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Luciano Pontes: Intenso desejo de se expressar

O ator é um dos mais prolíficos e múltiplos artistas pernambucanos, atuando como palhaço, escritor, encenador, cenógrafo, figurinista, mamulengueiro, pintor e desenhista

TEXTO Isabelle Câmara

01 de Maio de 2015

Luciano Pontes

Luciano Pontes

Foto Divulgação

Quando o velho Washi diz a Belizbel – personagens do livro Belizbel (Paulinas, 2014), escrito e ilustrado por Luciano Pontes – que “no papel pode caber tudo, o mundo, até o céu!”, parece que é com o próprio Luciano que o velho fala. Autor e personagem da própria história, ele escreve sua vida não só no papel, mas no palco, na rua, nos hospitais, na oralidade.

Nascido em Orobó (PE), por uma questão de segurança afetiva dos seus pais, em 18 de novembro de 1974, Luciano Pontes cresceu em Olinda, construindo os próprios brinquedos em meio a tecidos, bordados, crochês, colchas de retalhos, bonecas, tintas, brincadeiras populares, pastoris, cavalos-marinhos, autos religiosos e estradas. “Eu era muito dramático. Fantasiava que era órfão e seria adotado por uma família rica.” Mas a riqueza da sua família real era outra, fundamental para a sua formação: “Meu pai construía estradas e, sem saber, me ensinou a abrir trilhas, construir meus próprios caminhos. Eles são meus grandes referenciais”.

A carreira profissional de Luciano no mundo das artes começou no Mamulengo Só Riso, de Fernando Augusto Gonçalves. Mas, longe da ideia glamorosa que alguns podem ter sobre a vida nos palcos, ele pontua: “Comecei como bilheteiro”. Depois, passou a esculpir, pintar e manipular bonecos, bordar figurinos, pintar e montar cenários, produzir, até chegar a atuar. “Não tinha glamour. Os bonecos eram pesados, a mão tremia, e eu era muito magro. Num curso que fui fazer, cheguei a ouvir que eu parecia um poeta inglês, prestes a morrer de tuberculose, e que, para fazer teatro, precisava ‘ter corpo de homem’”, lembra, entre risos.

E assim surgiu um operário da arte. Um artista – que não se quer multi, pois, para ele, tudo tem a mesma raiz, o desejo de contar histórias – que é ator, palhaço, doutor da alegria, escritor, diretor de teatro, desenhista, ilustrador, mamulengueiro, contador de histórias, cenógrafo, figurinista e estudante de Design Gráfico na Faculdade Aeso Barros Melo. “Para chegar aonde cheguei, demorou muito. Mas as coisas que fiz me colocaram em lugares muito felizes. Fui criando habilidades em meio às dificuldades, em razão da minha origem, que é pobre.”

Luciano é um artista que tem na palavra o seu sacro ofício e que não se fecha em limites, nem está preocupado se é bom no que faz ou se os seus trabalhos são perfeitos. “Se eu sentir que quero me manifestar por meio da fotografia, por exemplo, vou lá e fotografo.” Um artista que honra a etimologia do seu nome: trazer a luz, iluminar, de Luciano; e ligar, criar elos, conexões, do Pontes. Um artista que aposta mais na ética do que na estética da sua arte. “Minha arte está além da vocação. Faço o que acredito. E acredito na inteireza do que faço; que com o que faço posso ajudar o outro, o mundo.”

O trabalho com o Só Riso o levou a Charleville, na França, onde foi concorrer a uma vaga num curso do Centro Internacional da Marionete. Ele não foi selecionado, mas o Brasil o aguardava com boas surpresas. “Foi uma experiência muito forte, cresci muito, muitos aprendizados. Assim que voltei, entrei no Programa Doutores da Alegria e tive meu primeiro livro, Ouvindo as conchas do mar (Paulinas, 2002), aprovado. Foi quando tudo começou a acontecer: por meio dos Doutores, com dinheiro na conta e treinamento contínuo, comecei a lapidar muita coisa. Tive acesso a informações, pessoas, viagens, capacitações, trabalho de corpo, voz, do próprio palhaço.”

“O palhaço é a melhor parte de mim”, revela. “Ele ajudou em muitas coisas. Especialmente porque, no trabalho de palhaço em hospital, estabeleço relações de muita proximidade. O circo é grandiloquente, parece que está fora de você; o hospital, não. É o olhar, a sensibilidade e a delicadeza, tudo próximo. Traz muito da sua presença.”

Há 11 anos no Doutores da Alegria, organização da sociedade civil sem fins lucrativos que, desde 1991, atua junto a crianças hospitalizadas, seus pais e profissionais de saúde, o Dr. Lui, palhaço de Luciano, habita a memória de muitos. “Meu palhaço tem uma vida que existe na vida de outras pessoas, crianças, adultos, médicos e enfermeiros”.

Ser palhaço ou sacerdote da besteira, das inutilidades, da bobeira, não é uma escolha fácil. Cláudio Thebas, em O livro do palhaço (Companhia das Letrinhas, 2005), explica: “Todo mundo tem medo de cair no ridículo. E sabe por quê? Porque o ridículo é um abismo. (…) É por isso que muita gente se emociona com o palhaço: ele anda na corda bamba, sem medo de escorregar e cair. Corre, dança, rodopia, dá piruetas. Não percebe o perigo, ou não liga para ele. O que lhe interessa é agradar as pessoas e por elas ser amado, nem que para isso tenha que se expor às críticas dos outros, mergulhar no abismo”.


