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“Aprendi tudo na prática, no set”

Montador, natural do município de Pedra, radicado no Rio de Janeiro desde 1969, recorda seu contato inicial com a sétima arte e fala sobre sua trajetória no cinema brasileiro

TEXTO Paula Reis Melo

01 de Dezembro de 2016

O montador Severino Dadá

O montador Severino Dadá

Foto Camilla Lapa

[conteúdo da ed. 192 | dezembro 2016]

 “Eu me tornei Severino Dadá através de Nelson Pereira dos Santos…”, recorda, com os olhos marejados, o montador dos filmes Amuleto de Ogum (1974) e Tenda dos milagres (1977), e de outros cerca de 340 entre curtas, médias e longas. Dadá é daquelas pessoas que logo no primeiro contato demonstram o amor pela profissão, a gratidão aos que o ajudaram, e a irreverência de um anarquista. Um apaixonado pela montagem e edição de som: “Na minha veia, corre gelatina!”. Radicado no Rio de Janeiro desde 1969, o pernambucano do município da Pedra, no Sertão, recorda sua trajetória feita de folheto de cordel, rádio, cinema e política. “Sou o único Severino que não foi para a construção civil, e, sim, para a construção fílmica”. Aos 74 anos e cheio de vida, trabalha como consultor de montagem e acompanha a produção dos filmes do filho cineasta, André Sampaio. Em setembro, ele esteve em Arcoverde (PE) para assistir ao lançamento do documentário Uma balada para Rocky Lane, de Djalma Galindo, sobre um de seus grandes amigos e compadres, no qual dá depoimento e recorda parte de sua vida. No retorno, passando pelo Recife, aproveitou para prospectar um curta que vai dirigir na Pedra (PE), gravou um programa na TV Universitária e fez uma palestra para o Curso de Cinema da UFPE, ocasião em que deu esta entrevista à Continente.

CONTINENTE Quando foi o seu primeiro contato com o cinema?
SEVERINO DADÁ Na Pedra, não tinha cinema. Em 1947, eu era muito criança, isso era por volta desse ano. Chegou um grupo de ciganos que negociavam com cavalo e teve um que alugou um armazém que estava fechado e chamou o povo da cidade para ver o cinema. Ele botou um cobertor branco na parede e tinha um projetor portátil de 16mm, nessa época não havia energia elétrica na cidade, tinha um motor que era ligado às 18h e desligado às 22h. Mas o cigano andava com bateria e um bocado de filmes mudos. Era um projetor de manivela com aquelas bobinas de 10, 15 minutos. Cada um levava seu banquinho, as crianças ficavam de cócoras. As primeiras imagens que tenho na cabeça eram: Tarzan brigando com o leão, matando crocodilo, pendurado no cipó; Chaplin com Carlitos, depois eu descubro quem é quem… Filme de caubói trocando tiro, Tom Mix, tudo filme mudo de 10, 15 minutos. Aquilo mexeu comigo, eu não consegui dormir na primeira noite. A cada semana, mudava o programa e eu estava lá todo dia e não pagava, porque o dono do armazém era um parente meu. Vi muita coisa, Chaplin, Buster Keaton… O cinema sonoro já existia, começou em 1929, mas aquele era mudo. Depois disso, um senhor da Pedra chamado José Costa montou o cinema Cine São José, passava filmes de bangue-bangue em preto e branco, seriado. E com isso eu já fiquei maluco, porque já era numa tela maior e já tinha som, era o cinema falado.

CONTINENTE Além dos primeiros contatos com o cinema, o que marcou sua infância com relação à cultura?
SEVERINO DADÁ Aprendi a gostar de ler desde pequeno. Na feira, eu era o garoto que lia os folhetos de cordel para os moradores da redondeza, os pequenos proprietários que eram amigos de meu pai, os compadres, os vaqueiros. No Grupo Escolar Maria Cavalcanti, em que fiz o primário, eu era o garoto escolhido para declamar aqueles poemas nas festinhas. Havia um teatrinho na escola e lembro que, na peça infantil Chapeuzinho Vermelho, fui o chefe dos caçadores. Eu tinha uma tia que era dona de uma pousada e, quando os hóspedes chegavam para as festas da cidade, como a Festa de Reis, que era tradicional, ela me enchia de guaraná para eu declamar para o pessoal. Sempre fui preguiçoso e tinha a cabeça meio ruim para matemática, mas aprendi muito cedo a leitura de português, comecei com gibi, folheto. Declamava cantando: “Riachão tava cantando na cidade do Exu/ Quando apareceu nego, uma espécie de urubu…” Era a peleja de Riachão com Zé Pretinho! Meu pai tomava umas biritas e ficava feliz quando batiam palmas para mim!

