Muito significativo é o apartamento no número 454 da rua 20, no qual escreveu a primeira versão de On the road, em abril de 1951, em apenas 20 dias, tomando bolinhas de anfetaminas e sem interrupção nem para trocar o papel da máquina de escrever (usou para isso um rolo contínuo de papel de telex). O manuscrito original só foi publicado sem cortes em 2007 (300 páginas na edição da Viking e um único parágrafo). A façanha seria desdenhada por Truman Capote, nos anos 1950, com uma de suas tiradas: “Isso não é escrever, é datilografar”. O prédio em que morou o autor fica a três quadras do mitológico Chelsea Hotel, que sempre hospedou intelectuais ligados à contracultura.
No bairro boêmio de Nova York, continua de pé a Village Vanguard, famosa casa noturna na qual, em 1957, Kerouac fez leituras de seus poemas acompanhado por músicos de jazz. Na área metropolitana, estão também as casas em que morou sua mãe e para onde o autor sempre voltava entre uma viagem e outra. Ficam no subúrbio, na área do Queens: a primeira, no bulevar Crossbay, em Ozone Park; e a segunda, na rua 134, em Richmond Hill.
Foi em Chicago, onde chegou de ônibus em 1947 e percorreu as ruas do centro ouvindo bebop, que Kerouac começou a dominar a arte de pegar carona e viajar com o mínimo de dinheiro. Partindo em direção a Denver, ele escreveu: “A primeira carona foi num caminhão carregado de dinamite, com bandeira vermelha e tudo, uns 50 quilômetros pela esverdeada amplitude de Illinois, com o caminhoneiro apontando o lugar onde a Rota 6, na qual a gente estava, se juntava com a Rota 66 antes de ambas mergulharem nas inacreditáveis distâncias do Oeste”.
No centro de Denver, no Colorado, que tem muita importância na narrativa de On the road, encontram-se até hoje a Rua Larimer e a Avenida C-Olfax que, nas décadas de 1940 e 1950, eram repletas de bares e clubes de jazz, nos quais o jovem Kerouac vagueava com os hepcats e com os amigos Neal Cassidy e Allen Ginsberg (Carlo Marx, no livro).
A Denver atual, moderna e bem organizada, lembra muito pouco os tempos de On the road. Mas, há alguns anos, um grupo de artistas locais lançou uma campanha para marcar os prédios frequentados pelo escritor com um carimbo-pichação nas paredes, em que está escrito “Jack was here” (“Jack esteve aqui”).
Pertinho dali, aos pés das Montanhas Rochosas, na cidade de Boulder, famosa por sua universidade e como centro alternativo, Kerouac é tratado como um ícone da contracultura. Podem-se ver seus livros nas vitrines de livrarias, nos restaurantes vegetarianos e nas lojinhas new age da Rua Pearl. Na cidade, a Universidade Naropa, uma herança da admiração dos beatniks pelo budismo, reúne a tradição do Oriente e Ocidente, promovendo o que chama de uma “educação contemplativa”. No campus, existe a Jack Kerouac School of Disembodied Poetics (Escola Jack Kerouac de Poética Desencarnada), fundada por Ginsberg, em 1974, e dedicada a ensinar escrita experimental em prosa, poesia e tradução.
Em São Francisco, vizinho ao Vesuvio Café, fica a City Lights, criada em 1953 pelo poeta Lawrence Ferlinghetti, editora dos beats e centro intelectual do movimento. Até hoje, é uma das livrarias mais apreciadas do planeta e ponto de encontro de escritores alternativos. Na mesma esquina, existe, desde 1988, a Jack Kerouac Street, na verdade um pequeno beco no qual o escritor é homenageado e que – de forma apropriada – leva à área de Chinatown.
São Francisco era uma espécie de exílio interno para os hipsters nos anos duros do pós-guerra. Kerouac passou várias temporadas na cidade, hospedando-se com o casal Neal e Carolyn Cassidy numa casa do Bairro de Russian Hill. Foi lá que reescreveu On the road, no ano de 1952, porque a primeira versão do texto, sem parágrafos e com alguns palavrões, havia sido rejeitada pelos editores.
Também em Russian Hill ficava a galeria de arte em que houve o recital Six poets at Six Gallery (Seis poetas na Six Gallery), em 1955, durante o qual Ginsberg declamou o seu poema Uivo, que lançou para o grande público o movimento beat (hoje é uma loja de tapetes).
Na estação de trem Southern Pacific, Kerouac trabalhou como carregador e guarda-freios. Perto dali ficava o hotel The Cameo, na Rua 3, em que o autor hospedava-se e escrevia, quando não estava na casa dos amigos. Das janelas do já então decadente Cameo, que não existe mais, o escritor observava, madrugada adentro, a vida regada a álcool, drogas e jazz, que está presente em muitos de seus livros.
O texto de Kerouac era escrito, ao mesmo tempo, em planos superabertos e intimistas. Sua prosa era sonora, exuberante, em tecnicolor, mas também tinha seus momentos de escuridão, sobretudo quando escrita sob efeito da bebida. Na vasta América do Norte, Kerouac registrou sua passagem por centenas de cidades, como Ogallala, no Nebraska; Ashtabull, no Ohio; Baton Rouge, na Louisiana; e Nuevo Laredo, do outro lado da fronteira (“que parece com a nossa Lhasa sagrada”, escreve num rompante de entusiasmo pelo México católico e pelo exótico e distante Tibete budista). Registrou também os vastos horizontes, as mudanças provocadas pela sociedade industrial, a solidão, a procura por Deus, o frenesi de uma juventude em busca da iluminação.
MARCELO ABREU, jornalista, professor universitário e autor de livros-reportagem e de viagens.
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