“Foi um dos meus contatos mais fortes com a arte fantástica. Até hoje me pego reproduzindo padrões dos video games em minha literatura”, diz a escritora carioca Ana Cristina Rodrigues. Por falar em livros, recentemente, a British Library decidiu abrir espaço também para os jogos eletrônicos. A instituição está montando um arquivo digital para “preservar a cultura dos games para as futuras gerações”. A ideia é registrar não somente os jogos, mas os subprodutos culturais dos gamers: resenhas, customizações, convenções, cosplays, vídeos de jogabilidade, romances derivados e outros elementos. Tudo para assinalar o impacto dos jogos na história recente da sociedade.
Com uma população madura ligada aos games, para além de uma massa de jovens adultos, adolescentes e crianças, era de se imaginar que os video games influenciassem no comportamento social. Para o professor do Centro de Informática (CIn) da UFPE, Vinicius Garcia, as pessoas mais expostas aos games são as que mais têm dificuldade de desempenhar funções consideradas tediosas, e costumam reagir quando não têm seu esforço reconhecido. Justamente porque uma dinâmica inerente aos jogos eletrônicos são as recompensas obtidas pela dificuldade, pelo esforço e desafio trazidos – sejam ganhos “materiais” ou simplesmente diversão.
L.A. Noire leva o gamer para a Los Angeles dos anos 1940. Imagem: Divulgação
“Sinto isso principalmente entre os mais jovens. Quem mais joga video game é quem mais reage positivamente ao estímulo. Se você pegar um gamer e alimentá-lo constantemente de desafios, certamente ele terá um desempenho excelente. Por outro lado, essas pessoas não atingem sucesso, se não forem provocadas”, comenta o professor. Segundo ele, gestores de empresas e educadores perceberam o valor dos jogos no trabalho e nos estudos.
“Hoje, muitos setores trabalham com a teoria da gameficação. Quer dizer, você estimula a competição, brinca e dá recompensas pelo desempenho da atividade. Na educação, isso funciona muito bem, até porque os jogos são inerentemente multidisciplinares. Brincando, é possível abordar vários tópicos, várias disciplinas ao mesmo tempo”, defende Vinicius Garcia, que acompanhou a criação da Olimpíada dos Jogos Educativos (OJE), iniciativa do governo, desenvolvida pelo Centro de Estudos e Sistemas Avançados do Recife (Cesar).
Jogos como o Grand theft auto 4 podem ter orçamentos superiores a US$ 100 milhões.
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COMPARAÇÕES
Hoje, é impossível não comparar os games ao cinema. Ambos são plataformas para exibição de uma narrativa. Dependem do meio visual e da interpretação de um personagem para tornar a experiência crível e empática. E são produzidos por um exército de profissionais: roteiristas, artistas gráficos, atores e, claro, programadores, além de orçamentos altos, muitas vezes, milionários, para cada título. Segundo dados da desenvolvedora Activision, um game do tipo AAA, ou seja, sua fina flor, custa pelo menos US$ 35 milhões – orçamento superior US$ 5 milhões ao do longa-metragem Distrito 9, produzido por Steven Spielberg. Jogos eletrônicos, como Grand theft auto 4, podem ter orçamentos superiores a US$ 100 milhões.
Para o designer Carlos Cavalcante, responsável pela arte conceitual dos jogos da empresa recifense Manifesto Games, a sofisticação encontrada no setor, hoje, leva facilmente ao entendimento dos games como uma forma de arte. “Já se vendem os desenhos originais e conceitos de um jogo em forma de artbook.” Além disso, Carlos defende que o sistema de criação de cada jogo envolve as mesmas angústias, questionamentos e desafios técnicos de uma pintura ou de um romance. “O processo é totalmente artístico. Na feitura de um deles, há escultores que usam programas 3D para criar personagens e cenários. Há pintores que usam tinta a óleo para obter o resultado desejado. Tem gente, também, que compra um jogo só porque ele é belo.”
God of war é uma história baseada na mitologia grega, com o protagonista lutando a serviço dos deuses do Olimpo. Imagem: Divulgação
Para o pesquisador e pós-doutorando em cibercultura Fábio Fernandes, essa definição não é unânime. “Tem muita gente boa na área dos games que despreza a ideia de que jogos são arte. Mas acho que eles podem, sim, ser considerados obras de arte, sem precisar se conformar aos padrões da indústria cultural”, diz Fernandes.
No fim das contas, se arte é o que chamamos de arte, games também podem ser o que as pessoas queiram que eles sejam. “Games são diversão, plataforma educacional, mídia social e forma de expressão. Essa multiplicidade de funções abre uma grande possibilidade para a compreensão deles também como arte”, defende o pesquisador.
O personagem Mário, da Nintendo, só usa boné devido à deficiência de se construir, em pixels, um cabelo convincente à época de sua criação. Imagem: Divulgação
Pensar que video games são uma forma de entretenimento raso é desmerecer o esforço de desenvolvedores que, cada vez mais, têm se esforçado para entregar histórias intensas, personagens memoráveis, narrativas complexas e jogabilidade de vanguarda.
