“Brasílico é um adjetivo que designa tudo que tem origem indígena-brasileira e, neste caso específico, a ideia surgiu a partir das guerras brasílicas, que era como se chamavam as guerras dos nativos (índios, em sua maioria) contra os invasores estrangeiros em terras brasileiras. Nesse aspecto, podemos concluir que a linha de separação entre o conceito de dança armorial e de dança brasílica é bastante tênue”, explica Galdino, no livro Balé Popular do Recife: a escrita de uma dança.
Assim, o Método Brasílica de Expressão Artística se firma como um sistema pedagógico criado pelo próprio Balé Popular do Recife para mostrar os resultados artísticos e sociais de seu trabalho, e sua forma de se apropriar dos elementos das danças populares, que culminou num modelo praticamente universalizado em Pernambuco. “Não seria totalmente correto denominar de parafolclórico todo o trabalho desenvolvido pelo Balé Popular do Recife, porque, durante o processo, a proposta ultrapassa a mera recriação e cenificação do folclórico, para enveredar na sistematização de um método, no desenho de um novo dançar que, desde o início, experimenta misturas de ritmos, passos e outros signos do manancial folclórico nordestino, produzindo um elemento híbrido proveniente de fontes diversas, mas pertinente ao mesmo estuário da cultura popular”, conclui a pesquisadora em sua obra.
Segundo André Madureira, o objetivo da dança brasílica sempre foi a criação de um balé nacional, e não do balé nacional. “Um balé que seja capaz de valorizar as características primordiais da dança popular, nativa, primitiva, sem perder a essência, mas numa linguagem atual, moderna, contemporânea, futurista. Entender a ligação de brincante com o transcendente, nesses estados alterados de consciência que eles atingem, esse mistério, o que está oculto nisso é que é a essência do que a gente faz.”
O espetáculo traz elementos de danças dos ciclos festivos da região: Carnaval, São João, Natal e expressões de origem afro-ameríndia. Foto: Divulgação
iante da necessidade de divulgar a metodologia, foi fundada, em 1983, a Escola Brasílica, que funcionou, nos primeiros anos, na Sala Ascenso Ferreira, na Casa da Cultura. Posteriormente, foi transferida para o sobrado alugado de número 52 da Rua do Sossego, no Bairro da Boa Vista, no qual permanece até os dias atuais. A criação da escola deu projeção ao repertório do Balé, e serviu de base para o trabalho coreográfico de diversas companhias e núcleos de dança. Pode-se dizer que o trabalho desenvolvido pelo Balé foi “o mais intenso movimento de dança de Pernambuco, que marcou para sempre a história da dança cênica brasileira”, nas palavras de Christianne Galdino.
DANÇA ARMORIAL
Inicialmente batizado de Grupo Circense de Dança Popular, o Balé Popular do Recife foi a terceira tentativa de Ariano Suassuna, então secretário municipal de Cultura da Prefeitura do Recife, de implantar, na cidade, uma dança armorial. Era 1976 quando o escritor resolveu investir no grupo de teatro amador Gente da Gente, formado por cinco irmãos Madureira: André, Ana Tereza, Anselmo, Antero e Antúlio Madureira, que ainda contavam com o apoio de vários familiares, vizinhos e amigos próximos. A ausência de formação em dança foi logo driblada pelo grupo, que teve a oportunidade de realizar seus primeiros exercícios coreográficos na revista musical A rua, que o pai, Paulo Ferreira, produzia na época.
“Ariano buscou um grupo que já tivesse alguma experiência cênica, que não fosse manifestação folclórica, para trabalhar juntamente com os bailarinos de Flávia Barros na pesquisa e na concepção de uma dança armorial”, explica Christianne Galdino. “Na época, os jovens bailarinos tiveram que enfrentar também um problema social. Tudo que era manifestação de cultura popular era habitualmente associada à marginalidade. Havia estranhamento por parte da sociedade e, na maioria das vezes, receio mesmo.”
