“Uma vez, chegaram uma socióloga e uma antropóloga paulista aqui e meu diário estava aberto em cima da mesa. Uma delas me perguntou: ‘Mas, Brennand, você risca tudo o que escreve?’ Eu respondi: ‘Ora, a minha vida é toda rasurada, quanto mais um diário!’”, conta o artista Francisco Brennand, em tom de humor, sobre o diário mantido por ele há mais de 60 anos. Os cadernos – que foram não só rasurados, como rasgados, queimados e até abandonados por anos – ganham publicação em quatro volumes pela Inquietude, empresa de Marianna Brennand, sobrinha-neta do artista e diretora do documentário Francisco Brennand (2012), com o apoio da Cepe. A obra O nome do livro, considerada a maior do gênero diário já aparecida na literatura brasileira pelo poeta e ensaísta Alexei Bueno, que prefacia o primeiro volume do diário, mostra as inquietações de um artista e intelectual preocupado principalmente com questões estéticas, humanas e filosóficas. Como sugere Bueno tão adequadamente, Brennand se exibe, nos diários, com a “curiosidade múltipla e insaciável do homem da Renascença”.
Por se tratar de um diário e não de uma obra de caráter unicamente aforismático e teórico, é possível encontrar, nos escritos, acontecimentos insólitos e cômicos da vida do autor, como a visita dos filósofos Jean Paul-Sartre e Simone de Beauvoir ao Engenho São Francisco, na Várzea, em 1960; confissões de um amor profundo e duradouro pela poeta Deborah Brennand, com quem esteve casado por décadas; e também escritos que mostram a admiração de Brennand pelas mulheres, que se concretizou em experiências afetivas e sexuais que extrapolaram as fronteiras do casamento. As frustrações e decepções amorosas de relacionamentos com outras mulheres, contudo, não aparecem no diário, pelo simples fato de que o artista se encarregou de queimar todos os escritos que tratavam desses assuntos. É por isso que há lapsos nos diários entre 1963 e 1964, e em 1976, por exemplo. Ecos de anos que não foram contados – não porque não houvesse nada interessante ou importante a ser dito, mas porque Brennand, durante esse período, escreveu o que ele julgava necessário abandonar.
“Quando vim para cá, fiquei fascinado com o fogo nos túneis onde você coloca as peças. Os vagonetes vão andando pelo fogo por 12, 16 horas, mas sai tudo lá fora. Que coisa maravilhosa! Eu tinha uma série de diários que me desagradavam enormemente! Então, eu tive o prazer de vê-los serem queimados. Vi os livros se retorcerem como almas penadas”, conta Brennand, com humor. Na verdade, o artista não queria guardar súplicas e falar mal de alguma mulher após um rompimento, por isso resolveu queimar todas as lamúrias amorosas, que se tornavam tão pouco caras a ele quando perdiam a sua saturação, graças à passagem do tempo. “Escrevia como se eu tivesse razão, mas, na maior parte das vezes, não é você que tem sempre razão, só que você precisa viver 80 anos para descobrir isso. Você não deve absolutamente nem se explicar, nem se queixar, isso é um conselho de Disraeli, um político e escritor que sabia das coisas. Achei por bem queimar uma série de coisas”, justifica o artista.
Já o amor por Deborah é evidente nas narrativas iniciais de Brennand, em trechos como “gostaria de ter Deborah ao meu lado, cujos olhos sabem, com certeza, ver bem mais do que os meus…” e em outros momentos em que o artista mostra a admiração por quem ele considerava uma grande poeta. Segundo Brennand, ela, porém, não tinha consciência da própria grandiosidade como artista. A devoção por Deborah se harmoniza muito bem, no entanto, com trechos como “alguém pisa com sapatos femininos de salto alto no andar de cima e isso me predispõe ao amor” ou “mal levanto os olhos para apreciá-las e, quando o faço, é com a consciência de cometer grosseiro sacrilégio diante de tanto esplendor e tanta perfeição”, neste último trecho referindo-se às mulheres naturais de Gênova, na Itália, consideradas por ele “belíssimas mulheres, cujos perfis e olhos rasgados lembravam os frisos etruscos, pintados em Tarquínia, nas tumbas dos Leopardos e das Leoas”. Sobre o seu nada secreto interesse por prostitutas, Brennand chega a se referir a alguns encontros, mas sem entrar em detalhes.
