O gosto do mel depende do tipo de néctar coletado pela abelha, ou seja, se provém de flores específicas, como a da laranjeira, ou de várias, como no mel silvestre. Os méis escuros, repletos de sais minerais, tendem a ser picantes e amargos. Os claros são de utilização mais fácil por serem menos invasivos. O importante é prezar pelo equilíbrio entre eles e outros ingredientes, para evitar que o tom doce não mascare a receita. O sabor e aroma do mel não são influenciados só pelas floradas das quais o pólen é retirado, mas pelo tipo de abelha que o leva. Atualmente, uma das iguarias mais queridas dos chefs são os exóticos méis de abelhas nativas brasileiras.
ABELHAS
A abelha mais conhecida do Brasil não é brasileira. Com seus temidos ferrões, a Apis Mellifera é africanizada (cruzamento de insetos importados da Europa e África), e zune por aqui desde o século 19. A estrangeira é dona dos méis mais famosos do país, em razão da sua eficiência de coleta, rendendo mais de 40 litros ao ano por colmeia. Quando beija as diversas flores, do cajueiro ao eucalipto, compõe líquidos doces, pouco úmidos e espessos. Enquanto isso, as abelhas meliponíneas do Brasil, chamadas “sem ferrão”, fazem pouco mais de um litro do alimento. Produzem um mel fino, que torna os sabores das floradas mais evidentes. Apesar de desconhecidas pela maioria, são cultivadas artesanalmente desde o início da história do país por índios, caboclos ou pesquisadores, hoje chamados meliponicultores – usualmente, de famílias que têm o mel como fonte de renda, em comunidades pelo país, por exemplo, nos estados da Amazônia, de Pernambuco, do Rio Grande do Norte e Paraná. Um atrativo ao seu cultivo é o baixo custo. Dispensam roupas de proteção, pois não ferroam.
“É bom deixar claro que a comparação não é de um mel de abelha com outro, mas o da Apis Mellifera em relação aos méis de mais de 300 espécies brasileiras, como a uruçu e jandaíra, que estão se tornando um atrativo gastronômico pelo teor menos doce e complexo”, conta Jerônimo Villas-Bôas. “O mel nativo é suave. Muda de sabor não só a partir de diferentes floradas, mas também de uma colmeia para outra, dentro de uma mesma espécie”, diz o presidente da Associação Pernambucana de Apicultores e Meliponicultores, Alexandre Moura. Porém, em meio a tantas qualidades, há um problema: não é reconhecido como mel pelo Serviço de Inspeção Federal do Ministério da Agricultura, por ter umidade maior que a esperada num exemplar “comum” (a referência é o mel da Apis). Assim, tende à fermentação e é considerado clandestino para comercializar, a não ser que seja pasteurizado.
A chef Manoela Buffara utiliza mel nativo em suas criações. Foto: Divulgação
Nomes da gastronomia nacional como Alex Atala, Alberto Landgraf, Manoella Buffara, Caco Marinho e César Santos usam as suas imagens e seus cardápios para divulgar e defender a legalização do nativo no comércio. Estão dispostos a assumir o mel fermentado: “Isso não quer dizer que é estragado. O ideal é um processo controlado, deixando uma acidez com leves traços alcoólicos. Muitos chefes de cozinha têm vontade de usar, mas temem comprá-lo pela questão da legalidade”, afirma Villas-Bôas que, em anos de pesquisa, viajando por comunidades ao redor do Brasil, nunca viu um caso de prejuízo à saúde causado pelo mel. “Alguns meliponários usam o processo de fermentação para conservar. Como o mel está fermentado e vem com uma rolha na garrafa, quando aberto, solta um som sutil feito espumante. Dura um ano, se colocado na geladeira”, explica Moura. “Costumo comprar garrafas e deixar fermentando. Aprecio os tons de acidez que o mel desenvolve com o tempo”, diz o paranaense Alberto Landgraf, considerado o melhor chef da América Latina pela revista Four, e dono do restaurante Epice, em São Paulo. Ele usa os méis nativos para substituir o açúcar e ressaltar sabores básicos. Um de seus pratos é o palmito pupunha com pera fermentada e mel nativo. “Ele fica bem em preparações ácidas, ou com notas tostadas de amargo. É versátil, por não ser tão doce quanto os méis comuns”, observa. Outra combinação do menu de Landgraf é o palmito pupunha cozido a vácuo, grelhado com gelatina de mel de jataí – líquido que lembra o gosto da uva.
