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De volta à Cidade Alta

Sem apresentações em Olinda em 2015, este ano o festival retorna ao seu local de origem com shows que afirmam seu perfil multiétnico e sofisticado musicalmente

TEXTO AD Luna

01 de Novembro de 2016

Pat Thomas é um dos representantes do highlife, gênero que antecede o afrobeat

Pat Thomas é um dos representantes do highlife, gênero que antecede o afrobeat

foto divulgação

[conteúdo da ed. 191 | novembro de 2016]

Pesquisa apresentada em julho deste ano pela universidade australiana Victoria’s Deakin revelou algo que muita gente já sabia por experiência própria. Frequentar festivais de música proporciona altos níveis de satisfação e alegria. O prazer torna-se maior quando o ato de assistir a shows é partilhado com pessoas próximas. Quando as atrações incluem artistas internacionais de variadas nacionalidades, alguns passos são dados em direção ao entendimento humano mais global. Enfim, além dos tão comentados e mensuráveis efeitos econômicos (incremento do turismo, mais clientes em restaurantes, lojas), quem investe na realização de determinados festivais também está contribuindo para o bem-estar geral da população.

Criado em 2004, o Mimo vinha cumprindo bem esse papel até que sua realização em Olinda, cidade matriz do projeto, foi interrompida por falta de verbas no ano passado. Este ano, entre os dias 18 e 20 de novembro, ruas e igrejas da cidade voltam a sintonizar-se com as boas vibrações sonoras do festival. Já foram confirmadas as presenças do grupo britânico Sons of Kemet; da dupla portuguesa de pianistas Mário Laginha e Pedro Burmester; Bixiga 70, banda de São Paulo; Totó La Momposina, destaque da música tradicional colombiana; e Pat Thomas & Kwashiru Area Band, de Gana.

Contando com as edições que ocorreram e vão ocorrer nas cidades de Tiradentes, Ouro Preto, Paraty, Olinda e Rio de Janeiro, entre o mês passado e este, somam-se cerca de 50 concertos, exibição de 27 filmes inéditos, além da realização de oficinas, palestras e recitais de poesias. “É a melhor sensação do mundo!”, vibra Lu Araújo, idealizadora, diretora-geral e artística, ao expressar o sentimento de trazer o evento de volta para onde ele nasceu. “Durante os últimos meses, inúmeras lembranças do Mimo em Olinda me vêm à memória inesperadamente. Afinal, são muitos anos de convivência e de um relacionamento afetivo com a cidade, seus moradores, personagens e a beleza do lugar, que eu já frequentava há tempo.”

De acordo com ela, 2015 marcou o pior momento do Mimo, em razão das dificuldades econômicas vividas pelo Brasil. Dois anos antes, o festival havia crescido, o que acarretou mais custos. Mas as verbas não vieram. “Fizemos de tudo para viabilizá-lo no mesmo padrão de excelência com que sempre trabalhamos. Infelizmente, não deu. Desde então, redobramos os esforços para conseguir investimentos que nos garantissem a realização de uma nova edição”, conta Araújo. Durante os dias 21, 22 e 23 julho, o Mimo chegou à cidade de Amarante, em Portugal. Nessa primeira incursão por terra estrangeira, o Mimo fez com que cerca de 25 mil pessoas, provenientes de diversos lugares do país e da Europa, apreciassem as apresentações do duo pernambucano Walter Areia & Rafael Marques, Pat Metheny & Ron Carter, Tom Zé, Hamilton de Holanda e o Baile do Almeidinha, Egberto Gismonti, entre outros.

“O Mimo Amarante superou as nossas melhores expectativas. Foi muito gratificante apresentar uma seleção de artistas brasileiros de primeira linha ao lado de feras do jazz mundial. Acho que, em pouco tempo, o Mimo será reconhecido como um ponto de encontro da boa música brasileira na Europa”, vislumbra Lu Araújo. Para ela, a combinação do patrimônio histórico com as várias manifestações artísticas apresentadas é a fórmula que encanta tanto os frequentadores quanto os próprios artistas. “Em Portugal, confirmei que o Mimo é atraente para um público moderno, antenado, sedento por novidades e feliz. A plateia de Amarante me lembrou demais a de Olinda e isso me deixou emocionada. Me senti em casa.”

ATRAÇÕES 2016
Em anos anteriores, o público que foi a Olinda se deleitou com performances inspiradas e inspiradoras de gente como o pianista cubano Chucho Valdés, a fusão de jazz e sonoridades orientais do percussionista indiano Trilok Gurtu, a lenda Chick Corea, a dupla Philip Glass & Tim Fain, o tango pop do Gotan Project. Sem falar nas vibrantes e ricas passagens dos brasileiros Egberto Gismonti, Naná Vasconcelos, Bongar, Azymuth, Eumir Deodato, Siba, Nelson Freire, Carlos Malta, Jards Macalé, entre outros. Indagada sobre quais diretrizes nortearam a escolha das atrações deste ano, Lu Araújo responde: “A qualidade em primeiro lugar. Além disso, o empenho em trazer ao Brasil atrações que estão sendo apresentadas nos grandes festivais do mundo, muitas delas completamente desconhecidas por aqui. Me dá uma sensação de desbravamento e quero compartilhar isso com o público”.