CONTINENTE Por que você foi para Arcoverde?
SEVERINO DADÁ Minha família foi para Arcoverde em 1955, para eu fazer o ginásio. Meu pai tinha uma pequena propriedade de gado, vendia queijo e leite, e minha mãe era costureira. Na Pedra, eu fiz o curso primário e as pessoas lá diziam: “Esse menino vai longe! Esse menino é inteligente!”, porque desde pequeno eu era muito curioso. Tinha um primo que se formou em Direito, que me alimentou muito de livro, Romildo Vale de Oliveira. Ele me incentivava. Meu pai, então, vendeu a propriedade que tinha na Pedra e comprou outra em Arcoverde. Transportou o gado dele e continuou com a fabricação de queijo e venda de leite. E minha mãe continuou com a costura, se firmou em Arcoverde com a freguesia que também vinha da Pedra, e inclusive colocou várias auxiliares, ensinou muita gente a costurar. Ela começou a ser elogiada e a clientela cresceu. Fazia batina, bata de médico, costurava muito. É tanto, que, na minha vida, como editor de som, têm dois sons que nunca me saíram da cabeça: o som da máquina de costura da minha mãe e o som de chuva no lajedo da Pedra.

CONTINENTE Quando você chegou a Arcoverde, já existiam dois cinemas, o Rio Branco e o Bandeirante. Como se envolveu nessa área?
SEVERINO DADÁ Os cinemas tinham projeção diariamente. O Cinema Rio Branco vai completar 100 anos no próximo ano, foi inaugurado em 1917. Era um telão que não tinha tamanho! Em Arcoverde, dois cinemas! Inclusive, o Cinema Bandeirante tinha 1.200 lugares, era o gigante da Praça da Bandeira. Quando assisti a filmes lá, fiquei deslumbrado! Então, eu fui chamado por Giovanni Pôrto, que chegou a ser prefeito de Arcoverde, para ser locutor do Cine Rio Branco, para anunciar os filmes. Quem trabalhava no Rio Branco não pagava para entrar no Bandeirante, então, eu assistia a um filme inédito num cinema e, no outro dia, assistia a um outro filme inédito no outro cinema. Aí começa meu envolvimento com o cinema. Isso era 1957. Depois fui trabalhar no serviço de alto-falante do Bandeirante, que era uma espécie de rádio, tinha uma média de 30 aparelhos espalhados pela cidade. O rádio, na época, era o serviço de alto-falante. Eu abria a programação, que começava às 9h, parava ao meio-dia, depois retomava às 15h e ia até 20h, porque às 20h30 começava a sessão de filme. Nos finais de semana, havia duas sessões e ainda tinha uma matinê. Eu me tornei locutor oficial, mas nunca fui escalado para rezar a ave-maria às 18h porque não tinha um vozeirão, minha voz era de taboca rachada (risos). Eu apresentava show de artistas.

CONTINENTE Então, na sua vida profissional estava se encaminhando para ser radialista?
SEVERINO DADÁ Sim, mas o meu grande sonho de ser radialista em Arcoverde foi interrompido devido à minha pequena e humilde participação na campanha de Miguel Arraes em 1962 para governador do estado, e as minhas relações de amizade. Meu pai era ligado à esquerda e tinha amizade com a família Pôrto, que era a grande representação da esquerda daquela região. O meu primeiro voto foi Marechal Lott para presidente e João Goulart para vice, em 1960. Então, na campanha de Arraes, fui apresentador de comício na região de Arcoverde, Pedra, Buíque, Pesqueira, Sertânia. Andava numa kombi com alto-falantes, convocando o povo para o comício. Na hora do palanque, eu apresentava as pessoas que iam falar e segurava o microfone. Tem até uma foto minha bem novo, segurando o microfone para dr. Arraes. No seu governo, fui trabalhar na CRC – Companhia de Revenda e Colonização, em Cabrobó. Depois do golpe de 1964, como eu tinha relações de amizade com pessoas de esquerda na cidade de Arcoverde, principalmente meus amigos filhos do velho e grande lutador pelas causas populares e que era considerado o líder comunista da região, o dentista Wilson Pôrto, fui considerado figura perigosa. Havia muita gente que dedurava os outros, gente que não gostava de você, aí lhe dedurava como elemento perigoso. Passei três meses preso no Recife, no quartel motorizado de Casa Forte, não fui torturado, não vou mentir! Quando fui fichado na Secretaria de Segurança Pública, levei uns tabefes. Não teve processo e fui liberado.

