“Imaginem, além de uma nova textura, mais agradável aos dentes – possibilitando o ato de mastigar a carne e não apenas rasgá-la –, havia, acima de tudo, um tal de ‘sabor’, resultado primeiro da transformação da carne oriunda da caça em algo com um toque defumado”, pontua o “papa” do churrasco no Brasil, Marcos Bassi, no livro Carnes e churrasco.
A soma proteína + brasa obteve êxito irreversível, e atravessou os milênios seguintes. E se teve algo que não mudou ao longo do tempo, entre as cavernas e os dias atuais, foi o ato de grelhar a carne no fogo. Aliás, de atávico mesmo só o prazer propiciado pelo churrasco, porque, no que tange às técnicas empregadas nele, houve uma evolução pautada na melhora – objetivo central das evoluções.
Na trajetória do preparo de cortes animais sobre labaredas, as mudanças ocorreram principalmente no recipiente em que se coloca o carvão ou a madeira para queimar. Inclusive, dispensando os comburentes tradicionais – como as churrasqueiras elétricas e o char boiler (grelhas de alta potência que funcionam a gás). Um dos primeiros passos evolutivos foi anotado há 35 mil anos, com o homem de Cro-magnon, que fazia uma cavidade no chão para pôr as brasas – tradição ainda mantida no Brasil, sobretudo na Região Sul, para assar costelas bovinas ou animais inteiros, como um carneiro.
No país, ainda no período colonial, os índios nativos usavam o fogo em um buraco na terra para assar aves e peixes, o moquém, do tupi moka´em, origem da expressão moquear. O que nada mais é do que deixar as carnes sobre grelhas de madeira até ficarem defumadas, como nos lembra o folclorista potiguar Câmara Cascudo, no livro História da alimentação do Brasil. Mas foi com os colonizadores portugueses e imigrantes europeus que o Novo Mundo aprendeu a fazer o churrasco da forma que é executado hoje. E, necessário registrar, aprimorando a técnica para obter resultados muito mais exitosos.
Argentinos reunidos para preparar a parrilla. Imagem: Reprodução
MELHOR CARNE
Apenas na América do Sul, Argentina, Brasil e Uruguai disputam o posto do melhor churrasco do mundo. Em comum, o uso do sal grosso como único tempero admitido. Em relação à técnica, para começar, brasileiros preferem o carvão já processado e comprado em pacotes, enquanto os argentinos preferem o método da parrilla, com a madeira sendo queimada ao lado da grelha, e com a brasa resultante sendo puxada para a área onde estão as carnes. “Para muitos, não faz grande diferença, já que, no final das contas, o que vai assar a carne é o calor do carvão. Mas os argentinos garantem que o trabalho a mais vale a pena, pela possibilidade de escolher a madeira a ser utilizada, que pode propiciar um sabor extra”, conta o mestre churrasqueiro da unidade recifense do Pobre Juan, Ariston Alves.
Outra diferença passa pela posição das grelhas: no Brasil, elas são assentadas horizontalmente nas churrasqueiras, já nos dois países vizinhos, ficam inclinadas, facilitando o escoamento da gordura. A parrillera, famosa grelha argentina, e amplamente usada no Brasil nos restaurantes especializados, é uma das mais eficazes na garantia de uma boa carne. “Tudo por conta de um design triangular nas grelhas feito sob medida, para não deixar os sucos da carne se perderem, permitindo um processo de condensação, que assa e cozinha, deixando a proteína macia e suculenta”, complementa Ariston.
As mudanças também ocorreram no recipiente em que se colocam os comburentes para queimar. Da mais moderna churrasqueira – algumas com controle eletrônico de temperatura, até a improvisada, construída com alguns tijolos lado a lado. “A chegada dos primeiros utensílios de metal modificou os hábitos de cozimento da humanidade, principalmente ao permitir as preparações culinárias dentro das habitações – o costume passou a vigorar sobretudo na Europa, onde imensas lareiras eram usadas como fogão e grelha”, sublinha Cascudo.