EXPERIÊNCIA PESSOAL
Um dos maiores expoentes do que se pode chamar de “games de arte” é o aclamado Heavy rain, criado pela Quantic Dream para o console Playstation 3. Nele, o gamer encarna um policial que deve investigar uma série de assassinatos atribuídos ao Assassino do Origami. O jogo é estruturado como um filme noir interativo: em cada cena, o jogador deve interagir com personagens e objetos em cena, para progredir. Dependendo dessa interação, a próxima cena será modificada, fazendo com que cada experiência de jogo seja pessoal.
No jogo Shadow of the Colossus, um herói sem nome precisa destruir uma série de criaturas colossais para salvar sua amada. Imagem: Divulgação
O clima de detetive também é a escolha de L.A. noire, jogo que custou R$ 50 milhões e que transporta o gamer para a Los Angeles dos anos 1940. Tudo no título merece destaque: os enquadramentos de câmera, a fotografia cheia de contrastes e a estrutura narrativa digna de um Dashiell Hammett. O esforço serve para criar uma trama policial de época e também imergir quem controla o personagem na dinâmica de uma cidade completa, reconstruída digitalmente nos mínimos detalhes.
Mais conceitual, Okami brinca com as cores para, literalmente, pintar o universo ficcional. Nele, o jogador é uma divindade que tem que restabelecer o colorido do mundo. Misturando ação clássica com uma ferramenta de pincel virtual, ele permite que o jogador use a TV como tela de pintura e adicione brilho e alegria a um mundo em preto e branco.
O conceito de realidade aumentada envolve a fusão do mundo real com o ciberespaço. Imagem: Divulgação
Outro bom exemplo é Shadow of the Colossus, um jogo em que um herói sem nome precisa destruir uma série de criaturas colossais para salvar sua amada. O elemento inovador é que, em nenhum momento, o passado do personagem ou da sua amada inconsciente é revelado. Aliás, o silêncio predomina na maior parte do jogo, que também envolve horas de cavalgadas por campos vazios, como que para enfatizar a solidão sentida pelo herói misterioso.
FUTUROLOGIA
Há quatro décadas, o conceito de vídeo game limitava-se a um ponto branco sendo rebatido por dois travessões paralelos e opostos em uma tela negra. Hoje, a complexidade dos jogos é imensa, a cada ano surgem novas formas de interação. A última novidade é o sensor de movimento Kinect, que tornou obsoletos os controles tradicionais e aponta para como iremos interagir com os jogos eletrônicos, seja em casa ou na rua. Sim, porque é certo que, em 10 anos, os jogos estarão conosco em todos os lugares. E é bem possível, também, que estejamos dentro deles aonde quer que formos.
A estimativa da fabricante de celulares Ericsson é de que, em 2020, haja mais de 50 bilhões de aparelhos eletrônicos conectados à internet. Serão desktops, laptops, celulares, tablets, TVs, consoles, eletrodomésticos e até móveis ligados à internet. Todos serão computadores, no fim das contas, e todos terão capacidade de processamento suficiente para rodar aplicações complexas, como jogos.
O jogo que envolve o famoso Batman traz imagens extremamente realistas.
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Vale lembrar que, há duas décadas, o computador de consumo mais sofisticado tinha processador de 100 Mhz e disco rígido de pouco mais de 1 Gb. Hoje, os smartphones mais avançados usam processadores de núcleo duplo de 1,5 Ghz, além de poder armazenar até 64 Gb de informação. Definitivamente, a mesa da cozinha ou a parede do escritório poderão rodar a última versão de World of Warcraft.
A mudança será ainda mais significativa, quando as tecnologias de realidade aumentada estiverem disponíveis. O conceito envolve a fusão do mundo real com o ciberespaço. Através de óculos conectados, por exemplo, será possível interagir com um conteúdo digital relacionado a objetos do mundo real. Aplicada ao universo dos games, a realidade aumentada criará um tipo de imersão nunca experimentada. Será possível, por exemplo, participar de narrativas ficcionais em um ambiente real e ter estatísticas, localização e pontuação de outras pessoas (até desconhecidos) no meio da rua. Como um jogo de polícia e ladrão, mas com meios para determinar se um “tiro” atingiu seu alvo ou não.
Para o futurólogo Ray Kurzweil, autor do livro A era das máquinas espirituais, esse tipo de tecnologia estará disponível por volta de 2020. “Os jogos irão competir com a realidade”, disse o cientista, em sua palestra de abertura da Game Developers Conference, de 2008. “Mais importante que isso é que os meios de produção já estão disponíveis para qualquer um. É possível criar um jogo tendo apenas US$ 1 mil no bolso e um laptop”, observou. Um mundo com computação e internet universal e com um game designer em cada família. Esse deverá ser o futuro dos video games.
JACQUES WALLER, jornalista, repórter do caderno Tecnologia do Jornal do Commercio.
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