Arquivo

'Olivier e Lili': Até que ponto o que ali está posto é ficção?

Utilizando vários recursos e encenada em ritmo telegráfico, a partir de base textual de 900 frases, essa história de amor une realidade e invenção

TEXTO Pollyanna Diniz

01 de Setembro de 2012

Foto Rogério Alves/Divulgação

Teatro é ficção. O que para alguns pode soar óbvio nem sempre é verdadeiro. Ao invés de uma afirmação, talvez fosse mais coerente uma pergunta, a dúvida: até que ponto o que se vê no palco é ficção? São muitos os exemplos na história do teatro, mas vamos trazê-los para uma realidade mais próxima. Na década de 1970, em Olinda, o grupo Vivencial Diversiones levava à cena (sempre performática, musical, de homens travestidos) elementos da biografia dos atores. Mais recentemente, no festival Janeiro de Grandes Espetáculos deste ano, a atriz e travesti argentina Camila Villadas revelou um pouco da própria história no espetáculo Carnestolendas – retrato escénico de um travesti. A dramaturgia foi construída ainda a partir de poemas e textos de García Lorca, como Yerma e A casa de Bernarda Alba. Veio da Argentina também uma experiência mais radical. A dramaturga e diretora Lola Arias dirigiu um espetáculo chamado Mi vida después, em que os atores eram “personagens reais”. Filhos de desaparecidos políticos encenavam a experiência de terem convivido com a dor da ausência.

O diretor Rodrigo Dourado foi influenciado por essas e muitas outras referências para montar o espetáculo Olivier e Lili: uma história de amor em 900 frases, com duas temporadas agendadas para este setembro. “Há muitos anos me interesso pela dramaturgia contemporânea, por uma cena performática. Tenho mais de 200 textos arquivados: dramaturgia latina, europeia, americana, canadense”, conta. No original francês, Olivier e Lili é Les drôles (algo como “Os engraçados”). O texto foi escrito em 1993 pela dramaturga e atriz Elizabeth Mazev, que registrou em mil frases (não em 900, como na versão pernambucana) a sua relação com o conceituado diretor francês Olivier Py. Os dois se conheceram ainda crianças, apaixonaram-se pelo teatro na mesma época, fizeram descobertas e passaram por perdas juntos, e até se casaram, embora Py seja declaradamente homossexual. E não bastou colocar a história no papel – os dois encenaram “os personagens de si mesmos” no palco.

“Quero criar aqui, também, essa espécie de vertigem do real e do ficcional, só que com mais camadas ainda. Elizabeth e Olivier, por exemplo, vão aparecer no meio da montagem, não os personagens, mas as pessoas reais, através de vídeos”, explica Dourado. O ator Leidson Ferraz dá vida a Olivier; e Fátima Pontes, a Lili. “Quando comecei a traduzir o texto, vi que havia muitas referências à vida na França nas décadas de 1970 e 1980. Pensei em como aproximá-lo da nossa realidade. Mas não poderia simplesmente mudar de ambiente. É a história de vida dos dois. Foi aí que pensei na aproximação. Quando, por exemplo, Olivier fala de um programa de televisão que via aos sábados, fui questionar os atores sobre o que eles assistiam quando crianças.”

PROCESSO INTENSO
Foi assim que a dramaturgia apresentada em Pernambuco ganhou mais uma camada: a história real dos atores. “Nas leituras e ensaios, vi que aconteceu um milagre! Leidson era realmente Olivier e Fátima era Lili. Eu não sabia disso! Rolou uma projeção muito forte. Leidson hoje fala de Olivier como se fosse ele mesmo”, brinca o diretor. “Foi um processo forte, intenso. Muitas pessoas vão se identificar, porque são experiências comuns a todo mundo, a infância, a juventude, o amor”, explica Leidson Ferraz.

Na cena, há momentos em que fica difícil distinguir quem é quem. Será aquela a história de Olivier ou dos próprios atores? Há, por exemplo, uma sequência em que Lili perde o pai. Nesse momento, a dramaturgia abarca ainda mais a realidade: Fátima fala da morte do pai dela e até o diretor entra em cena contando o que aconteceu, quando soube do falecimento do pai da amiga. Sim, porque, em última instância, o espetáculo é uma história de amizade. Uma celebração! Entre Olivier e Lili e entre Rodrigo Dourado, Fátima Pontes e Leidson Ferraz, que, apesar de serem amigos há 15 anos, nunca tinham trabalhado juntos.

Para montar esse quebra-cabeça entre real e ficção, público e privado, a pesquisa contou com vários elementos “verdadeiros”, como fotografias e objetos do uso cotidiano. “A partir do momento em que a memória é também uma reconstrução do real, criamos aí outra camada para o público mergulhar”, aponta o diretor. Rodrigo Dourado vinha de uma experiência de direção frustrante. Ele, que também é jornalista e professor universitário, se apaixonou por um texto do venezuelano Gustavo Ott. “Enlouqueci, quando conheci a escrita do cara. É bem parecida com a escrita de Newton Moreno, de Marcelino Freire”, diz. E aí, em 2009, estreou o espetáculo Chat – que o público, o diretor mesmo conta, achou chatíssimo. “Foi um fracasso de público e de crítica. Mas foi muito bom, para perceber os interesses da plateia do Recife. Chat tratava de questões religiosas, islamismo, migração, violência”, relembra. Com Olivier e Lili, tanto direção quanto elenco apostam noutro resultado, inclusive com o público jovem. “O espetáculo tem uma pegada pop muito grande. É engraçado, divertido”, diz Leidson Ferraz.

Se, em Chat, Rodrigo Dourado trabalhava com quatro atores, neste novo espetáculo também poderia ter optado por um elenco mais numeroso, já que o texto traz essa possibilidade. São vários os personagens que passam pela vida de Olivier e Lili ao longo da encenação. Aí entra a decisão do diretor, que queria se aprofundar no trabalho dos atores e facilitar a produção e, por isso, resolveu focar apenas os personagens principais.

A história deles, no entanto, não é contada de forma tradicional. Muito antes do surgimento do Twitter, Elizabeth criou um texto telegráfico, uma narrativa fragmentária. Escrito em terceira pessoa, não há diálogos entre personagens; ou, mesmo, antes disso, a definição de personagens. É quase um diário dos hábitos e do que acontecia na vida dos dois. A partir daí, podem surgir diversas questões, como o público e o privado, a sociedade do espetáculo, do Big Brother e das câmeras de segurança. “A sociedade já está tão teatralizada, que o teatro parece que está fazendo o caminho inverso. A política, a religião, está tudo tão performático, que o teatro parece querer se tornar menos empolado, menos ‘teatral’ demais”, diz Dourado.

Não é, no entanto, um mergulho em definitivo na realidade. “Se for realidade 100%, a plateia rejeita.” Rodrigo Dourado lembra o que diz a pesquisadora francesa radicada no Canadá, Josette Feral: que o real só deve entrar em cena quando tiver um sentido dramatúrgico. É a realidade servindo ao propósito de poetizar a ficção. 

POLLYANNA DINIZ, jornalista, colaboradora do blog sobre teatro Satisfeita, Yolanda?.

Publicidade

veja também

A entrada para o universo do vinho

A cultura que deveria haver por trás das grades

Sloterdijk: Antes tarde do que nunca