Nas obras setentistas As lágrimas amargas de Petra Von Kant, Martha e Medo do medo, as protagonistas são levadas ao desespero e à perda de identidade, em decorrência da opressão do casamento e do sistema hierárquico de poder. Na pesquisa O cinema-teatro de Fassbinder, Samuel Paiva reflete: “As mulheres de Fassbinder são reais, elas vivem numa sociedade em que os princípios que valem são os do patriarcado e expressam suas dores”.
Para o amigo de RWF e historiador de cinema Christian Braad Thomsem, “ele foi o intérprete visual da Alemanha do século 20, da República de Weimar ao terrorismo. Mas nunca descreveu a situação política teoricamente. Ele expressa como as condições influenciam a vida afetiva dos indivíduos”.
Obcecado por trabalho, Fassbinder proferia frases como “posso dormir quando estiver morto”, já que descansava menos de três horas por dia, gastando milhares de marcos por mês em cocaína. “Ele costumava usar pó como motivador profissional. Isolava-se enquanto escrevia roteiros e ditava ao gravador. Muitas pessoas não sabem o que estão fazendo drogadas, mas ele sabia”, observa Thomsem.
Parceiros fiéis seguiram o diretor por toda vida, como os atores da companhia Antiteatro, Hanna Schygulla, Harry Baer e Kurt Raab, os namorados e namoradas – frequentemente encaixados em papéis nos filmes –, a exemplo de Gunther Kaufmann, Armin Meier, Ingrid Caven e Juliane Lorenz. Thomsen descreve o ambiente de trabalho de Fassbinder como “uma atmosfera carregada, mas, ao mesmo tempo, tranquila”. “Ele nunca fingia seus humores. É possível dizer uma coisa sobre Fassbinder e ao mesmo tempo dizer o oposto”, definiu. Thomsen dirigiu o documentário Amar sem pedir nada em troca, lançado no Festival de Berlim, este ano. No longa, uma entrevista inédita – filmada em 1978 – mostra um Fassbinder vulnerável, e artistas que estiveram presentes em sua obra discutem sua vida.
No documentário, Margit Carstensen, estrela de Petra Von Kant, longa no qual interpreta a estilista rica que é usada pela amante, afirma: “Muitos o consideravam perigoso, simplesmente porque Fassbinder tinha coragem de ser verdadeiro, como poucos. A maioria das pessoas possui o eu interno incompatível com o externo. Eu poderia honestamente mentir enquanto estivesse interpretando as personagens criadas por Fassbinder, com fins de criticar a sociedade, pois precisava atuar com a dualidade a fim de produzir um personagem como os existentes na vida real”.
Em As lágrimas amargas de Petra Von Kant, a estilista rica é usada pela amante.
Foto: Reprodução
VAIADO NA ESTREIA
Os primeiros trabalhos de Fassbinder foram contemporâneos ao declínio do studio system americano e à chegada de diretores daquela que ficou conhecida como a New Hollywood, ou pós-Hollywood clássica, período entre 1964 e 1982, em que surgiram nomes como Woody Allen, Stanley Kubrick, Francis Ford Copolla e Robert Altman.
Fassbinder era um rapaz de 20 anos assistindo ao crescimento da Alemanha como potência econômica mundial. Na série de debates La rage de Fassbinder, promovida em 2005, pelo Centro Georges Pompidou, em Paris, a atriz Hannah Schygulla afirmou que o diretor buscava um mundo mais anárquico, menos hierárquico. “Mas, nascer nessa geração pós-guerra era como se a herança familiar fosse uma agressão”, disse, “por isso ninguém gostava de tocar no assunto”. RWF contrariou o senso comum, mostrando que os jovens e espectadores queriam voz própria.
Os primeiros personagens do diretor alemão eram indiferentes e frios. Como assinala o jornalista Roberto de Acioli Oliveira (Fassbinder e Hollywood, 2009), as suas obras iniciais traziam figuras monossilábicas, em que os sentimentos não passavam de suspeita de emoção. O historiador Christian Braad Thomsem conta que se impressionou ao ver, em 1969, o estático O amor é mais frio que a morte, estreia de Fassbinder na Berlinale. “Achei o máximo. Os cortes fílmicos se faziam sentir, mas o filme foi vaiado pelo público. Vi Fassbinder sentado num bar, senti que aquele garoto de 24 anos precisava de palavras de conforto. Ele apenas agradeceu, não podia se importar menos com as vaias ou minha atitude. Muitos em seu lugar desistiriam da carreira. Mas ele sabia que nos próximos 13 anos criaria muitos filmes.”
O amor é mais frio que a morte é uma paródia do filme noir americano. O longa retrata um criminoso chamado Franz Walsh, que, junto à namorada e ao recém-conhecido Bruno, envolve-se com assassinatos, roubos e prostituição. São como alemães presos dentro de filmes americanos. Remete-nos ao Acossado (1960) de Jean-Luc Godard, em que Jean-Paul Belmondo interpreta um fora da lei nômade, porém, mais falante que Franz.
Tal semelhança, segundo o crítico Luiz Soares Júnior, deve-se ao ponto de vista. “O pastiche é o elo mais definidor entre eles. Para modernistas como Fassbinder e Godard, é indispensável estar acima do bem e do mal. Antes, os filmes clássicos, e isso inclui o noir, repousavam sobre o ideal do bom, belo e justo. Havia uma ideia clara sobre quem era o vilão. Os modernos preferem pontos de vista cínicos, niilistas.”