Considerada uma das guardiãs da música tradicional colombiana, a cantora e dançarina Totó La Momposina foi um dos primeiros nomes confirmados para o Mimo Olinda 2016. Filha de mãe com as mesmas habilidades artísticas e de pai baterista, Totó iniciou a carreira nos anos 1950. Mas foi no início da década de 1990 que seu nome ganhou projeção internacional, por conta de uma turnê que passou por três continentes, organizada pelo Womad – festival e organização cultural, criados pelo cantor Peter Gabriel, cuja maior missão é celebrar manifestações culturais além do universo anglo-saxônico. Em 1982, ela acompanhou Gabriel García Marquez na cerimônia de entrega do Prêmio Nobel de Literatura ao escritor. Nos discos e shows, Momposina passeia por ritmos e sons originados a partir do contato entre povos indígenas, africanos e espanhóis.

A apresentação do Sons of Kemet deve causar grande impacto no Mimo, por conta da veia “original Olinda style” dos ingleses. Quem já frequentou as ladeiras de Olinda durante o Carnaval provavelmente vai sentir uma estranha conexão com a “irreverência” do trabalho da banda. O som reúne elementos de jazz, rock, música caribenha e africana. Os ouvidos e corpos mais atentos notarão semelhanças com o frevo e até com o baião, caso da música Play mass, presente no Lest we forget what we came here to do, segundo álbum deles, lançado em 2015.

No YouTube, há um vídeo bem irreverente da música em questão. O quarteto é novo, surgiu em 2011, e é formado por Shabaka Hutchings (sax e clarinete), Theon Cross (tuba) e por dois bateristas: Tom Skinner e Seb Rochford, os quais costumam executar levadas diferentes, mas que se entrelaçam muito bem. Curioso observar que, até na relação cor da pele dos músicos com os instrumentos que tocam, o Sons of Kemet foge do que se observa normalmente. A ala percussiva fica nas mãos dos brancos Skinner e Rochford, enquanto a parte melódica e harmônica é comandada pelos negros Cross e Hutchings. O grupo possui a notável habilidade de conseguir agradar tanto a plateias sentadas em teatros quanto pessoas que vão aos seus shows em casas noturnas e festivais. O nome do quarteto se refere ao modo como o Egito era chamado na antiguidade.

A big band Bixiga 70 já é conhecida por boa parte do público pernambucano interessado em fusões dançantes entre música brasileira, latina e jazz. O grupo foi formado há seis anos, no bairro paulistano que lhe dá nome, famoso por abrigar uma grande comunidade de italianos e suas sensacionais cantinas e pizzarias. Eles sempre empolgam quando por aqui se apresentam – como ficou comprovado por passagens pelo Coquetel Molotov, Rec-Beat, Porto Musical e Festival de Inverno de Garanhuns. Também já tocaram e causaram ótima impressão nos Estados Unidos e países da Europa. No início da carreira, a banda mantinha forte ligação com o afrobeat. Mas em pouco tempo foram ampliando a sua teia sonora. O trabalho mais recente é o álbum The Copan connection: Bixiga 70 meets Vitor Rice. A obra é uma remixagem do disco anterior, III, baseada no dub jamaicano. Especialidade do baixista e produtor norte-americano Vitor Rice, radicado em São Paulo desde 2002.

Mário Laginha e Pedro Burmester fizeram parte da programação do Mimo Amarante. Agora, os portugueses apresentam o que o próprio Laginha define como “viagem musical”. Os dois possuem formação erudita, mas nesse projeto incluem interpretações de obras de artistas do seu país de origem, a exemplo de João Paulo Esteves, do brasileiro Pixinguinha, e do norte-americano Aaron Copland. O repertório percorre muitos estilos e épocas, o que pode significar incursões pelo barroco, indo a seguir direto para o século XX. Para Laginha, a escolha das músicas que compõem os concertos pode parecer pouco convencional, mas elas se conectam harmonicamente quando executadas nos palcos.

PAT THOMAS
Nascido em Gana, em 1951, Pat Thomas passou vários anos de sua vida no Canadá, Estados Unidos, Alemanha e Inglaterra. Ainda assim, essas experiências não afrouxaram os fortes laços que ele continua a manter com os sons do seu país e continente de origem. “Minha música é o highlife, música africana. Minhas raízes ficaram em Gana”, assevera. O estilo pelo qual demonstra grande apreço e identificação é irmão do nigeriano afrobeat e reúne ritmos africanos, arranjos poderosos de metais, linhas de guitarra ora melódicas ora rítmicas, vocalizações conectadas a cânticos ancestrais. Tudo isso aliado a letras que celebram o lado bom do espírito humano – essa junção de elementos se traduz em música festiva e alegre

Thomas se mostra bastante empolgado com sua primeira incursão por terras brasileiras. “Vocês vão mexer seus pés e esqueletos. Esperem só pra ver”, brinca. Além de Olinda, ele se apresenta no Mimo Rio de Janeiro. O repertório dos shows deve focar no álbum Pat Thomas & Kwashibu Area Band, lançado em 2015. A banda tem a presença do multi-instrumentista Kwame Yeboah, que já tocou com Cat Stevens, e com o saxofonista Ben Abarbanel-Wolff. O disco conta com a participação mais do que especial do baterista nigeriano Tony Allen, o qual tocou no grupo do lendário Fela Kuti e se mantém bastante ativo, com sua carreira solo e colaborando em outros projetos. “Sou um baterista de afrobeat. Mas Pat Thomas é o próprio highlife. Isso ele sabe fazer muito bem”, exaltou Allen, quando a obra foi lançada. Também devem entrar composições da coletânea Original Ghanaian highlife and afrobeat classics 1967–1981, que chegou ao mercado este ano.