O meu relógio anda certo, o que é de espantar. São 18h51min10s. Aguardo Janine. Ela mesma acaba de confirmar a sua aventura. (Seguramente, ela pensa assim, que está metida numa aventura.) Afinal de contas, a moça não passa de uma grue, mas que importa? Jamais tratei senão com rameiras. Tem sido o meu destino, a minha escolha perversa, o meu supremo deleite. (Vol. 3, p. 18)
É interessante perceber como o amor do artista pela poeta entra em uma equação harmoniosa com o interesse dele por outras mulheres, narrado de maneira mais explícita no documentário Francisco Brennand. A princípio, parece ser uma grande decisão publicar diários que revelam ao público essas intimidades não monogâmicas, mas Brennand as toma como parte de uma história de vida inevitável na construção da própria obra artística. “Essa minha relação com Deborah foi muito especial, atravessou a minha vida toda. Deborah foi a pessoa que me estendia a mão do perdão. Ninguém era capaz de me perdoar, nem minha família. Ela foi a única pessoa que conheceu a minha família de muito perto. Enfim, eu sempre a chamei ‘a minha mulher’. Agora, se eu não tivesse ‘abandonado o lar’, na verdade (para não ficar muito novela da Rede Globo), se eu não tivesse ‘arribado’, eu não teria realizado minha obra de artista. Talvez tivesse feito outra coisa, mas não aquilo que me exaltava. Foram importantes a liberdade, as extravagâncias, a libertinagem”, conta, sobre a sua licença para “pular a cerca”.
Francisco e Deborah Brennand. Foto: Acervo pessoal do artista
O lado “amante das mulheres” do ceramista nunca foi propriamente um segredo e pode-se dizer que esse comportamento foi elemento catalisador e motor criativo para o trabalho artístico de Francisco Brennand. Não é por acaso que a figura feminina é um elemento central de suas pinturas e obras em cerâmica: na série de 40 pinturas dedicadas à Chapeuzinho Vermelho, por exemplo, mulheres com chapéus vermelhos se insinuam para um lobo mau interessado, numa representação pictórica de uma espécie de jogo psicológico lascivo entre os dois personagens do conto de fadas; nas obras em cerâmica, as mulheres aparecem como seres nus, volumosos, de seios pontudos, quadris largos, de sexos proeminentes e nádegas agigantadas. Elas podem estar de pernas abertas em direção ao céu, na Oficina Cerâmica. Sem dúvidas, seria possível pintar e moldar tantas mulheres sem propriamente “vivê-las”, mas é importante questionar se as pinturas e esculturas, resultantes de um modo de vida contido por questões morais, não seriam medíocres do ponto de vista artístico.
Da série dedicada a Chapeuzinho Vermelho. Imagem: Reprodução
O PAI Brennand também revela um lado afetuoso de pai no terceiro volume dos diários, escritos entre 1990 e 1999. Por compreender a infância de sua filha mais nova, Helena Viktoria, o volume conta com uma série de breves relatos sobre as pequenas descobertas da filha e as frases extraordinárias que só as crianças sabem dizer com naturalidade. Como escreve no dia 9 de abril de 1991: “Todas as vezes em que se pronuncia a palavra culpa na frente de Helena Viktoria, ela diz: ‘Culpa? Não há culpa!’ Quem ensinou a filha a reproduzir um conceito tão temerário?”. As engrenagens de um sentimento tão devastador parecem desativadas, ainda que momentaneamente, na paisagem interna de um pai que percebe quanto vão é carregar um peso nas costas pelo que se fez. Através do amor pela filha também a ele se revelam os limites de sua capacidade de protegê-la de todo mal, devido à inevitável separação de ambos diante da morte.
De pronto, coloquei-a no meu colo, abraçando-a demoradamente com muita força, como se tentasse protegê-la de todo mal, para sempre. E, no entanto, eu não podia ignorar que o inferno não tardava a desabar sobre as nossas cabeças. Até quando eu estaria apto a reagir, ter voz ativa, presença física, enfim, permanecer a seu lado, defendendo-a no que fosse preciso? (Vol. 3, p. 16)
Outro episódio com a filha mais nova também revela um lado afetuoso paterno que é comovido – e desconstruído – pela criança. Narra em terceira pessoa: “Apontando para o vermelho, o azul e o amarelo, Helena Viktoria indaga se ele reconhece essas cores. ‘São cores primárias’, ela diz sorrindo”. Ensimesmado, ele não sorri, no entanto explica à filha que não se recordava de que alguém na sua idade (seis anos) tivesse lhe falado de um assunto tão importante. De modo ingênuo e desinteressado, a filha mais nova lembra a Brennand que, como pintor, ele jamais deveria se esquecer as cores primárias, lembrando-o que as elaborações sempre vêm dos princípios mais básicos. É claro que a criança também não eximiria Brennand de desenhar Os três porquinhos. Ele ainda os transforma em versões em cerâmica, para que neles a filha guarde moedas.