CONTINENTE Depois que saiu da prisão, como reconstruiu a vida?
SEVERINO DADÁ Voltei para Arcoverde e não tinha trabalho. Teve a inauguração da Rádio Bandeirante como emissora de rádio, e eu fui o único que não foi aproveitado, porque fui considerado um elemento de alta periculosidade para o regime. Imagine, eu era magro, um cancãozinho, mas era considerado perigoso, mesmo sem ter tido processo! Mas o povo queria que eu voltasse e, depois de um tempo, fui chamado para a emissora. Eu abria a rádio às 5h30 da manhã com o programa Bom-dia, Nordeste, de forró, depois Postal Sonoro, e chegaram a criar um programa patrocinado pelo guaraná Fratelli Vita que era o Teatrinho Infantil Bandeirante e me escalaram para ser o apresentador. Era para ler os textos e interpretar, o Tio Dadá conta histórias. O programa começou a ter projeção, a fazer sucesso! Eu continuava com as minhas amizades e o capitão que tinha mandado me prender falava com o diretor da rádio: “Olha, tem que ver se ele não passa mensagens para as crianças!”. Aquelas imbecilidades da época! Aliás, quem retrata bem essa época é o falecido Stanislaw Ponte Preta, com O festival de besteira que assola o país. Essa era uma das grandes besteiras que não foi retratada. Aí, o diretor da rádio chegava para mim: “Dadá, cuidado, essas suas amizades…”. Eu bebia cerveja nos bares com meus amigos e esse capitão ficava de longe no bar me fuzilando com o olhar. Eu sabia que ele pressionava o diretor da rádio. Mas continuei com minhas amizades sinceras, porque é o seguinte: quem tem medo de cagar, toma sorvete! Você tem que ser você de qualquer maneira! Até que um dia o diretor me disse: “Dadá é o seguinte, não vou poder aproveitar você porque você não deixa suas amizades”. Aí, eu disse: “Olha, se deixar minhas amizades por causa dessa pressão, acaba minha carreira no rádio, eu finalizo aqui. Não vou morrer rastejando, vou morrer de pé como uma vela acesa até o último piscar”. Aí me dispensaram e encerrou minha carreira no rádio.

CONTINENTE Sua ida ao Recife o ligou novamente ao cinema. Como foi essa chegada à cidade?
SEVERINO DADÁ Tempos depois, um radialista amigo meu conseguiu uns bicos numa agência de propaganda no Recife. Quando cheguei, descobri logo um cineclube no Bairro de Casa Amarela, que passava uns filmes fora do circuito comercial. Eu já era um cinéfilo apaixonado, ia assistir, curtia e acompanhava os debates. Aí, um dia, olhando o sebo no Mercado de São José, no centro do Recife, descobri um livro de Georges Sadoul sobre o cinema, sua história, sua linguagem. Comprei o livro! E esse livro era todo ilustrado, cheio de desenhos! Foi quando eu descobri o que era o enquadramento cinematográfico, o que é um close, o que é um plano geral, um primeiro plano, um plano americano, a finalidade do plongé e contraplongé, o que é o travelling de avanço e de recuo. Eu memorizei aquilo tudo e já via o filme diferente: Já sei! Aqui é um primeiro plano! Cortou do plano geral! Aí descobri que a montagem era o corte! Fui descobrindo a linguagem cinematográfica! É tanto que, nas reuniões no cineclube, quando tinha aquele debate filosófico, intelectual, e me pediam opinião, eu dizia: “Pois é, aquele enquadramento do contraplongé no interrogatório do personagem…”, de repente, eu era um extraterrestre no meio daqueles intelectuais e teóricos intoxicados com Godard, com Truffaut (risos).