A quebra dos preconceitos e a valorização do artista popular são, para André Madureira, contribuições inegáveis do Balé no sentido de aproximar a comunidade da sua própria cultura. “O preconceito vigente chegou a afastar até membros do elenco inicial, que fazia as pesquisas. Mas, com o passar do tempo, o pessoal foi se hipnotizando com aquilo, se apaixonando. Vendo a riqueza daquela tradição, daquela dança. Aquela brincadeira tocava fundo na gente”, declarou, certa vez, o mentor, que fazia os desenhos das coreografias, sistematizava tudo e dirigia o grupo.
No dia 20 de maio de 1977, o Balé Popular do Recife fez sua estreia no palco do Teatro do Parque, onde iniciou uma temporada do espetáculo Circo da onça malhada, acompanhado da trilha ao vivo da Orquestra Popular do Recife, sob a batuta do maestro Ademir Araújo. De lá para cá, o trabalho desenvolvido pela companhia não só transformou a realidade da dança cênica pernambucana, como foi responsável por abrir caminhos para a formação de artistas dos mais variados segmentos. Para o produtor cultural Roger de Renor, que integrou o grupo durante dois anos, na década de 1980, como bailarino e professor de capoeira na Escola Brasílica, a contribuição prática do Balé está em trabalhar a questão do pertencimento, sobretudo “numa época em que não existia coisa mais cafona do que cultura popular”.
AUTOESTIMA
“Tudo que era americano, que vinha de fora, era mais legal. E, nessa época, o Balé foi o primeiro lugar de difusão prática da nossa cultura. Mostrava o quanto de coisa que pertence à gente e que não se via a olhos nus. Não era simplesmente aprender uma coreografia, mas, sim, uma construção cidadã. Fazia-nos entender a cultura do brincante, que faz parte do espírito brasileiro dos terreiros aos folguedos. Eu questionava: onde isso estava esse tempo inteiro? Na prática, aprendíamos o que não se via no ensino formal. Eu, que achava que não gostava de estudar, me surpreendi com a possibilidade do aprendizado ser algo prazeroso”, recorda Roger.
Quem bebeu da mesma fonte foi Chico Science, que, segundo André Madureira, não perdia uma apresentação do Balé Popular do Recife na Feira do Frevo, espécie de aula-espetáculo realizada semanalmente na Casa da Cultura, no ano de 1982. Chico também frequentava os ensaios do grupo no Centro de Educação e Cultura Daruê Malungo, no Bairro de Peixinhos, onde conheceu o bloco de percussão afro Lamento Negro, tido como o embrião do que viria a ser a Nação Zumbi. Toda aquela vivência contribuiu para a configuração, anos mais tarde, da identidade mangue que, assim como o Balé Popular do Recife, despertou a autoestima dos grupos tradicionais, ao valorizar as manifestações artísticas locais.
“Eu tinha acabado uma formação em improvisação, vinha sem estilo específico e com muita vontade de dançar profissionalmente. E o Balé Popular era o único grupo a realizar turnês e fazer grandes temporadas no Recife. Nele, aprendi algo muito caro à minha maneira de pensar a dança hoje em dia: a presença cênica vem da absoluta compreensão da tríade tempo/corpo/espaço. Eu aprendia como todo brincante, na vivência da cena. E tinha todos aqueles grandes bailarinos para me nutrir, os quais observava sem cansar”, revela a dançarina e coreógrafa do Grupo Grial, Maria Paula Costa Rêgo, que integrou o Balé Popular do Recife de 1981 a 1988. “Vivíamos a dança de forma apaixonada e inteira. Sempre havia diálogo. O compromisso de André (Madureira) com cada um que compunha o grupo era com a nossa capacidade de fazer acontecer em cena. A cena era uma explosão de garra, alegria e competência.”
MARIANA SUASSUNA, jornalista, cursando especialização em Estudos Cinematográficos na Unicap.