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“A sociedade, a educação e a cultura estão se gameficando”

Criadora do Laboratório de Imagem e Som da UnB, a artista, professora e pesquisadora Suzete Venturelli fala sobre o papel dos games na cultura contemporânea e em temas como o "transumanismo"

TEXTO Thiago Lins

01 de Abril de 2012

Suzete Venturelli

Suzete Venturelli

Foto Divulgação

[conteúdo vinculado à reportagem de "Tecnologia" | ed. 136 | abril 2012]

A artista, professora
e pesquisadora Suzete Venturelli trabalha com computação gráfica desde 1987. Doutora em Ciência da Arte pela Sorbonne, criou em 1989 o Laboratório de Imagem e Som da UnB, no qual ensina até hoje, e já participou de diversos eventos nacionais e internacionais ligados aos jogos. Ela também coordena projetos como o Wikinarua, uma rede social que leva a tecnologia de realidade aumentada a comunidades isoladas. O sistema em 3D funde elementos virtuais com o ambiente real e foi um dos assuntos comentados pela artista, que ainda falou do papel dos games na cultura contemporânea, da subutilização das redes sociais no ambiente educacional e de campos em desenvolvimento, como o transumanismo, ciência que busca a superação dos limites humanos através da tecnologia.

CONTINENTE É fato que os games, hoje, fazem parte da cultura pop. Não faltam referências em HQs, filmes etc. Mas em que grau podemos dizer que eles estão inseridos na cultura?
SUZETE VENTURELLI Na atualidade, os games fazem parte, profundamente, da cultura digital, que ainda está em formação. As características que eu atribuo à mesma e que fizeram com que os games se tornassem tão populares são: possibilidade de misturar diferentes produtos baseados na linguagem digital, comunicação em tempo real entre a cultura local e global e conexões diversas e diferentes entre indivíduos, centros, grupos etc.

CONTINENTE Os video games portáteis já eram relativamente populares antes dos celulares. Muita gente ainda tem saudade do Game Boy (aparelhinho da japonesa Nintendo, um sucesso nos anos 1990). Afora os grafismos e a possibilidade de jogar em rede em qualquer lugar, em que mais avançamos com os consoles portáteis?
SUZETE VENTURELLI Ocorreram avanços artísticos e tecnocientíficos. Os artísticos dizem respeito à computação gráfica, realismo da simulação de personagens, cenários e ambientes. A jogabilidade ou a experiência que o jogador tem, quando está imerso no game, é um aspecto ampliado com os avanços da tecnociência, principalmente na interatividade que a tecnologia da inteligência artificial proporciona, como movimento, ações e aprendizado do game sem a intervenção humana. O game é uma entidade viva. Um ser vivo. Por exemplo, em 2001, Black & White (jogo de estratégia em que o gamer é um deus e precisa convencer os mortais a acreditarem nele) foi citado pela mídia em função dos personagens aprenderem com as decisões do jogador. Usavam a tecnologia de observation learning e redes neurais (o primeiro, método de aprendizado que se baseia em observar e repetir; já as redes neurais são um sistema computacional cuja estrutura se assemelha à do cérebro).

CONTINENTE Nos ambientes corporativo e acadêmico, os jogos vêm sendo adotados como incentivo ao desenvolvimento dos sentidos e do espírito competitivo. Eles nasceram como uma forma de entretenimento e não o deixaram de ser, embora o status tenha sido ampliado. Mas o perfil do jogador é necessária ou majoritariamente competitivo?
SUZETE VENTURELLI Como artista, tenho buscado, de forma coletiva com a equipe aqui do Midialab, criticar essa história de competição, como se isso fizesse parte de nosso instinto. Acho que a competição é cultural. Para mim, os jogadores querem, sim, ter prazer e brincar. Competir não é a prioridade. Games educativos, nos quais não há competição, são lúdicos, também prendem o jogador, por causa da motivação que trazem. O jogo Myst (best-seller de aventura que marcou época, lançado em 1994), de resolução de enigmas, é um clássico que foge da competição e violência.

