para a oficina, que é o refúgio dele, e o taxista diz que isso aqui parece o Egito, um lugar misterioso; o sonho dele de que a oficina foi alagada e de que vai perder tudo. Todas essas coisas são dilemas, preocupações e questões existenciais que eu senti que existiam no diário.
CONTINENTE Há um volume de que você goste mais?
MARIANNA BRENNAND Para fazer o documentário, dividi o diário em temas, “mulheres”, “citações”, “sexualidade”, “sagrado”, “pintura”, “escultura”, e o bom do diário é que ele é episódico, então é uma leitura muito densa, mas, ao mesmo tempo, é leve, porque você pode ler um pedacinho aqui, se você não quiser seguir uma cronologia.
CONTINENTE Ele voltou a escrever depois desse processo todo da publicação?MARIANNA BRENNAND Ele continua escrevendo. Para em 1999, porque já tinha escrito muito, durante 50 anos. Nos anos 1990, decide que vai escrever praticamente todo dia. Então, ele está numa atividade literária muito intensa. E já disse isso para mim, que isso o afastou da pintura, porque estava escrevendo demais e pintando menos. Mas acredito que ele termina realmente o diário. Ele dá o fechamento, não simplesmente para de escrever. E aí ele termina em 1999. Em 2006, que foi quando eu fiz o documentário, quando a gente terminou, ele voltou a escrever em 2007. Então, esse revirar, esse cascavilhar na vida dele de novo, ele repensando tudo, foi um processo muito intenso.
CONTINENTE O leitor pode entender esse livro também como uma autobiografia?
MARIANNA BRENNAND No caso de Brennand, é uma escrita reflexiva. Ele reflete sobre tudo, arte, pintura, a própria existência, a condição humana, os relacionamentos, é bem profundo. Se ele fizesse uma autobiografia, não iria conseguir colocar tanto. O gênero diário é muito raro. Tem muito do conhecimento dele. O Brennand é muito erudito e, ao mesmo tempo, é muito jovem. Sempre que alguém vem aqui pra entrevistá-lo, falar com ele, todo mundo sai com essa sensação. Ele já leu o livro novo de Ian McEwan, Enclausurado. Está assistindo a uma série de TV. Ele é muito atual. Olha para o passado, mas também tem os livros dele, tem as preferências dele, os escritores dele, aos quais sempre volta, mas ele é muito atual, lê o jornal todos os dias, assiste à televisão, vê filme. Todo mundo fica chocado, porque ele é muito atualizado.