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Conversa com o artista que vai morrer

TEXTO Ronaldo Correia de Brito

01 de Agosto de 2014

Gravura 'Suzana no Banho', Gilvan Samico

Gravura 'Suzana no Banho', Gilvan Samico

Imagem Reprodução

– Posso confessar uma coisa? O que me mantém vivo é a gravura que produzo todo ano.

Calou porque se sentia cansado. Ficava exausto ao menor esforço, até mesmo o da fala. Nunca fora homem de muita conversa sobre a técnica de gravar e imprimir, nem explicava os resultados surpreendentes que alcançava. Sempre se recusou a ser um teórico da arte, os ensinamentos que arranquei dele me custaram esforço e paciência, como se garimpasse em mina de veio profundo. A doença deixou-o loquaz, os amigos ficavam surpresos com sua vontade repentina de falar.

Conversamos num espaço entre a sala de visitas – que nunca é usada, parecendo uma ágora muda com filas de cadeiras e uma marquesa de palhinha – e a sala de jantar, as duas separadas por um biombo de treliças. A primeira sala não convida ao descanso. Na saleta, também não ficamos mais confortáveis, embora os donos da casa nos acolham muito bem. Arrumado numa poltrona, por conta de dores nas costas, uma sonda renal, um saco coletor de urina e um cateter liofilizado em um dos braços, ele vez por outra se queixa. Eu velo meu olhar clínico e finjo não perceber o quanto está anêmico, as escleróticas ictéricas, a barriga volumosa pela ascite. Com tudo isso, a cada visita eu percebo uma nuança de beleza que ele nunca revelara e só agora deixa escapar.

– Tanto trabalho, tanta coisa por fazer e não tenho coragem para nada. Mal consigo assinar as gravuras.

– É assim mesmo, paciência.

Não costumo mentir com acenos de cura, respeito o homem à minha frente. Nas paredes da imensa sala onde conversamos, a façanha de sua vida: dezenas de gravuras e pinturas a óleo.

– Gosto da cor na última gravura, um pouco mais acrescentada. É como se você fosse generoso com as pessoas. Também aprecio o número de figuras acima do habitual. Será que você ficou barroco?

Rio. Ele disfarça a dor e também ri. Passo a mão na cabeça dele, assanho os cabelos, aproximo meu rosto. Nunca nos permitimos tamanho afeto.

– É, percebi isso. Foi espontâneo, nada pensado. Sempre tive medo de usar cor na gravura. Ela é apenas um sinal.

– Mas nessa economia se revela grandeza.

– Você está dizendo. Não vejo isso tudo.

Rimos novamente. Levanto e me aproximo de uma gravura, tiro os óculos para ver melhor de perto. Há quantos anos eu procuro desvendar os traços nascidos dos cortes na madeira, investigando os conceitos de exatidão e economia? Certa vez, estive em uma sala na Pinacoteca do Estado de São Paulo – a última de cinco salas com exposição do artista –, mostrando apenas duas gravuras que se olhavam em espelho, e dois altares com as respectivas matrizes. O muito revelado no mínimo.

– Minha pintura é toda em primeiro plano, como a gravura. Nunca soube criar planos de profundidade.

Não cheguei nesse ponto da conversa, já escutei essa queixa uma centena de vezes. Ainda me detenho no silêncio criado pelos brancos, os espaços sem gravar. Nosso diálogo foi sempre pautado por esse mesmo silêncio, pausas em que as palavras se plantam como os riscos na madeira.

– Se pelo menos eu tivesse força. Esbocei a gravura desse ano, mas não passei do primeiro estudo. As pessoas até gostaram. Como eu vou gravar, se falta coragem para o desenho? Estou perdido.

O lamento soa como acusação. A quem? Lembro um verso terrível de Jorge Luis Borges: “Não esperes que o rigor de teu caminho tenha fim”. Estremeço. Venho morrendo com amigos que partem e me deixam sem roteiro, porque eles representavam um hábito de minha vida, um lugar que eu aprendera a visitar sem medo. Dizem que a amizade se consolida depois que dormimos debaixo do mesmo teto e comemos um quilo de sal juntos. Um quilo de sal possui infinitas moléculas, demanda um tempo enorme para ser consumido. Será que terei vida bastante para outros quilos de sal? Pergunto-me e olho o homem à minha frente. Passaram-se 40 anos, calendário vagaroso, sujeito a sol e chuva. Meses antes, quando ele ainda tinha prumo e pulso, falei do meu desejo de possuir duas gravuras especiais: Dama com luvas Suzana no banho. Um dia ele me telefona e fala para eu ir buscar as gravuras. Elas ficaram prontas e eu as recebo como presente. Na hora de sair, ele diz:

– Se quer mais alguma, fale agora. Não sei se resta muito tempo.

Avelina lembra nosso presente de casamento, Mãe e filhos, uma gravura de 1958, e pede desculpa porque passamos da hora. Célida sugere a Samico que nos acompanhe até a porta. Com grande esforço, ele se levanta da poltrona e caminha ao nosso lado. Lá fora, anoitece em Olinda. O sino do Mosteiro de São Bento toca as vésperas. Sopra uma brisa do mar e me desloca no espaço. Dizem que a casa restaurada por Célida e Samico pertenceu a João Fernandes Vieira e data do século 17. Os dois sobrados em torno, vendidos para a construção de uma pousada, sofrem com o abandono. O projeto gorou e as casas ameaçam ruir. Desço um batente e piso a calçada. Um pouco mais acima, na Rua de São Bento, funcionava o Ateliê Coletivo. Às quintas-feiras, eu vinha comer macarrão na casa de Giuseppe Baccaro. Com sorte, encontrava Guita Charifker, Luciano Pinheiro, José Cláudio, José de Barros, Gil Vicente, Zé Barbosa, Eduardo Araújo e Samico, o mais arredio. Era o tempo dos ateliês ao ar livre, quando pintores de Olinda e Recife saíam em grupos para pintar paisagens de Itamaracá, Itapissuma, Igarassu e imediações. Tudo isso agora me parece bem longe.

Samico abraça e beija Avelina. Beijo Célida e falo até mais. Sinto um profundo desgosto, uma tristeza que não combina com a brandura do vento. Abraço Samico. O máximo que consigo dizer é que tenha coragem. Coragem! Entro no carro e me pergunto:

– Quantas vezes ainda nos despediremos, em frente à mesma porta? 

RONALDO CORREIA DE BRITO, escritor.

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