CONTINENTE Como você começou a trabalhar no cinema?
SEVERINO DADÁ Em 1967, George Jonas veio a Pernambuco filmar a primeira versão de O auto da Compadecida, em Fazenda Nova. O pessoal da produção precisava de alguém para assistente de produção e um dos diretores do cineclube me recomendou. Aí eu perguntei: O que é assistente de produção? O cara falou: “Você vai para Fazenda Nova pegar o material filmado e trazer, e também pegar as correspondências dos atores e atrizes, organizar o malote e despachar”. Eu falei: “Isso é assistente de produção? Isso eu faço!”. Depois, também fui assistente de produção do filme Riacho de sangue, produzido por uma pernambucana, Aurora Duarte, também no Recife. Fiz amizade com o pessoal da produção, que me incentivou a ir para o Rio de Janeiro.

CONTINENTE No Rio de Janeiro, já foi trabalhar com cinema?
SEVERINO DADÁ No Rio de Janeiro, consegui um emprego num posto de gasolina para tirar a temperatura de combustível, mas só passei três meses, porque eu queria mesmo era trabalhar no cinema. Ia sempre à Cinelândia, onde encontrava os técnicos de cinema e logo me envolvi como assistente de câmera. Aprendi a carregar chassi, a fazer foco. Aprendi tudo na prática, no set de filmagem. Fui assistente de produção, depois, segundo assistente de direção, continuidade, um bocado de coisa.

CONTINENTE Como você se tornou montador?
SEVERINO DADÁ O que me encantava como assistente de direção era acompanhar a pré-montagem dos filmes que eu tinha acompanhado, conferindo as claquetes, as folhas de continuidade. Geralmente, era o assistente de montagem que fazia comigo esse processo; quando eu vi aquilo, disse: “Pô! É aqui que se define o filme! É na sala de montagem!”. Eu saquei aquilo e disse: “É isso que vou fazer!”. O tempo passou e fui chamado para ser assistente de montagem do editor argentino Nello Melli, a quem dediquei o meu documentário Geraldo José, o som sem barreira (2003). Aí aprendi o sincronismo e fui pegando a prática, porque montei dois filmes de longa-metragem. Em 1973, fui trabalhar fazendo “varejão” numa agência de publicidade, eram comerciais em 16mm. A essa altura, eu já pegava filme para sonorizar. Fiquei expert em sincronização, tinha paciência para acertar o sincronismo. Diziam que eu lia lábio. Nunca li lábio, mas para não perder a fama, dizia: “É, eu fiz um estágio no instituto de surdos e mudos…” (risos). Nunca entrei no instituto de surdos e mudos (risos).

CONTINENTE E como você foi trabalhar com Nelson Pereira dos Santos?
SEVERINO DADÁ Eu me correspondia com Socorro, que era um namoro parado por causa do golpe militar, escrevi uma carta para ela e nós casamos. Foi nessa época que surgiu Nelson Pereira dos Santos. Recebi um recado de que ele queria falar comigo. Aliás, fui recomendado pela “máfia nordestina”, por Jofre Soares, grande ator que foi revelado em Vidas secas. Daí, comecei a trabalhar com Nelson, fazendo o sincronismo de um documentário que ele tinha feito na Amazônia, e depois montei O amuleto de Ogum. Na minha vida profissional, eu considero o antes e o depois de Nelson Pereira dos Santos. Depois de Nelson Pereira, mudou tudo, inclusive foi aí que nasceu o Severino Dadá. Quando assisti a primeira cópia do Amuleto, apareceram nos letreiros finais: montagem de Severino Dadá e Paulo Pessoa, que era o cara que montou o negativo, eu pensei: “Pô, Severino Dadá…?” Mas fiquei quieto, né? Quando terminou a projeção, nós fomos para o bar, toda a equipe vibrando, aí eu falei assim: “Nelson, eu só acho que teve um probleminha nos letreiros”. “Problema no letreiro, por quê?”, perguntou ele. Eu falei: “É que eu sempre assinei Severino de Oliveira”. “Pô, Dadá! Mas todo mundo te conhece por Dadá, então eu botei Severino Dadá, não me lembrei que tinha esse Oliveira”, disse Nelson. Aí, o Jofre me deu um esporro: “Porra, Dadá! Tu foi batizado pelo Nelson Pereira dos Santos. A partir de agora, tu és o Severino Dadá! Está reclamando de quê?”. “Não, não é nada disso, não! Eu apenas estava acostumado porque todos os trabalhos meus tinham Severino de Oliveira! Foi legal botar o Dadá!”(risos). Aí pronto, começou o Severino Dadá a partir dali! 

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