NARRATIVAS DE FORMAÇÃO Os diários de Brennand – embora tratem de questões afetivas múltiplas que dão pistas para que a obra do artista seja compreendida de modo mais profundo – concentram-se principalmente no que se mostra como uma narrativa de formação de um artista e intelectual dinâmico e voraz. Pode-se dizer que os diários lembram um bildungsroman (em português, “romance de formação”), um tipo de romance de tradição germânica que desenvolve, de modo detalhado, o processo de desenvolvimento filosófico, social, político, físico, moral ou psicológico de um personagem, geralmente desde a sua infância ou adolescência até um estado de maior maturidade (Os anos de aprendizado de Wilhelm Meister, de Goethe, e A montanha mágica, de Thomas Mann, são exemplos de Bildungsroman).
Diferentemente dos diários pessoais, que muitas vezes se restringem a registros prosaicos do cotidiano ou a desabafos, os diários de artistas como estes de Brennand se inserem numa tradição do relato de formação, como é possível observar na história da arte. “Há uma certa contradição nesse tipo de diário escrito por artistas, ligada ao fato de que, embora a maior parte desses diários sejam escritos para serem publicados na posteridade – e o artista, nesse caso, se considera alguém cuja vida merece ser lida –, há um certo segredo essencial nos diários. Nem no caso dos diários de pessoas anônimas, nem nos diários de artista se quer que alguém, a princípio, os leia. A contradição é que, quando chega a hora de ser publicado, o artista parece que se desapega desse pudor dos acontecimentos secretos da própria vida”, interpreta o crítico literário e professor da Universidade Federal de Pernambuco (UFPE) Anco Márcio Tenório Vieira.
Outras questões interessantes podem ser pensadas a partir dos diários de artistas: “Se o sujeito pensa em publicá-lo logo no início, ele já não o escreveria dando uma forma e um estilo para que ele se torne agradável a terceiros? Já não haveria um certo pudor e uma certa censura nos relatos pessoais? E no momento da digitalização que sempre há uma revisão e edição?”, problematiza Anco Márcio. Nos diários de juventude de Gilberto Freyre, por exemplo, há claramente uma revisão. No momento da digitalização, Freyre acrescentou partes, retirou outras e alguns nomes que, no original, estavam completos, ficaram apenas com as iniciais quando os diários foram publicados. Essas transformações do original e o possível pudor inicial na escrita dos relatos pessoais parecem atestar que, no final das contas, o gênero diário, mesmo quando publicado, mantém irrevogavelmente o pacto de confidencialidade do sujeito consigo mesmo.
TOLSTÓI, PICASSO, GAUGUIN Assim, os diários de Brennand se voltam principalmente ao relato do papel dos grandes mestres em sua formação, como normalmente se vê nos diários de artistas. As obras literárias dos russos Gógol, Dostoiévski e Tolstói, as pinturas de Picasso e de Balthus, as cerâmicas de Gauguin, as cores e as cartas de Van Gogh cumpriram papel fundamental na formação de Brennand. Inclusive as mulheres e os soldados de Guerra e paz, de Tolstói, lidos por Brennand durante a sua viagem de navio em 1949, do Brasil à Europa, parecem anunciar a existência futura das mulheres e soldados que ocupam hoje os terrenos da Oficina Cerâmica Francisco Brennand.