Ator em cena, interpretando o personagem cômico Mané Gostoso.
Fonte: Rogério Alves/Divulgação

E ser Doutor da Alegria, para Alice Viveiros de Castro, autora do livro O elogio da bobagem (Ed. Família Bastos, 2005), é um viés ainda mais delicado dessa escolha. “(…) os palhaços são doutores, doutores em besteirologia. Não são artistas apresentando-se para uma plateia de doentes; são médicos que visitam seus pacientes e ministram a eles um tratamento muito eficaz: o riso. Por trás da maquiagem e dos jalecos brancos estão artistas talentosos que passaram por um rigoroso processo de seleção e treinamento. Nem todo palhaço de palco e/ou picadeiro será um bom doutor e nem todo doutor será obrigatoriamente um excelente palhaço de cena. São universos diferentes. A relação doutor/paciente depende de um contato intenso, íntimo e pessoal; algo completamente diferente da relação estabelecida por um artista com seu público, seja ele pagante ou não.”

E, sim, na vida de Luciano sempre tem palhaçada: “O palhaço, na forma que eu entendo, não tem sua construção muita inventada; ele parte de você, da sua própria história, é você pelo avesso. Ele é sua sombra, o que você esconde, tem medo de revelar. E quanto mais revelo aquilo de que não gosto, mais divertido é. Como palhaço, você pode dizer, reagir, inventar, subverter as coisas, pois tem uma máscara que o ‘protege’. O palhaço também me ajudou muito nos aspectos pessoais: rir de mim mesmo, me colocar no ridículo, me expor mais. E consigo percebê-lo nas outras coisas que faço e na forma de escrever”.

HISTÓRIAS COM PÉ E CABEÇA
Depois da publicação de Ouvindo as conchas do mar, Luciano já publicou seis livros: o citado Belizbel, Disse me disse (Ed. Paulinas, 2010), Deslembrar (Editora Lafonte, 2009), O carrossel do tempo (Ed. Paulinas, 2007), Uma história sem pé nem cabeça (Ed. Paulinas, 2006), e Em briga de irmão quem dá opinião? (Editora FTD, 2006). No prelo, ele ainda tem Seu rei mandou (primeira publicação independente com incentivo do Funcultura) e As travessuras de Mané Gostoso – que são extensões de peças teatrais escritas, dirigidas e encenadas por ele. Assim como Belizbel, Seu rei mandou e As travessuras… são ilustrados pelo artista, mais uma maneira de expressão que ele encontrou. “Apesar de gostar bastante dos textos, eu me identifico muito com as imagens. O desenho é uma narrativa visual, tem uma história por trás. E a convivência com André (Neves, ilustrador de alguns livros dele) e outros amigos ilustradores me fez ter vontade de cuidar da totalidade do livro. Eu já tinha a habilidade de desenhar, só precisei investir mais, então, fiz aulas com Marcelo Bezerra e Badida.”

E Luciano escreve, seja em textos ou desenhos, como um poeta. Faz prosa como quem faz versos. Mas também verseja. Seus livros, para crianças de todas as idades, cumprem a função social e pedagógica de despertar o gosto pelo livro, pela literatura e pela leitura, de ajudar na compreensão do mundo, promover reflexões sociais, desenvolver a criticidade e libertar a imaginação. E as ilustrações são um complemento da narrativa, um estímulo a mais para a imaginação do leitor.

Outra extensão desse desejo de se expressar é a contação de histórias. “Eu já gostava de contar e o mercado editorial exige que você fale sobre seus livros. Mas percebi que para fazer isso eu precisava de outra forma de narrar, que não era aquela que estava escrita. Eu tinha muita coisa guardada, não publicada, então contar foi uma forma de deixar isso vivo.” Ele recorda que as histórias chegaram à sua vida muito antes do desejo de escrever. “Minha mãe sempre contava histórias para a gente dormir, mas era ela que dormia, e a gente saía para brincar.”

Para agregar conhecimento, e na tentativa de criar um canal único de comunicação, Luciano fundou a Cia. Meias Palavras, por meio da qual já escreveu, montou, dirigiu e encenou as peças Seu rei mandou e As travessuras de Mané Gostoso. “Logo quando saí do Mamulengo Só Riso, o texto de As travessuras… nasceu. Lá, tive uma experiência muito forte com o teatro de bonecos, em que pude atuar, cantar, dançar, improvisar, manipular, dialogar com a plateia. A Cia. nasceu da necessidade de executar minhas próprias ideias, defender a minha linguagem, juntar toda essa vivência, a oralidade, os contos populares e as linguagens teatrais.”

Recentemente, a Cia. recebeu o Prêmio Myriam Muniz, da Funarte, através do qual vai circular por quatro estados do Nordeste. O projeto de circulação inclui o espetáculo Seu rei mandou e As travessuras de Mané Gostoso, um bate-papo, chamado Conversas da Ribalta, e o espaço itinerante de leitura, com um acervo de livros temáticos. Na sequência, Seu rei mandou volta a entrar em cartaz no Recife, no Teatro Marco Camarotti, e o livro homônimo será lançado. “Por mais que as pessoas digam ‘tu fazes tanta coisa’, tudo é natural. Existe algo de conexão entre mim e o universo da criação. E muitas pessoas na história da arte já fizeram isso, no Renascimento, na Idade Média, mas me vejo muito mais como um mestre brincante, tenho esse saber, não sei de onde ele vem, mas ele existe, e é quase primitivo, intuitivo.” 

ISABELLE CÂMARA, jornalista.

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