Em muitas de suas peças, Moacir transparece também suas influências eruditas, sobretudo aquelas advindas do século XIX. Naquela época da música, havia se tornado um pouco mais frequente algo que chamamos de “condução paralela” das vozes, quando melodias simultâneas movem-se de uma nota para outra sempre na mesma direção e pela mesma distância. A harmonia resultante dessa prática contrariava, por vezes, o tipo de discurso harmônico do período histórico anterior (o classicismo de Haydn, Mozart e Beethoven).
Moacir Santos abusa da condução paralela em muitas passagens marcantes de suas peças, como no início de Coisa nº 3 (disco Coisas) ou em Amalgamation, peça do disco Ouro Negro. Era comum, ainda, que, durante as trocas de acordes, Moacir movesse apenas uma nota, ou poucas notas, por mínimas distâncias, criando um estilo harmônico fluido e coeso. Embora tal prática possa resultar em harmonias mais tradicionais, com frequência ela produz trechos que não podem classificar-se como tal. De forma geral, esses traços também se consolidariam no século XIX, sobretudo, com a música de Wagner e Liszt, sendo mais um ponto de ligação entre Moacir e suas preferências eruditas.
Porém, um dos elementos que mais chamam a atenção das pessoas sobre Moacir Santos é, certamente, a forma pela qual ele trabalha a informação afro-brasileira em sua música. Nesse sentido, vale aqui um breve exercício comparativo. Lembremos que a música popular que nos é mais familiar é geralmente organizada num esquema de compasso. Se pensarmos em Satisfaction, dos Rolling Stones, por exemplo, veremos que é fácil acompanhar seu ritmo dividindo-o mentalmente como uma constante sequência de 1–2–3–4 (compasso quaternário), em que o 1 soa sempre como a batida mais forte. Mas, se em vez disso, pensarmos num frevo, veremos que a contagem mais adequada passaria a ser a de 1–2 constantemente repetida (compasso binário), onde o 2 soa como tempo forte. Uma valsa, por sua vez, divide-se claramente como um constante 1–2–3 (compasso ternário), sendo o 1 o tempo mais forte.
No caso da música africana, muitos de seus processos rítmicos ocorrem na música de Moacir Santos de maneira estilizada. Um deles diz respeito, justamente, a organizações nas quais a divisão em compassos não soa de forma tão clara, assim como a definição do “tempo forte”. Em Coisa nº 3, por exemplo, Moacir escreve sequências de figuras rítmicas que, pela divisão irregular e acentuação deslocada, acabam soando de forma ambígua. O próprio artista costumava recomendar a seus alunos de composição, como exercício didático, a escrita dessas sequências que ele intitulou de Ritmos MS. Às vezes, esse processo resultava, no caso de Moacir, em certos gêneros brasileiros, tais como baião, afoxé, samba etc. Outras vezes, contudo, resultava em ritmos de caráter indefinido e intrigante.
Estes e muitos outros procedimentos encontrados na obra moaciana revelam que ela se organiza como uma espécie de “rigorosa seleção de grãos”, na qual um artista com vasta carga de estudo teórico decide utilizar elementos muito específicos dentre tudo aquilo que chegou a conhecer.
Nos últimos anos, resolvi me propor um desafio: analisar os processos criativos de Moacir Santos com o propósito de utilizá-los numa composição de minha autoria, que viria a se chamar Suíte Ouro Negro – do Sertão à Califórnia. O título, obviamente, faz referência à singular trajetória do compositor e cada um dos movimentos da peça baseia-se numa de suas fases criativas. O I Movimento – Viajante diz respeito à “fase brasileira”, marcada pelas constantes migrações de Moacir pelo país até o lançamento do LP Coisas, em 1965. Uma mescla de gêneros brasileiros, como baião e bossa nova, foi escolhida para contar essa parte da história. Já o II Movimento – Sopro do mundo trata da “fase americana” do compositor, relativa à sua ida para os Estados Unidos, em 1967, e as consequentes relações que sua música estabeleceria com o cenário jazzístico da época. Para tanto, uma espécie de híbrido entre afoxé e dixieland foi a direção por mim escolhida. Por fim, o terceiro e último movimento da suíte, intitulado O berço, baseia-se na chamada “fase madura”, quando Moacir volta a lançar material no Brasil com o disco Ouro Negro, em 2001. O movimento busca adaptar os procedimentos moacianos a um frevo, retratando o retorno do artista ao seu país e o inédito acolhimento do público que caracterizou esta fase.
Aplicar os processos criativos de Moacir à minha própria música tem sido um constante desafio criativo. Afinal, como compor uma suíte que os utilize sem, ao mesmo tempo, resumir-se a eles? Ou melhor: como criar baseado na estética moaciana de modo a levá-la adiante, seguindo uma direção autoral em vez de produzir uma mera cópia? Este seria, provavelmente, um bom desafio para qualquer compositor que pretenda aprender os processos deste artista singular.
Vale acrescentar que, durante um recente período de pesquisa nos Estados Unidos, pude constatar o alto nível de reconhecimento que Moacir conquistou junto a músicos americanos de excelência. Diversos artistas por mim contatados para entrevistas responderam prontamente às minhas solicitações com grande reverência à figura do “mestre” Moacir, tal como o trompetista Wynton Marsalis o chamou explicitamente num concerto recente em São Paulo. Fica muito claro que Moacir Santos ainda é um nome da música pernambucana com muito a ser descoberto pelos artistas locais e, sobretudo, pelo público brasileiro em geral.