CONTINENTE Myst foi um dos jogos que mais inspiraram quadrinhos e livros. Hoje, os games estão diretamente ligados a outros ramos de entretenimento, como o cinema e a música. A “crise da indústria fonográfica” virou lugar-comum – não é diferente com o cinema. Mas o mercado de games não sentiu o abalo de maneira tão forte... O público gamer é mais rigoroso?
SUZETE VENTURELLI Para o gamer, a coisa é diferente, pois o fato de jogar vai além do reflexo psicológico ou puramente fisiológico. Ocorre, por meio do jogo, uma função significante, que contém sentido, através da relação ação/resultado. A sociedade, a educação e a cultura estão se gameficando, acho que é isso que está segurando esse mercado.

CONTINENTE A internet e as redes sociais podem substituir as escolas, mais ou menos como já acontece com os escritórios?
SUZETE VENTURELLI Hoje, se você entrar em qualquer sala de aula, retornará ao século 19, apesar de toda a evolução tecnológica e dos meios de comunicação. Acho que as instituições de ensino deveriam estar pensando em como aproveitar tudo isso que temos, para proporcionar um ensino presencial mais adequado ao ciberespaço. Acho que a educação à distância pode ser melhor aproveitada no ensino presencial. Estou tentando trabalhar com meus alunos, envolvendo-os em projetos e pesquisa desde a graduação. Recorro à arte e à tecnociência para isso, também.

CONTINENTE A realidade aumentada já tem aplicações práticas, porém específicas, como o projeto Wikinarua, que você coordena. Como esse conceito pode ser ampliado e que benefícios pode trazer para a sociedade?
SUZETE VENTURELLI A implementação de tecnologia de ponta em dispositivos móveis ainda está devagar. É muito cara, mas não tem retorno. A fusão entre o real e as imagens de síntese é inevitável e traz a possibilidade de enriquecer com mais informações o mundo físico, em tempo real. É uma nova forma de ver o mundo e de proporcionar maior integração e ampliação da percepção sensorial.

CONTINENTE Hoje, qualquer um pode conceber um jogo, com algum orçamento e um bom computador. Essa circunstância remete à máxima do punk rock, o faça-você-mesmo. Os games já passaram, ou devem passar, por um tipo de revolução alternativa, com jogos sendo “viralizados” sem o aval de grandes corporações?
SUZETE VENTURELLI É tão bom ter liberdade de criação sem ter que se submeter às grandes empresas... Alguns estudantes que orientei estão se lançando no mundo com seus próprios negócios. É muito bacana. Espero que eles continuem jovens e tragam propostas criativas para o campo e a indústria, introduzindo a pesquisa como base para a inovação das equipes.

CONTINENTE Já existem empresas de comunicação especializadas no nicho sensorial, possibilitando novas formas de alcançar o público, uma vez que mais sentidos são atingidos. Esse tipo de publicidade está longe de ser massificado
SUZETE VENTURELLI O problema é que a publicidade está comprometida com a venda de um produto. É necessário ter uma filosofia para enfrentar a massificação das informações. Acho que uma saída é o transumanismo.

CONTINENTE A ideia do transumanismo ainda soa como um delírio nerd, por buscar a superação dos limites humanos. Aonde essa ciência já chegou?
SUZETE VENTURELLI Estou lendo alguns textos de Miguel Nicolelis (neurocientista paulista) e fiquei impressionada com as pesquisas da neurociência, principalmente sobre a interface máquina-cérebro. Ano passado, realizamos o 10º Encontro Internacional de Arte e Tecnologia, aqui em Brasília, e o tema principal foi sobre neuroestética. Os transumanistas – e me considero uma também – acompanham as pesquisas tecnocientíficas e já perceberam que estamos sendo mudados por elas. Conhecendo o que acontece podemos interferir, criticar e propor outros caminhos. 

THIAGO LINS, repórter especial da revista Continente.

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