No ano passado, Manoella Buffara sediou no seu restaurante curitibano o projeto Menu degustação mel da mata, em parceria com 60 famílias moradoras do litoral do estado do Paraná. A proposta do festival foi colocar à disposição dos clientes pratos que dialogassem com os méis de abelhas brasileiras. “Distintos do mel comum, que puxa os pratos para um agridoce, os nativos podem substituir não só o açúcar, mas outros temperos. A uruçu-amarela possui amargor doce, indo bem com carnes de caça, como o magret de pato. O mel de tubuna pode ser usado sem problemas em salgados, pois não é doce. Fica ótimo em carnes cruas de peixe, carpaccio e steak tartare, acentuando o sabor”, observa ela. Entre seus ingredientes, ainda guarda o acre mel de abelha mandaçaia, capaz de substituir o sal e limão. Outro mel interessante é o da abelha guaraipo, com tons de mato e frutas secas.
“Porém, pela quantidade de produção por colmeia, qualquer nativo custa 10 vezes mais que o mel tradicional. Algo como 180 a 240 reais por litro. Por isso, uso nos festivais e não no dia a dia”, lamenta o chef Caco Marinho. Ele tem predileção pelo mel de uruçu nordestina. Carré de paca com manteiga de coentro bravo, banana da terra e mel de uruçu é um de seus pratos. Basta um fio de uruçu para valorizar a comida com agradável sabor avinagrado e licoroso. Combina também com os mais simples assados de frango.
Infelizmente, as abelhas, sejam as Apis ou as nativas, estão em perigo de extinção. Uma das razões do “transtorno do colapso de colônias” (fenômeno do desaparecimento de abelhas no planeta) é o uso excessivo de agrotóxicos nas lavouras, visitadas principalmente pelas africanizadas. As abelhas nativas são vítimas dos meleiros mal-intencionados. Pessoas que encontram as colmeias naturais destroem-nas para fugir com a produção e vendê-la, deixando os insetos sem casa. Como são as principais polinizadoras das plantações do mundo, as plantas morrem sem abelhas, escasseando a alimentação dos animais, o que inclui e influencia os seres humanos. A perda do mel será um dos tristes efeitos adversos. Não só a gastronomia, mas a humanidade deve motivar a sobrevivência das abelhas e do seu apetitoso produto.
O MEL QUE VAI AO COPO
O mel é protagonista da primeira bebida alcoólica da humanidade: o hidromel, líquido dos deuses na história clássica. Sommelier curitibano, Luis Felipe Moraes é produtor artesanal dessa combinação de água e mel fermentada, pouco divulgada na atualidade. “O mel está para o hidromel como a uva para o vinho. As características do mel usado, da Apis ou nativo, serão passadas ao hidromel e é possível personalizar. Há várias categorias, como o capiscumel, que adiciona pimentas na mistura tradicional; metheglyn, com ervas; e bouchet, elaborado com mel caramelizado”, diz. Eles podem ser secos, meio-secos, doces, tendo níveis com gás ou sem, frisante ou espumante.
Foto: Clarissa Macau
“A tradição faz bem, quando junta cachaça e mel”, diz Jerônimo Villas-Bôas. Tanto o mel de Apis, quanto os méis nativos, como o de jataí e blends compostos de mel de uruçu com jupará, harmonizam com notas de madeiras – nas quais as cachaças puras são envelhecidas –, como a da umburana, do bálsamo e do carvalho. Os méis suavizam a agressividade do álcool.
Existem, ainda, bebidas prontas, misturando cachaça, mel e limão. Além das raras e saborosas aguardentes de mel, como a Melissa – relíquia produzida até o início dos anos 2000, pelo meliponicultor pernambucano Carlos Chagas, dono da Granja São Saruê, em Igarassu. Na sua composição, isenta de metanol, o mel de abelha é fermentado no lugar da cana-de-açúcar. Quando o mel é envelhecido em barril por quatro anos, o sabor parece bastante com um uísque menos forte e seco. Para finalizar essa lista, existem no mercado as cervejas de mel, mais cremosas que as tradicionais, refrescantes e com um aroma elegante e adocicado, um bom exemplo é a britânica Waggle Dancer.
CLARISSA MACAU, jornalista.