CONTAMINAÇÃO
Junto com As vantagens de ser invisível, A culpa é das estrelas encabeça um fenômeno editorial que ganhou o nome de sick-lit. Em português, algo como “literatura doente”. Cunhado pelo tabloide britânico Daily Mail, o rótulo sick-lit foi usado para englobar um conjunto de títulos voltados ao público adolescente, em que os jovens personagens enfrentam problemas da vida real num cardápio que, a exemplo das obras de Chbosky e Green, vai do bullying ao abuso sexual, de doenças terminais a casos de suicídio.
Com o tom sensacionalista, característico do tabloide, a matéria do Daily Mail repreende os novos rumos da literatura infantojuvenil, levantando preocupações quanto à responsabilidade social de livros que, em vez de explorarem o terreno da fantasia, passam a tratar de temas pesados como suicídio e estupro. Em resposta, a editora de infantojuvenis Michelle Pauli do Guardian, no artigo Sick-lit? Evidentemente a literatura jovem é complexa demais para o Daily Mail, ironiza a consternação do jornal, citando os cuidados do mercado editorial no segmento infantojuvenil e afirmando que “criança e jovens – como todos nós, na verdade – leem para explorar, experienciar outras vidas, pensamentos e situações de uma maneira segura, não puramente como escapismo, aventura e fantasia”.
No Brasil, o termo acabou chegando após matéria do jornal carioca O Globo e logo se espalhou pelos blogs ligados à literatura. Curiosamente, aquilo que lá fora tinha um sentido pejorativo, parece ter recebido uma tradução mais positiva no Brasil, festejado como o novo oba-oba do mercado editorial, motivando promoções e sorteios realizados por livrarias no meio virtual.
REALIDADE
Ao invés do recurso da fantasia e do apelo à aventura, que marcaram uma geração de leitores através das obras de J. K. Rowling (da série Harry Potter), Rick Riordan (Percy Jackson) e Stephenie Meyer (Crepúsculo), os títulos da sick-lit optam pelo drama, por obstáculos do cotidiano e constroem suas narrativas através de perspectivas de quem sente a dor de ser estranho e de quem reconhece que o fim é iminente. Em geral, estão vinculadas ao real, contam histórias de superação, seja contra doenças ou preconceitos gerados pela dificuldade da sociedade em lidar com o diferente.
Em Os 13 porquês, de Jay Asher (que já soma mais de 158 mil cópias vendidas e figurou por 13 semanas na lista do NYT), por exemplo, a personagem Hannah Baker deixa 13 fitas cassete para o colega Clay Jensen, relatando situações de bullying e explicando seus motivos para ter cometido o suicídio. Já em Extraordinário, de R. J. Palacio (30 semanas no NYT), outro título que tem entrado no balaio da sick-lit, temos August Pullman, um menino de 10 anos que sofre de uma deformidade no rosto e, após passar por 27 cirurgias, vive a expectativa do seu primeiro dia de escola.
Personagens como Filoctetes (Grécia Antiga) e Gregor Samsa (da Metamorfose, de Kafka) apontam a presença de moribundos na literatura. Foto: Divulgação
A abordagem de temas atuais, como o bullying, que se encontram na pauta da mídia e povoam os pesadelos dos pais, explica parte do sucesso comercial desses livros. Essas narrativas cumprem o papel social de refletir sobre o mundo no qual estão inseridas, alertando sobre a existência de problemas, trazendo o assunto para o debate e indicando caminhos para sua resolução. O aspecto educacional desses livros é tanto, que o Extraordinário chegou a motivar a campanha antibullying Choose a Kind, nos Estados Unidos, em que a autora R. J. Palacio vem dando entrevistas e palestras com o objetivo de conscientizar a população e combater o problema. Na versão brasileira, o romance segue essa mesma linha, trazendo na contracapa os dizeres: “Não julgue um livro menino pela capa cara”.
METÁFORAS
Essa preocupação com o social, contudo, não desmerece nem inviabiliza a vertente da literatura fantástica, que até pouco tempo dominava as listas de mais vendidos. Por mais inventivas e fantasiosas que sejam as narrativas, elas sempre são motivadas por um pano de fundo do real. “As metáforas levam o significado de um domínio ontológico para outro, criando uma relação que não se encontra na natureza. Quando falamos do mal, tendemos a criar referências metafóricas, relacionando um ser ou um acontecimento que existe em um plano diferente”, diz o professor Julio Jeha, da UFMG, no artigo Monstros como metáfora do mal.
