E ser Doutor da Alegria, para Alice Viveiros de Castro, autora do livro O elogio da bobagem (Ed. Família Bastos, 2005), é um viés ainda mais delicado dessa escolha. “(…) os palhaços são doutores, doutores em besteirologia. Não são artistas apresentando-se para uma plateia de doentes; são médicos que visitam seus pacientes e ministram a eles um tratamento muito eficaz: o riso. Por trás da maquiagem e dos jalecos brancos estão artistas talentosos que passaram por um rigoroso processo de seleção e treinamento. Nem todo palhaço de palco e/ou picadeiro será um bom doutor e nem todo doutor será obrigatoriamente um excelente palhaço de cena. São universos diferentes. A relação doutor/paciente depende de um contato intenso, íntimo e pessoal; algo completamente diferente da relação estabelecida por um artista com seu público, seja ele pagante ou não.”
E, sim, na vida de Luciano sempre tem palhaçada: “O palhaço, na forma que eu entendo, não tem sua construção muita inventada; ele parte de você, da sua própria história, é você pelo avesso. Ele é sua sombra, o que você esconde, tem medo de revelar. E quanto mais revelo aquilo de que não gosto, mais divertido é. Como palhaço, você pode dizer, reagir, inventar, subverter as coisas, pois tem uma máscara que o ‘protege’. O palhaço também me ajudou muito nos aspectos pessoais: rir de mim mesmo, me colocar no ridículo, me expor mais. E consigo percebê-lo nas outras coisas que faço e na forma de escrever”.
HISTÓRIAS COM PÉ E CABEÇA
Depois da publicação de Ouvindo as conchas do mar, Luciano já publicou seis livros: o citado Belizbel, Disse me disse (Ed. Paulinas, 2010), Deslembrar (Editora Lafonte, 2009), O carrossel do tempo (Ed. Paulinas, 2007), Uma história sem pé nem cabeça (Ed. Paulinas, 2006), e Em briga de irmão quem dá opinião? (Editora FTD, 2006). No prelo, ele ainda tem Seu rei mandou (primeira publicação independente com incentivo do Funcultura) e As travessuras de Mané Gostoso – que são extensões de peças teatrais escritas, dirigidas e encenadas por ele. Assim como Belizbel, Seu rei mandou e As travessuras… são ilustrados pelo artista, mais uma maneira de expressão que ele encontrou. “Apesar de gostar bastante dos textos, eu me identifico muito com as imagens. O desenho é uma narrativa visual, tem uma história por trás. E a convivência com André (Neves, ilustrador de alguns livros dele) e outros amigos ilustradores me fez ter vontade de cuidar da totalidade do livro. Eu já tinha a habilidade de desenhar, só precisei investir mais, então, fiz aulas com Marcelo Bezerra e Badida.”
E Luciano escreve, seja em textos ou desenhos, como um poeta. Faz prosa como quem faz versos. Mas também verseja. Seus livros, para crianças de todas as idades, cumprem a função social e pedagógica de despertar o gosto pelo livro, pela literatura e pela leitura, de ajudar na compreensão do mundo, promover reflexões sociais, desenvolver a criticidade e libertar a imaginação. E as ilustrações são um complemento da narrativa, um estímulo a mais para a imaginação do leitor.
Outra extensão desse desejo de se expressar é a contação de histórias. “Eu já gostava de contar e o mercado editorial exige que você fale sobre seus livros. Mas percebi que para fazer isso eu precisava de outra forma de narrar, que não era aquela que estava escrita. Eu tinha muita coisa guardada, não publicada, então contar foi uma forma de deixar isso vivo.” Ele recorda que as histórias chegaram à sua vida muito antes do desejo de escrever. “Minha mãe sempre contava histórias para a gente dormir, mas era ela que dormia, e a gente saía para brincar.”
Para agregar conhecimento, e na tentativa de criar um canal único de comunicação, Luciano fundou a Cia. Meias Palavras, por meio da qual já escreveu, montou, dirigiu e encenou as peças Seu rei mandou e As travessuras de Mané Gostoso. “Logo quando saí do Mamulengo Só Riso, o texto de As travessuras… nasceu. Lá, tive uma experiência muito forte com o teatro de bonecos, em que pude atuar, cantar, dançar, improvisar, manipular, dialogar com a plateia. A Cia. nasceu da necessidade de executar minhas próprias ideias, defender a minha linguagem, juntar toda essa vivência, a oralidade, os contos populares e as linguagens teatrais.”
Recentemente, a Cia. recebeu o Prêmio Myriam Muniz, da Funarte, através do qual vai circular por quatro estados do Nordeste. O projeto de circulação inclui o espetáculo Seu rei mandou e As travessuras de Mané Gostoso, um bate-papo, chamado Conversas da Ribalta, e o espaço itinerante de leitura, com um acervo de livros temáticos. Na sequência, Seu rei mandou volta a entrar em cartaz no Recife, no Teatro Marco Camarotti, e o livro homônimo será lançado. “Por mais que as pessoas digam ‘tu fazes tanta coisa’, tudo é natural. Existe algo de conexão entre mim e o universo da criação. E muitas pessoas na história da arte já fizeram isso, no Renascimento, na Idade Média, mas me vejo muito mais como um mestre brincante, tenho esse saber, não sei de onde ele vem, mas ele existe, e é quase primitivo, intuitivo.”
ISABELLE CÂMARA, jornalista.