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Reforço crítico para uma obra hedonista

Conhecido por suas figuras corpulentas, o artista colombiano Fernando Botero cria série de pinturas em que a lascívia cede ao julgamento social

TEXTO Olívia Mindêlo

01 de Setembro de 2012

'Massacre na Colômbia'. Violência, desolação e morte, que não escolhem sexo ou idade

'Massacre na Colômbia'. Violência, desolação e morte, que não escolhem sexo ou idade

Imagem Reprodução

Boa parte do imaginário construído em torno da América Latina deve-se às narrativas, às frases, às pinceladas e aos versos deixados, ao longo dos últimos séculos, por artistas, historiadores e cientistas sociais. São eles e outros que, de alguma maneira, contribuem para intermediar – ou tensionar – uma compreensão de quem somos “nós”, sem que isso resulte numa única verdade, tampouco tenha a ver com um estereótipo. No território das artes plásticas, o pintor, escultor e desenhista colombiano Fernando Botero é, provavelmente, um dos nomes mais representativos nesse sentido, muito embora haja em suas criações visuais um DNA europeu que vai dos fios de cabelo até os dedos gordos dos pés de suas figuras.

Artistas como Frida Kahlo, Diego Rivera, José Clemente Orozco e, no caso brasileiro, Cândido Portinari, Vicente do Rêgo Monteiro, Tarsila do Amaral e tantos outros, decerto, estão em patamar semelhante de representatividade. Ou até mais, se considerarmos a busca identitária que marca o fazer artístico dos modernistas aos quais Botero não se filia tão diretamente. No entanto, poucos gozam da mesma popularidade do colombiano, cujo trabalho é conhecido em todos os continentes e trafega, até hoje, entre os principais museus dos grandes centros de arte do mundo e suas lojinhas de suvenires. Sendo assim, parte da percepção que muitos têm da “Latinoamérica” foi largamente intermediada pelo olhar do artista, sobretudo quando ele era um dos poucos nomes “exóticos” das bandas de cá, habitando Nova York, em plena década de 1960.

Curiosamente, poucos o conhecem no Recife, que recebe até o dia 9 de setembro, no Instituto Ricardo Brennand (IRB), esta que é a primeira exposição individual de Fernando Botero na cidade. Marcada pela abordagem social e política da violência que tomou o seu país nas últimas décadas, com a guerra ligada ao narcotráfico, Dores da Colômbia parece reunir todas as expectativas relacionadas à chamada “arte latino-americana”, ainda que a história da nossa produção artística vá muito além de um espírito combativo de ex-colonizados com fome de justiça – seja na literatura, no cinema, no teatro, na dança ou nas artes visuais. No entanto, trata-se de um conjunto de pinturas e desenhos que ajuda a reforçá-lo como um nome preocupado com as questões de sua terra de origem, não obstante esse seja um elemento mais diluído ao longo de sua trajetória.


Em Mãe e filho, despidos de qualquer tecido, esqueletos exibem a miséria, espreitada por um urubu.
Imagem: Reprodução

Um outro ponto curioso é que, depois de circular por várias capitais do Brasil, os 67 trabalhos chegam ao IRB como uma verdadeira exceção na carreira desse artista de 80 anos, comemorados em 2012. Exceção mais nos motivos e menos na estética. As suas inconfundíveis figuras rechonchudas estão lá. Mas, em vez de tirarem o sutiã para o parceiro que dorme acuado debaixo do edredom, suas personagens gritam o horror de perder um filho inocente ou simplesmente são corpos jogados para deleite dos urubus. “Sou contra a arte como arma de combate, mas em vista do drama que atinge a Colômbia, sentia a obrigação de deixar um registro sobre um momento irracional de nossa história”, procura justificar Botero, numa das frases que estampam as paredes da exposição, ajudando também a atestar a importância das obras que ali estão. Todas, aliás, foram doadas pelo artista ao Museu Nacional da Colômbia, responsável pelo projeto de itinerância que chega à capital pernambucana.

Entre as imagens da mostra, há também caveiras que ora assombram as vítimas, ora atestam a miséria política colombiana, como na tela Viva la muerte (2001). A composição traz como emblema um esqueleto sentado entre caixões, vestindo a faixa presidencial colombiana. Com aspecto semelhante, outro quadro apresenta uma mãe esquelética que nina sua criança igualmente cadavérica, enquanto um urubu repousa sobre seu ombro. A pintura chama-se Madre e hijo, um óleo sobre tela de 2000. É interessante observar que as caveiras, assim como a própria exposição, funcionam como um contraponto às suas criaturas obesas. Também são elementos que dialogam bastante com os motivos que marcam o imaginário latino-americano abordado, de forma mais recorrente, pela pintora mexicana Frida Kahlo.

Conhecido culturalmente por dar à morte, digamos, um caráter mais pitoresco, principalmente através das populares figuras das caveiras, o México foi, aliás, um dos lugares onde Botero viveu, logo depois de retornar de quase quatro anos na Europa, nos anos 1950. Já com o acúmulo das referências europeias e, logicamente, colombianas, o artista não se identificou, de imediato, com a pintura modernista de Kahlo, Rivera, Orozco e Siqueiros, segundo conta Mariana Hanstein, no livro Botero (Taschen). No entanto, herdou deles o gosto pela amplitude das figuras, ocupando quase toda a área da tela, e a inspiração na arte popular como uma maneira de buscar uma linguagem mais desgarrada dos padrões europeus, embora esses também estejam impregnados em sua obra.