A leitura de Guerra e pazsituou-me em regiões fora do tempo, não só pela paixão que me é peculiar ao ler um livro, como também pela força narrativa de Tolstói, me fazendo voltar no tempo e no espaço a um mundo que eu já adivinhava eterno na sua servidão e horror. (…) As últimas considerações de Tolstói sobre a história, tendo como objeto a vida dos povos e da humanidade, são verdadeiramente obra de um gênio. (Vol. 1, p. 55)
As cerâmicas de Gauguin e de Picasso também foram fundamentais na guinada do artista da pintura à cerâmica. Embora tenha nascido em uma família de empresários do ramo da cerâmica e de colecionadores de arte, Brennand, quando jovem, nunca manifestou interesse em trabalhar com o material, apesar dos incentivos do pai. “Isso era uma herança de conceitos do século XIX que designava a arte como arte maior e menor. Tudo que não fosse pintado a óleo sobre tela era um ato invulgar, porque quem fez isso foram os pintores da Idade Média. Eles pintavam em retábulo, não em tela”, conta o artista. Apesar dos incentivos do pai e do contato próximo com Abelardo da Hora, que trabalhou na fábrica de cerâmica entre 1942 e 1944, Brennand, quando jovem, só se dedicou à pintura. Foi a Paris em busca dos mestres da pintura. Como escreve no diário durante os primeiros meses na capital francesa: “É como se o restante da cidade não existisse, a não ser em função da pintura”.
Devido às tortuosidades da vida, que parecem levar o sujeito exatamente a se defrontar com o que deve ser sua missão de vida, o que aconteceu foi que Brennand foi convidado pelo artista pernambucano Cícero Dias a ir a uma exposição de Picasso, logo nos primeiros dias em Paris. Sem saber do que tratava a exposição, Brennand se deparou com 300 peças de cerâmica de Picasso, que já era considerado um verdadeiro “monstro sagrado” na França. “Era como se eu estivesse diante de um tesouro desconhecido, porque as cerâmicas brilham, são esmaltadas e tinham formas lindas. Fiquei maravilhado e profundamente humilhado. Tinha 22 anos, trabalhava desde os 17 pintando e sempre menosprezei a cerâmica”, narra Brennand.
Autorretrato. Imagem: Reprodução
A possibilidade de trabalhar com cerâmica se transformou em decisão, após a descoberta pelo até então jovem pintor dos vasos de Gauguin, cujas raízes peruanas o teriam levado a fazer “cerâmicas maravilhosas”, como descreve Brennand. A admiração por Courbet, De Chirico, Delacroix e, principalmente, Balthus, é manifestada no diário. “Como um indivíduo que pode ter Gauguin como o máximo da pintura poderia gostar de Balthus, que reverenciava toda uma tradição da pintura italiana renascentista e deixava-se contaminar pelo mundo clássico? Era uma contradição! Apesar de mim, eu sou um espírito profundamente contraditório”, diz Brennand, tentando justificar os interesses múltiplos por diferentes tradições estéticas que só denunciam o aspecto voraz de um “homem da Renascença”, sujeito que vê na amplitude, e não na restrição, uma qualidade.
O que mais me agrada nos meus cadernos, nos quais tenho (talvez por razões obscuras) me empenhado, é a evidente e contínua acumulação de apontamentos contraditórios. Essas incoerentes narrativas devem confirmar um estado de espírito em sucessivas e quase infinitas mutações, logo – pelo menos em parte – são verdadeiras. Arruínam e sobretudo acusam a minha retidão, mas não destroem de todo o meu humor; antes o comprovam. (Vol. 1, p. 171)
Autorretrato. Imagem: Reprodução
CINEMA E MEMÓRIA Além da pintura, escultura, literatura e filosofia, o cinema também se mostra como um objeto de reflexão do artista. Brennand problematiza a falta de cuidado com a preservação de filmes, após ler uma notícia que dizia que cerca da metade dos filmes produzidos no mundo, desde a invenção do cinema até 1950, havia desaparecido. Escreve: “De há muito que eu desejava comentar o estranho desígnio das criaturas que, ao mesmo tempo se ocupando com esse tão antigo como inexplicável ritual das artes, implacavelmente contribui para destruí-lo”. Refletindo sobre a mesma questão da falta de cuidado com a preservação de obras de arte, em outro momento do terceiro volume dos diários, Brennand remete a uma cena do filme A barriga do arquiteto, de Peter Greenaway, que mostra um maníaco polonês que sistematicamente golpeava e arrancava os narizes das estátuas romanas para, em seguida, jogá-las no interior de uma sacola. “Ali estava expressa, em toda a sua terrível e patética contundência, a inutilidade de qualquer esforço em preservar as obras de arte num mundo de paixões insanas”, escreve. Ou, como escreve o historiador Luíz Nazário no artigo Holocausto da memória, também citado por Brennand, “A destruição sistemática do cinema revela tragicamente o desprezo que os homens em geral manifestam em relação aos seus próprios sonhos”.