Animais de caça e aves eram temperados com especiarias e colocados em espetos para assar. O olhar em perspectiva para um passado, ainda que recente, também chama a atenção para uma mudança no gosto à mesa.
PAIXÃO POR PICANHA
Herdeiro de uma das famílias pioneiras em trazer o conceito de rodízio de carne para o Nordeste, com o extinto Laçador, no final dos anos 1970, o mestre parrillero Paulo Brol Filho, hoje à frente da churrascaria Tapa de Cuadril, conta que foi nessa época que a picanha chegou por aqui. “Era um corte subaproveitado no mercado. Mas, por conta de sua facilidade no manuseio, associado a um sabor nunca antes experimentado, foi crescendo e virou paixão absoluta”, rememora.
Segundo ele, não seria exagero dizer que foi essa carne que colocou o churrasco na preferência dos brasileiros. “A picanha foi a grande responsável por fazer as pessoas virarem adeptas de carne na brasa, ao ponto de eleger o churrasco como um dos pratos nacionais. Era a rainha do fim de semana”, defende. Os fatores econômico e alfandegário também sublinharam a força do corte, uma vez que, na Argentina, um dos principais países exportadores, a picanha não tem valor comercial, resultando em um grande montante de exportação para o Brasil.
Mas, como o gosto do consumidor vem se transformando, embalado, muitas vezes, por tendências que dão contorno ao universo gastronômico, a peça vem perdendo espaço. “Por conta da introdução de novos cortes nobres, ela já não é a mais pedida, e, mês a mês, registra quedas de consumo”, aponta Jair Konrad, gerente-geral do Spettus, churrascaria que funciona no sistema de rodízio. Segundo o gestor, o bife de chorizo, o bife ancho e a paleta de cordeiro são as principais rivais. Para se ter uma ideia, atualmente são consumidas cerca de quatro toneladas de picanha por mês – há dois anos, essa demanda era 40% maior.
O típico churrasco brasileiro é feito com carvão e grelha na horizontal. Foto: Divulgação
A rede Pobre Juan, instalada no shopping RioMar, tem números mais contundentes, que reforçam essa perda de prestígio – pelo menos no que se refere ao mercado paulista. Segundo Luiz Marsaioli, um dos sócios do empreendimento, 50% das vendas da casa são de bife ancho e apenas 20% são referentes à picanha em seus dois cortes, o tapa de cuadril e o bife de tira. “Esse ‘sair de cena’ é uma evolução natural. Há 30 anos, fazia-se churrasco com linguiça, lombo, frango, alcatra. Depois, passamos para o filé, a picanha. Atualmente, cortes do contrafilé são o hype, não vai demorar para as carnes de bois japoneses (kob beef) se tornarem populares também”, prognostica.
Para Paulo Brol, essa evolução passa ainda pela mudança na perspectiva alimentar, pela relação entre qualidade e quantidade, e pela necessidade de experimentar preparos. “As pessoas não querem mais se satisfazer apenas nutricionalmente e, sim, comer menos, investindo em qualidade e se permitindo novas experiências”, diagnostica. Quando abriu o Tapa de Cuadril, em 2012, o empresário assistiu ao grande assédio dos clientes aos cortes tapa de cuadril e bife de tira, ambos retirados da picanha.
“Muitas vezes, só uma nomenclatura nova já desperta o desejo. Mas o tapa de cuadril nada mais é do que a picanha, só que sem aquele formato de bola presa no espeto, tem um corte que prende mais os sucos. Já o bife de tira é uma modalidade transversal da mesma proteína, ganhando em textura, mais macia”, explica. Hoje, entretanto, os dois já perderam a preferência para o bife ancho, seguido pelo prime rib de angus e o bife de chorizo. “Estamos falando de uma média. Mas, quando recebemos novos cortes, de forma pontual, e sugerimos ao cliente, são sempre a primeira opção. O novo seduz”, destaca.
EDUARDO SENA, jornalista.