NORDESTE INTOCADO
Sua trama reúne, num povoado com meia dúzia de casebres, dois irmãos (Cláudio Jaborandy e Irandhir Santos) que mimetizam Caim e Abel, com a filha de um deles (Débora Ingrid) como foco de tensão e disputa de afeto; uma mulher (Marcélia Cartaxo) abandonada pelo marido e cortejada por um sanfoneiro cego e insistente (Leo França); e uma religiosa e solitária avó (Zezita Matos), que experimenta o frescor de sensações há muito esquecidas quando o neto (Maxwell Nascimento) retorna de São Paulo. A paisagem – chão rachado, árvores secas, vastidão de horizonte sem qualquer resquício de contemporaneidade – é personagem também.
“A pequena comunidade onde filmamos tem referências próprias de tempo e espaço. Lá, não pega celular e a única comunicação é através do orelhão que aparece no filme. É um Nordeste intocado, sem internet. É um sertão sem o desenvolvimento todo da Transnordestina, da transposição do São Francisco.” O sertão intacto, prossegue o diretor, foi “essencial para o processo da história que estávamos contando”. “Aquele sertão é uma perfeita metáfora da alma humana. Lá, as relações interpessoais acontecem de maneira mais honesta, mais direta, mais franca, ao contrário dos entornos urbanos, onde tudo fica escamoteado”, diz à Continente.
Camilo não trabalhou com preparador de elenco, como revelou em Paulínia, e submeteu seus atores a ensaios e leituras nas mesmas casas em que seus personagens viviam. “Eu escrevi o roteiro, mas não tinha nada fechado ou amarrado definitivamente. Juntos, fomos descobrindo aqueles personagens, estabelecendo um elo entre os atores e aquele lugar, uma relação de confiança mesmo. Foi um processo delicado, com muito respeito e cumplicidade, sempre na horizontal, nunca de cima para baixo. Era como se todos nós estivéssemos possuídos por uma energia maior, superior”, acrescenta o diretor. Para Zezita Matos, a criação foi enriquecida com essa vivência: “Fui criando a Das Dores durante esse tempo, convivendo com ela, conhecendo aquela mulher e tentando descobrir sua verdade”.
No caso de Débora Ingrid, por exemplo, Camilo a colocou para cozinhar e arrumar a casa tal qual Alfonsina faz. “Me senti à vontade para dar um mergulho na vida dela. Quando estávamos ali, era como se tivesse uma suspensão do tempo e da vida, como se fosse um lugar abstrato”, conta a atriz. À perspectiva de “abstração” do sertão, vinculam-se uma representação imagética com tons ocres – excelente trabalho de fotografia de Beto Martins, também estreando no formato do longa-metragem – e uma decupagem que maximiza a sensação do tempo que não se passa.
O primeiro movimento de câmera se dá aos 50 minutos, quando Joãozinho, o personagem de Irandhir Santos, veste-se num manto que ele mesmo coseu para dublar Fala, dos Secos & Molhados, ante uma plateia atônita. Na cena, a câmera o circula de modo ininterrupto. “A ideia era de que o espectador voasse junto, numa sensação libertária da criação artística, da vertigem da arte. Poesia, sonho, arte, rebeldia: a cena sai do plano material e entra um pouco no metafísico”, filosofa Camilo.
A história da eternidade tem trilha sonora original de Zbigniew Preisner, compositor de alguns filmes de Krzysztof Kieslowski (1941-1996), e arranjos para acordeon de Dominguinhos (1941-2013). São nomes de impacto na órbita do filme, que agora se prepara para percorrer outros festivais.
De certo modo, Camilo Cavalcante entende o que aconteceu naquela noite de julho. “Chegar ao Sudeste com o filme embaixo do braço, fazer essa primeira exibição pública, ter a possibilidade de dialogar com a imprensa e ainda ser premiado... Tudo isso foi bom demais. O resultado foi muito melhor do que eu poderia ter imaginado”, reconhece. Com suas “meninas douradas”, agora guardadas em casa, ele se prepara para viajar o Brasil, apresentando e discutindo o filme. De avião, de van, de carro, não importa como, mas sempre com seu sertão – bíblico, imutável, rígido como a pedra do poema de João Cabral de Melo Neto que ele declamou em Paulínia – dentro de si.
Leia também:
"Vou fazer uma análise da obra de Simião Martiniano"