O medo devora a alma, de 1974, foi livremente baseado no clássico Tudo o que o céu permite. Foto: Reprodução
Fassbinder voltou-se ao gênero dos mocinhos e mocinhas dramáticos guiado pelas críticas sociais sutis do mestre do melodrama Douglas Sirk. Mas, ao contrário dos hollywoodianos, ele não carimbava finais felizes, ganhando coragem para conquistar o público com sua visão controversa de mundo. Seu primeiro sucesso internacional foi O mercador das quatro estações, de 1972, filme sobre um vendedor de frutas que sofre por ser considerado um perdedor.
Mais aclamado pela crítica, entretanto é O medo devora a alma (1974), livremente baseado no clássico dirigido por Sirk, Tudo o que o céu permite (1956). A versão alemã trata de um relacionamento inusitadamente lúdico entre uma mulher de classe média baixa, beirando os 70 anos, e um jovem marroquino. O encontro de, respectivamente, Emmi e Ali, acordará a xenofobia dos vizinhos, além do estranhamento ao casal de grande diferença de idade.
O medo devora a alma evidencia que não há mais lugar para a visão clássica do cinema, ao mostrar, de maneira seca e direta, as dominações sociais, antes camufladas. Emmi age como quem viveu o nazismo, Ali, a submissão treinada. A fim de celebrar o recém-noivado, ela leva o noivo marroquino para um restaurante, anunciando o lugar – alegremente – como o preferido de Adolf Hitler.
O diretor pernambucano Daniel Aragão (autor dos longas Boa sorte, meu amor e Prometo um dia deixar essa cidade), afirma Fassbinder como uma de suas maiores influências. “Em O medo devora a alma, a questão do imigrante, que está entre seus filmes mais fortes, chega ao ápice. Há frieza na construção de situações bastante dramáticas, emocionais. Fassbinder me ensinou que é possível deixar uma marca na direção, mesmo quando se trata de uma história clichê e desprezível.”
REFLEXOS NO ESPELHO
A fim de dar materialidade aos pensamentos, Fassbinder lançava mão de um artefato também muito presente em Sirk: o espelho. O crítico Luiz Soares conta que “os espelhos de RWF revelam que todo narcisismo é devedor de um jogo social. Não há ‘natureza’, podemos dizer, pois tudo o que nos aparece é intricado na teia da coerção social, guiado por valores de certa cultura”.
O mercador das quatro estações conta a história de um vendedor de frutas que sofre por ser considerado um perdedor. Foto: Reprodução
Quando, pela primeira vez, Emmi observa Ali como uma pessoa bonita, ela o vê através do espelho. Quando Ali se sente culpado por suas atitudes em relação à Emmi, encara-se no reflexo próprio e agride o rosto num ato de ofender a figura pela qual a mulher se apaixonou. O jogo das reflexões aparecerá em vários de seus filmes. “O reflexo não é subjetivo. Fissura a ideia herdada pela percepção clássica de que o cinema é o plano da verdade. Não, o cinema é uma arte do engodo”, ressalta Luiz Soares.
O casamento de Maria Braun, primeiro exemplar da trilogia BRD (sigla para Bundesrepublik Deutschland, República Federal da Alemanha), seguido por O desespero de Veronika Voss e Lola, tornou-se o maior sucesso comercial de Fassbinder, firmando-o como cineasta popular e crítico. Nos anos 1940, Maria Braun é a representante do futuro de uma grande Alemanha, enquanto o marido desaparecido na guerra é o símbolo do passado nazista que quer ser esquecido. Luiz Soares aponta que, “quando Braun sabe da morte de seu marido no front, não chora, ela abre uma torneira deixando a água escorrer pelo braço. A ideia é opor uma fonte reprimida, os sentimentos, à outra que jorra materialmente: essa fonte reprimida sai ‘incorporada’ pela água da torneira”.
O alemão mostra seus objetos de cena como metáforas. Manequins estão espalhados no cenário da estilista Petra Von Kant. Marlene, sua empregada muda, é sempre ordenada aos gritos pela patroa, enquanto assiste ao seu definhamento por conta da modelo Karin. Na verdade, quem manipula o jogo de cena é Marlene, quando troca os móveis e bonecas de lugar, complicando a psicanálise das relações no filme. Luiz Soares raciocina: “Ela não fala, sua única forma de expressão é a orquestração do cenário, nisso ela é representação do diretor na cena. O ponto de vista sobre a relação entre Petra e Karin é dado por ela, símbolo do voyeur”.
“O cinema sem Fassbinder seria infinitamente mais sem graça”, opina Ricardo Pretti, um dos cineastas do coletivo cearense Alumbramento. Filmes do grupo, como Cartaz, Doce amianto e No lugar errado, remetem à relação com o teatro, à câmera, às cores e aos artifícios usados na linguagem cinematográfica do diretor alemão. “Ele tinha um conjunto de pessoas que o ajudava em quase todos os filmes. Isso certamente colaborou na consistência de seu estilo. A Alumbramento, de certa forma, busca dar continuidada a essa tradição de trupe.”
Para Luiz Soares Júnior, coletivos como o pernambucano Surto e Deslumbramento e o paulista Cinefusão também dialogam com o espírito criativo do diretor, em que as narrativas cinematográficas se distanciam da vida real para denunciar a artificialidade intrínseca à hipocrisia humana. Com personagens lacônicos ou melodramáticos, Fassbinder nos oferece interpretações do que são as carcaças humanas e do que elas guardam por dentro.
CLARISSA MACAU, jornalista.