Diferentemente de Fela Kuti, Pat Thomas não compõe letras políticas ou de protesto. “Canto sobre o amor e a paz, o que pode parecer estar relacionado à política, mas não é a mesma coisa. Minha música surgiu com o propósito de fazer com que as pessoas tenham paz”, explica. De acordo com Thomas, o estilo que consagrou Kuti pode ter surgido em razão da “tentativa” dele em tocar o outro ritmo. “Não soube na época, mas Fela morou em Gana, chegando a tocar highlife com um grupo. Mas o highlife era de Gana, e ele era nigeriano, então decidiu fazer tudo do jeito dele mesmo, pois a Nigéria tinha que ter algo também. E o afrobeat acabou surgindo e veio para ficar”, explica. Devido à sua militância política, Kuti sofreu perseguição do governo e chegou a ser espancado. A mãe dele morreu ao ser arremessada da janela do prédio onde morava. Fela tinha várias esposas e morreu aos 58 anos, vítima de aids.

No disco Pat Thomas & Kwashibu Area Band, há alguns afrobeats, caso de Amaehu e Odoo be ba, que ganham personalidade na voz de Thomas. E qual a situação do highlife, hoje, em Gana? Segundo ele, o estilo continua sendo o mais popular no país. “Atualmente, nossos jovens escutam diferentes fusões de highlife, além de hip-hop e música eletrônica dançante”.

Quando o país a ser visitado volta à tona, Pat diz que enxerga conexões entre Gana e Brasil. “Vocês têm o samba, que mostra essa relação. Durante o tempo que estiver aí, espero poder colaborar com músicos brasileiros. Quero muito fazer isso e acho que será ótimo, justamente por causa dessa questão da relação entre os ritmos. Estou muito ansioso para ver a reação do público brasileiro nos concertos do Mimo”, adianta. Ele também se diz um grande fã de futebol e, por isso, sempre relaciona o esporte à nação.

A mãe de Pat Thomas cantava em igreja e seu pai dava aulas de música. A arte musical sempre esteve presente na vida dele. Apesar disso, o artista diz acreditar que razões internas foram mais fortes do que uma possível influência dos genitores. “Não posso dizer que foi por causa dos meus pais que de fato quis ser músico.” Ele afirma isso baseado em memórias e desejos que surgiram ainda antes de perceber que seus pais possuíam uma carreira. “Talvez minha mãe tenha me influenciado mais, pois meu pai não era muito presente. Quando eu tinha 10 anos, ele foi para Londres. Ela gostava de cantar o tempo todo. Mas, ainda assim, creio ter sido algo que veio de dentro mesmo, tinha que sair de mim”, reforça.

King Onyina, um dos tios de Thomas, foi um guitarrista reconhecido em Gana. Tanto pelos seus trabalhos quanto por ter trabalhado com o cantor negro norte-americano Nat King Cole. Foi com ele que Pat aprendeu a ler música. Também desenvolveu habilidades na bateria e se tornou um respeitado compositor e cantor ainda na adolescência.

O primeiro contato com o highlife foi em 1971, quando ele foi morar na cidade ganense de Accra e juntou-se ao grupo Blue Monks, liderado pelo guitarrista, compositor e arranjador Ebo Taylor – um dos maiores e mais respeitados artistas de Gana. Os dois chegaram a tocar juntos em dois outros importantes grupos da época: Broadway Dance Band e Stargazers. “Conheci Ebo no início dos anos 1960. Cantei várias de suas canções, e ele fez arranjos para muitas das minhas músicas. Sempre tivemos um relacionamento muito produtivo. Mas ele não vai ao Brasil conosco.”

Durante toda a década de 1990, Pat Thomas morou no Canadá, onde deu aulas de música em uma universidade local. Aliás, o país vizinho aos Estados Unidos é um dos que melhor recebem músicos africanos. Assim como o ganense, outros muitos artistas da África costumam expor seus conhecimentos e tocar com instrumentistas e cantores canadenses. A agenda de shows de Pat Thomas, porém, não era muito intensa. Além de só ter lançado um disco na época, Nkae on Sikafutro Productions, de 1996. Em 2000, ele voltou para Gana e só em 2015 apresentou nova gravação, o supracitado Pat Thomas & Kwashibu Area Band. “É meu primeiro álbum com eles. Passei um tempo sem lançar discos inteiros. Acho que o mercado não favorecia”, aponta.

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