Embora seja ambientada numa escola de bruxos, povoada por quadros que se mexem, chapéus que falam e vassouras voadoras, a série Harry Potter é construída em cima de um sério problema do lado dos “trouxas” (como os comuns são chamados pelos bruxos). Além de abordar questões que remetem ao processo de amadurecimento, como a descoberta do amor, as transformações físicas e as instabilidades hormonais dos adolescentes; o universo criado pela autora J. K. Rowling revela um mundo dividido, ameaçado pela intolerância – de um lado, os seguidores do Lord Voldemort, que acreditam na pureza da raça dos bruxos; do outro, estão os que defendem o convívio pacífico com os trouxas –, uma situação tantas vezes registrada pela História e que ainda persiste.
Da mesma maneira, uma leitura mais atenta da saga Crepúsculo revela a metáfora que existe por trás do recurso da fantasia. Na história de Stephenie Meyer, os vampiros são apresentados como os excluídos, os rejeitados da escola da pequena cidade americana de Forks, num outro caso sobre os obstáculos em lidar com as diferenças. Na trama, também encontramos a lição sobre o poder de cada indivíduo decidir seu próprio destino, rompendo com as expectativas que recaem sobre nós, os planos de futuro desejados por nossos pais e até as condições da nossa natureza.
Foto: Divulgação
RECORRÊNCIA
A opção por abordar problemas da sociedade de maneira direta, sem recorrer à fantasia, não é uma novidade no mundo da literatura. Há muito que a doença vem nutrindo o imaginário dos escritores. A literatura está repleta de personagens que sofrem algum distúrbio, encontram-se em situações- limite ou sofrem com a solidão por estarem à margem.
Já na Grécia Antiga, a lenda de Filoctetes, arqueiro que foi abandonado pelos companheiros de guerra numa ilha deserta por conta dos gritos de dor e do cheiro da sua ferida, serviu de mote para autores como Ésquilo, Eurípides e Sófocles. A segunda fase da produção romântica manteve estreita relação com a tuberculose, e a literatura moderna está repleta de moribundos, novos Filoctetes que – rebatizados por Kafka, Tolstói e Tchekov – ganharam os nomes de Gregor Samsa, Ivan Ilitch e Dr. Ranguin.
Na literatura contemporânea, também não são raras as abordagens sobre a exclusão imposta pela condição física. O romance O filho eterno, em que Cristovão Tezza relata de forma ficcional o processo de aceitação ao descobrir que seu filho é portador de Síndrome de Down, e os contos Qohélet e Homem folheia álbum de retratos imorais, do médico e escritor Ronaldo Correia de Brito, mostram que é possível trabalhar o tema de outras formas. A semelhança temática não justifica o rótulo da sick-lit. O protagonista de Vida e época de Michael K, do Prêmio Nobel J. M. Coetzee, apresenta a mesma deformação de lábio leporino do personagem de Extraordinário, mas os livros seguem caminhos opostos.
Isso nos faz perguntar: se o tema da doença e a sua abordagem por vias diretas não é uma inovação, então, o que caracteriza a sick-lit? Parece que a resposta está nos objetivos dessas narrativas. Enquanto autores como Tezza, Correia de Brito e Coetzee buscam nas situações de agonia melhores ângulos para observar o mundo, suas arestas e feridas, as obras da sick-lit nutrem uma meta educativa, de autoajuda, de bom mocismo. A doença deixa de ser uma metáfora, uma estratégia estética para a transgressão, e se transforma em exemplo, em lição de vida e mais uma história de superação. O tom da sick-lit é pacificador: ao invés da doença, a cura.
Assim, elas procuram naturalizar o estranho e reconfortar o leitor em vez de despertar a ojeriza. Numa consequência à preponderância das histórias em primeira pessoa da sick-lit, o mal que recai sobre os narradores é exteriorizado, justificado como uma causa biológica e não como um problema nosso, a exemplo do que acontece com as narrativas em terceira pessoa, mostrando que a exclusão dos outros, dos moribundos, acontece porque somos tão culpados quanto os companheiros de Filoctetes e não conseguimos lidar com a repugnância que existe dentro de nós, a lembrança de que um dia também vamos morrer e cair no esquecimento.
THIAGO CORRÊA, jornalista e mestre em Teoria da Literatura pela UFPE.
Leia também:
Um voo para além do silêncio e da solidão