As viagens de Kerouac, que precederam em duas décadas o surgimento da contracultura dos hippies, chegam finalmente ao cinema com o filme Na estrada, dirigido pelo brasileiro Walter Salles. A produção é de Francis Ford Coppola, que adquiriu os direitos há mais de 30 anos, mas só agora conseguiu concluir o projeto. Salles realizou também o documentário À procura de On the road, no qual entrevista amigos e contemporâneos do escritor.
Hoje conhecido essencialmente como escritor-viajante, cuja prosa espontânea (o fluxo da consciência) é toda centrada nas experiências que viveu, Kerouac (1922-1969), paradoxalmente, pouco se aventurou fora dos Estados Unidos. Usou o próprio país como experimento existencial e, sem a menor intenção, acabou tornando-se o principal divulgador da nova sensibilidade que surgia entre seu grupo de amigos escritores: a rejeição ao complexo industrial militar da Guerra Fria e ao que chamou de “civilização do aço”, a valorização da experiência direta, da vida nas ruas, do amor livre, da espiritualidade oriental e da diversão sem limites como forma de iluminação – todo um conjunto de novos valores que iriam se fortalecer nas décadas seguintes.
Kerouac era um aspirante a escritor quando, aos 25 anos, pegou a estrada com
uma mochila e 50 dólares. Foto: Reprodução
No início de On the road, ele descreve sua partida: “Certa manhã, deixando meu grosso manuscrito incompleto sobre a escrivaninha (referência ao seu futuro primeiro romance, Cidade pequena, cidade grande) e dobrando pela última vez meus confortáveis lençóis caseiros, parti com meu saco de viagem no qual poucas coisas fundamentais haviam sido arrumadas, caindo fora em direção ao Oceano Pacífico com 50 dólares no bolso”.
Kerouac explorava a vastidão dos Estados Unidos (que, 65 anos atrás, ainda tinha um clima de Velho Oeste intenso em algumas regiões). Viveu numa época em que a Rota 66 serpenteava de Chicago, no meio-oeste, até Los Angeles, na Califórnia, passando por nove estados, num tempo em que havia, ainda forte, o mito do vagabundo deslocando-se em busca de aventuras. Pela rodovia, passavam famílias prósperas de classe média, empreendedores e aventureiros. Era com esses últimos que ele se identificava, quando caiu na estrada.
On the road celebra a vida através do vaivém incansável – e até mesmo insano – do amigo Neal Cassidy (no texto e no filme chamado de Dean Moriarty). Quatro anos mais jovem, o hiperativo Neal falava, bebia, drogava-se e movimentava-se sem parar, enquanto furtava carros para deslocar-se com os amigos e as inúmeras mulheres que conquistava quase todo dia. Kerouac (que no livro se chama Sal Paradise) acompanhava as aventuras num papel secundário, deixando as proezas maiores para o amigo, que age como seu alter ego. Enquanto Neal extrapolava sempre, Jack guardava energia para conseguir escrever sobre a experiência na estrada.
Tudo servia de inspiração para a sua prosa poética: a saudade da infância em Massachusetts, as grandes distâncias, a dureza do transporte ferroviário, os automóveis usados pelo grupo inquieto de amigos, a sensibilidade para os grandes nomes da música negra e para as populações indígenas, o álcool, a maconha e as bolinhas de anfetaminas que davam energia para as noitadas, a rejeição à literatura acadêmica e ao intelectualismo de gabinete.
Ele também usou o jazz de sua época – principalmente o bebop – como inspiração para escrever num ritmo que mistura a ousadia apressada de um solo de trompete com a reflexão lenta de um acompanhamento de piano. Seus maiores ídolos eram músicos como os saxofonistas Lester Young, Charlie Parker e Lee Konitz, o trompetista Dizzie Gillespie e os pianistas George Shearing e Thelonious Monk.
Como a escrita de Kerouac lida o tempo todo com acontecimentos reais, sua trajetória no período se confunde com os fatos narrados nos livros, inclusive em On the road. Em várias partes dos EUA, os locais frequentados pelo escritor e pelos beatniks guardam sua passagem na memória.
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