Em outro momento, Brennand também lamenta o fato de que, no cinema, geralmente a ênfase da criação se dê apenas aos “mestres admiráveis atrás das câmeras”, sem que, nos créditos, se dê devida atenção aos outros profissionais que colaboram “para a expressividade de todo e qualquer bom cinema”. Para o artista, havia fotógrafos de primeiríssima categoria que ele sequer sabia quem eram, porque mal apareciam nos créditos.
Além dessas problematizações acerca do fazer e do preservar cinematográfico, Brennand destila um vasto repertório que só atesta uma cinefilia bastante refinada, sem deixar de dar o seu veredicto sobre cada obra fílmica citada: Piquenique na montanha misteriosa, de Peter Weir, é excelente;O idiota, de Akira Kurosawa, inspirada na obra homônima de Dostoiévski, só atesta que os japoneses podem e conseguem entender Shakespeare, mas não percebem nada do espírito russo; e Maluco genial, de Ronald Neame, cujo título em português viria, na sua opinião, de uma tradução cretina, conta com a atuação admirável de Alec Guinness. Brennand também não poupou Sociedade dos poetas mortos, também de Peter Weir. Para ele, uma disfarçada apologia do homossexualismo nos meios universitários anglo-americanos.
Embora a voracidade intelectual que absorve gregos e troianos como partes importantes de um todo seja positiva, e não necessariamente uma contradição, o que ocorre é que Brennand realmente se considera um ser contraditório, em diferentes aspectos além dos intelectuais. A referência ao seu signo astrológico sugere que os astros cumpriram um papel em sua personalidade. Como ele diz no diário: “é a minha sina e não há como consertar as minhas desigualdades, ou melhor dito, ambiguidades. Sou um geminiano”. Não é por acaso que, no terceiro volume dos diários, surge um alter ego chamado Nonato, que o contraria em tudo e que o chama de impostor. Além de Nonato, Brennand apresenta outros dois personagens imaginários: Viriata e o Dr. Intruso.
ESTRATÉGIAS LITERÁRIAS Por sempre ter tido o hábito de reescrever os diários, Brennand os modificava com a intenção de contar os acontecimentos da própria vida a partir de recursos literários. Nonato surge no início do terceiro volume dos diários para solucionar o que parece ser um conflito insolúvel vivido por Brennand entre vida e ficção, pois, para o artista, parece que a sua vida passa a depender das palavras, e não o inverso. Diz Nonato a Brennnand, como um conselheiro: “uma lhe veste melhor que a outra. As palavras são o seu uniforme habitual, ou melhor, são a sua máscara, a capa negra e o florete…”. Conflito resolvido, ainda que momentaneamente.
O alter ego Nonato se caracteriza, então, como uma pessoa que não só deseja contrariar Brennand, como também busca evitar o pior nas andanças “nem sempre muito seguras” do artista. “Nonato preenche de uma maneira exemplar este vazio que pode me levar, se não ao desastre, pelo menos ao descrédito”, escreve Brennand. E mais: Nonato chama-o de parvo, idiota, questiona-o sobre os diários, chama-o de alguém do século passado, com sarcasmo e “intrujice”. As incursões sobre as vidas fictícias de Nonato (que acaba se transformando em Renato), Viriata e Dr. Intruso ficam ainda mais intensas no quarto volume dos diários, escrito entre 2007 e 2013, no qual eles parecem ganhar proeminência sobre a vida do até então protagonista Francisco Brennand.
Outro recurso literário se vê no primeiro volume dos diários. É interessante perceber, por exemplo, que a mala enorme que o artista levou do Brasil à França em 1949, com panelas, víveres e roupas de inverno (Paris ainda passava por necessidades de abastecimento após a Segunda Guerra Mundial), tornou-se um fio condutor da narrativa que só encerra no final do primeiro volume dos diários. Uma saga que durou 10 anos. Tratava-se de uma mala enorme que não podia subir as escadas dos edifícios parisienses, que foi extraviada na ida para a França e que ganha um final imprevisível no desfecho do primeiro volume dos diários.
