Possivelmente, a grande questão evocada por Blow up, nos anos que se seguiram ao seu lançamento, sobretudo na década de 1970, tenha sido a premissa da indicialidade fotográfica. É um filme sobre uma dúvida evocada pela impossibilidade de a fotografia registrar – de maneira acabada e satisfatória – o real. Ou a constatação de que a imagem fotográfica é apenas – e meramente – um recorte, um vestígio, uma tentativa. E olhar para esse filme tão particular de Antonioni, de alguma forma, resulta na busca por captar algum vestígio sobre a suposta imagem que o cineasta queria que fizéssemos dele: como já diria Roland Barthes, em Sade, Fourier, Loyola, o maior registro de autoria de alguém é fazer com que enxerguemos uma pessoa numa obra. Olhar Blow up e enxergar Antonioni é o exercício de observar uma foto que queremos desvendar – como o personagem do filme Blow up. Seguimos tentando.
Pensar o que foi a questão evocada por Blow up no debate sobre o fotográfico nos direciona para o reconhecimento de que, ao tratarmos sobre fotografia, aspectos como deriva, evasão, afeto, acaso, dispersão e assim por diante, são “portos seguros”. O filme nos coloca diante da perplexidade que é a impossibilidade de certeza diante de algo que sempre fora tratado como “o registro do real”. Quando vemos uma foto e não temos certeza do que enxergamos ali, desvela-se aquilo que Roland Barthes chamou, em seu clássico ensaio A mensagem fotográfica, de “mensagem sem código”. Onde está o chão da certeza diante do registro?
Essa premissa da “mensagem sem código”, proposta por Barthes, gerou inquietações em semiólogos e semioticistas. Ao separar a “mensagem” (aquilo que vemos) do “código” (o significado e a reverberação cultural do que foi fotografado), Barthes possivelmente estaria criando as bases para toda a sua argumentação sobre a fotografia, que culminaria, inclusive, com A câmara clara. É da impossibilidade da certeza e da necessidade da deriva na argumentação sobre a fotografia que se sustentam os argumentos de um Barthes pós-estruturalista.
Com a ampliação, o estudo da imagem. Foto: Reprodução
Evocar o francês Roland Barthes, ao trazermos à tona alguns pontos de Blow up, de Antonioni, resulta na tarefa de reconhecimento de como os dois foram centrais para se pensar o estatuto da imagem fotográfica. Quando, em 1979, Barthes redigiu A câmara clara, certamente, registrou a mesma impossibilidade de “frieza objetiva” no tratamento da fotografia. Não à toa, a obra é quase um diário de Barthes, tendo imagens como formas de diálogo e exasperação. As ambiguidades de Antonioni em Blow up. Os paradoxos de afeto de Barthes em A câmara clara. O que os une: a certeza de que falar sobre fotografia é revelar camadas de sentido das quais, muitas vezes, não se pode dispor.
Um dos exercícios mais profícuos de reconhecimento de longevidade de uma obra/autor está em atualizar as suas questões. Fotografar é, antes de tudo, uma disposição que se utiliza de uma tecnologia (a câmera) e de uma técnica (a expertise em manusear a tecnologia). Pensar o traço particular da fotografia significa debater como tecnologia e técnica se transformam e de que maneira as questões outrora evocadas aparecem a partir de processos de significação. Então, neste centenário de Michelangelo Antonioni, diante de novas formas de fotografar, câmeras digitais, redes sociais de fotografia, ainda seria possível o argumento de seu mais notável filme, Blow up?
Algumas ponderações. A primeira é que, realmente, o argumento de Blow up diz respeito a uma práxis analógica. O que “move” a dúvida do personagem é tão somente a impossibilidade de reconhecimento do real diante do processo de revelação/ampliação. Recai a questão sobre nós: qual é a materialidade da fotografia atualmente? Vemos imagens em papel ou, fundamentalmente, nas telas de computadores, celulares, tablets? A coexistência de disposições materiais (papel e telas) nos convoca no nosso cotidiano com a fotografia, mas temos, atualmente, o que podemos chamar de “imagens líquidas” – para usar um termo tão caro a Zygmunt Bauman – que navegam entre telas, pixels, dispositivos.
O filme de 1966 é ambientado na Swinging London. Foto: Reprodução
E, então, uma segunda ponderação: mudaram as tecnologias (câmeras agora são digitais, celulares passam a ser “máquinas fotográficas”), criaram-se novas disposições técnicas (fotografar pela tela da máquina ao invés do visor, olhar o registro que acabou de ser feito), mas o cerne do processo fotográfico continua o mesmo? Continuamos a ter dúvida sobre a imagem fotográfica? Certamente. Há algo de que Blow up trata, que A câmara clara aborda e que segue incólume, mesmo diante de todas as transformações do fazer fotográfico: a ambiguidade do registro. A imagem ainda é o traço do real. Os grãos de prata do sistema analógico se converteram na lógica dos pontos digitais, os pixels, na fotografia digital.
Hoje, se o fotógrafo de Blow up fizesse a tal imagem de uma suposta cena do crime numa câmera digital, a sua dúvida persistiria. Se ele não conseguia distinguir o real por causa das inúmeras ampliações de outrora, seguiria sendo “impedido” de fazê-lo diante do estouro dos pixels. A “cortina” do fotográfico sobre o real continua – mesmo diante de mudanças, alterações nas tecnologias. Se adotasse procedimentos contemporâneos do ato fotográfico, o personagem-fotógrafo de Blow up poderia estar ainda mais “enrascado”. Imagens fotográficas hoje são pontos de partida para compartilhamentos em plataformas digitais. A fotografia poderia ocupar redes sociais como Instagram ou Facebook. E ser usada como “ameaça” para a tal mulher, no filme, que se irritou ao ser clicada.
Na obra de Antonioni, também se destaca a trilogia da incomunicabilidade.
Foto: Reprodução
As inúmeras possibilidades de pós-produção disponíveis com as câmeras digitais poderiam acarretar “ornamentos estéticos” na suposta cena do crime de Blow up. Filtros de aplicativos digitais poderiam “limpar” a imagem: acrescentar brilho, contraste, luminosidade. Fazer recortes, dispor bordas. E a pergunta segue: nós enxergaríamos “melhor” a imagem? Possivelmente. No entanto, não a ponto de sanarmos a dúvida em torno do que foi fotografado. Uma outra questão parece nos chamar diante das problemáticas de um Blow up contemporâneo: o tempo que detemos para olhar uma fotografia. O excesso de imagens, o deslizar de fotos sobre o Instagram, o Facebook e afins, parece que nos está legando um olhar cada vez mais horizontal sobre imagens. Sem a verticalização do tempo e da profundidade. Vemos fotografias. Mas será que olhamos fotografias? Ver e olhar aqui são distinções diante do tempo que se leva em frente da imagem. Blow up é, também, um filme sobre o tempo de quem se detém olhando uma foto. A investigação quase obsessiva em torno da procura pelo registro na imagem.
A cena mais icônica de Blow up, aquela em que vemos pessoas jogando tênis sem a bola, ainda faria sentido: a ausência da bola é uma alegoria para a nossa relação com as imagens. Uma imagem não precisa, necessariamente, pertencer ao real para fazer sentido para nós. Muito daquilo que vemos são construções, sombras – só para lembrar o mito da caverna, de Platão – que se infiltram no nosso cotidiano e passam a ocupar lugar nas nossas certezas.
THIAGO SOARES, jornalista, professor universitário e doutor em Comunicação pela UFBA.