Obra de 2001, O homem na rua transporta para a natureza o gigantismo outrora presente nos corpos. Imagem: Reprodução

Nesse sentido, Fernando Botero não se mostra um artista “tipicamente” modernista, no sentido classificatório, histórico. Contudo, ao sintetizar na sua arte uma alma naïf com uma habilidade técnica para a pintura e o desenho, seu espírito se coloca totalmente sintonizado aos nomes da América Latina que ajudaram a conceber uma marca para a nossa produção artística no século 20. Essa mesma, tão reconhecida pela figuração e pelas cores, e por poéticas que não tendem a tratar a realidade com distanciamento. Isso vale, mesmo se considerarmos que Botero encontrou em pintores do renascimento italiano, como Giotto, Piero della Francesca e Paolo Uccello suas grandes fontes de formação, enquanto esteve na Itália.

A pintura modernista tem como marca um discurso de oposição aos paradigmas clássicos, nos quais os renascentistas se inserem. Todavia, sendo o colombiano também um estudioso de Pablo Picasso e de outros nomes da história da arte, sua relação com tudo isso se processa numa atitude tipicamente moderna, que resvala para sua criação. Não é à toa que, em vez de reproduzir muitas telas de seus “mestres”, ele preferiu refazê-las a partir de seu próprio estilo, o que confere a quadros como Mona Lisa com 12 anos (1959) a mesma carga sarcástica do bigodinho e cavanhaque colocado por Marcel Duchamp na figura mais famosa de Leonardo Da Vinci, por meio da obra-paródia LHOOQ (1919). Tanto que a pintura foi escolhida para representar a Colômbia na Bienal de São Paulo, de 1959. Embora o caráter dessacralizador não seja uma característica relevante na obra de Botero, tanto quanto na do dadaísta francês, suas releituras de pinturas canônicas soam sempre bastante irônicas.

Esse ar bem-humorado, digamos assim, deve-se talvez à imagem que os próprios gordos, sempre tão recorrentes em seu trabalho, suscitam no senso comum, muitas vezes de maneira estereotipada. Mas não há como negar a existência, nas figuras do artista, de uma serenidade que parece querer deixar escapar um sorriso no canto da boca, como se estivessem zombando de nós, da vida, do mundo. Mesmo quando ele pinta a violência colombiana.

O artista já afirmou certa vez, em uma de suas entrevistas, que coloca humor em suas telas para que as pessoas “levem as suas informações a sério”.


Tema e formas da pintura Mulher vestindo o sutiã, de 1976, sintetizam a
obra do colombiano. Imagem: Reprodução

LAS GORDITAS
Embora seja quase uma unanimidade que Fernando Botero é “o artista” das figuras gordas, rechonchudas, redondas, volumosas, generosas, ele não as vê assim. E é categórico quanto a isso: “Não pinto pessoas gordas”, responde frequentemente, quando questionado sobre o porquê de retratar “pessoas gordas” – pergunta que todos realmente fazem, no Recife, em Paris ou em Bogotá. E não, não é porque Botero seja gordo. Ele não é.

Para Mariana Hanstein, não são apenas as figuras que são gordas, mas todos os elementos da pintura. Até as frutas de suas naturezas-mortas. Como se Botero visse o mundo com certo exagero, pela ótica das curvas fartas, da deformação como princípio estético. Essa perspectiva é também, em parte, debitária das influências dos pintores renascentistas italianos, como lembra Hanstein, e não é à toa que ele “se encontrou” quando pisou em território italiano. Há também a especulação de que tal característica tenha a ver com a ideia de “gordura” como algo associado ao caráter abundante e provinciano que perpassa uma visão de América Latina, em contraponto ao “magro” e “cosmopolita” dos grandes centros.

Seja qual for o ponto de vista – ou o rótulo –, existe uma preocupação com o volume e a forma que persegue o pincel e o traço de Botero desde a década de 1960, quando desenvolveu, em Nova York, o estilo que o acompanha até hoje. Isso fez com que sua obra se tornasse mais famosa e inconfundível, embora também um pouco repetitiva, se pensarmos na sua produção recente. Uma marca que, inclusive, foi parar nas suas esculturas, quase como uma necessidade de expandir os limites da superfície bidimensional. Os temas, no entanto, variaram de maneira razoável, bem como a paleta de cores, sempre a serviço de um trabalho assumidamente figurativo. Dele surgem gordinhas sensuais, bem como gordinhos bispos, cabeludos e bigodudos. Mesmo nos momentos mais prosaicos, eles são extremamente atraentes. Talvez seja por isso que o artista tenha conseguido se aproximar do grande público, tornando-se tão querido não só na Colômbia, onde tem um museu que leva seu nome, mas em várias partes do mundo, que, se depender da visão dele, certamente têm muita simpatia pela América Latina. 

OLÍVIA MINDÊLO, jornalista e curadora de arte.

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