Bom, isso são considerações de alguém que se acha na obrigação de escrever um diário, cujo clímax foi alcançado no início desta narrativa com a preocupação do destino de sua grande mala, que no momento deve repousar no mais profundo dos porões desse navio. Em que posição foi colocada? Será que está na vertical ou na horizontal? De qualquer forma, ela ainda me incomoda. Em todos os instantes na presumível chegada definitiva a Cherbourg e na ação de retirada desse volume em direção ao comboio, que nos levará a Paris, recomeça a minha ansiedade de perder essa mala para sempre, como alguém que carrega escrupulosamente um morto querido, o qual, mesmo a distância, tem de chegar ao seu destino e à consumação das exéquias, enfim, às cerimônias necessárias a um último adeus. (Vol. I, p. 40)
Ao narrar os acontecimentos da própria vida, Brennand consegue criar tensões e ressaltar o caráter imprevisível e insólito de alguns eventos, mostrando uma habilidade literária praticamente desconhecida pelo grande público. É o caso da visita dos filósofos e escritores Jean-Paul Sartre e Simone de Beauvoir ao Engenho São Francisco, na Várzea. Ambos estavam no Recife em 1960, devido a um congresso de crítica literária que acontecia na capital pernambucana, e, no mesmo período, Carlos Pinto Alves, amigo de Brennand e admirador de Beauvoir, estava hospedado na casa do ceramista.
Carlos Pinto Alves decidiu convidar Sartre e Beauvoir para um encontro dominical na casa do Engenho São Francisco, mas, devido ao atraso dos filósofos para o encontro, agendado para a manhã, o amigo, que era muito católico e já tinha perdido a missa da manhã, resolveu ir a uma missa vespertina na Igreja do Espinheiro. Francisco Brennand, por achar que a ida à missa seria breve, resolveu acompanhá-lo. O resultado foi que, ao voltarem ao engenho, a comitiva dos filósofos estava de saída e o contato longo e profundo que deveria ocorrer entre os anfitriões e os visitantes foi tão breve e inusitado, que Carlos Pinto, articulador de todo o encontro, não disse uma palavra sequer aos visitantes, segundo narra Brennand.
A excentricidade do episódio – é curioso o fato de a filósofa e escritora feminista Simone de Beauvoir ter visitado um engenho, um dos maiores símbolos arquitetônicos do patriarcalismo nordestino – atinge o ápice quando, no final do dia, todos se reúnem para conversar sobre os momentos em que Beauvoir e Sartre estiveram no engenho.
Durante a visita, Deborah, que tinha ficado na casa, ofereceu uma série de iguarias pernambucanas para os visitantes, inclusive uma grande fruteira, “repleta de frutos tropicais, arranjada com toques de um Gauguin e de requintadas naturezas-mortas flamengas, onde se misturavam as mais variadas espécies”, como narra Brennand. Para sua surpresa, o que aconteceu é que esse arranjo, que não era para ser tocado, “apenas apreciado de longe, como quem visualiza um quadro ou uma vitrine” (prossegue o autor dos diários), foi devorado pelas celebridades francesas. Como disse um dos empregados do engenho à noite, na hora da ceia: “Meus amigos, eles comeram até a decoração!”. Um final surpreendente para um acontecimento que já se anunciava, desde o início, o episódio de um livro de ficção.
Os diários de Brennand apresentam-se como um espaço de fermentação de ideias, de reflexão sobre questões humanas e de desabafos sobre os caminhos e descaminhos do próprio trabalho. Mais, muito mais isso que um lugar para contar desventuras amorosas, segredos familiares e grandes crises internas. Não porque ele tivesse a intenção de esconder de si ou de um possível público essas questões, mas porque o artista colocou – e ainda coloca – seu trabalho como projeto e centro de sua vida. Talvez, neste caso, os diários tenham servido como um espaço de reafirmação do que ele já sentia como missão. Como escreve: “o que existe é a ordem do artista, que significa dizer: trabalho doloroso e sacrifício. Enquanto não colocar a pintura na frente de tudo, nada irá bem, assim como jamais alcançarei a almejada ordem”. Os diários atestam, portanto, que, assim como um “homem da Renascença”, Brennand também tem buscado a perfeição e a ordem que vêm de uma dedicação e uma absorção completa àquilo que se credita não só como missão, mas também como fonte de vida, a arte.
BÁRBARA BURIL, jornalista, mestre em Filosofia pela UFPE.