É imerso nessa técnica minuciosa e artesanal, e que demanda tempo aliado à paciência, que o realizador uruguaio Walter Tournier, 68 anos (veja entrevista no box), desenvolve há quase quatro décadas seus filmes de animação em stop motion. Maestria e dedicação que já lhe renderam reconhecimento internacional e prêmios em países como Alemanha, França, Argentina, Bolívia, Cuba, Espanha, Peru e Brasil. Seu curta-metragem Nuestro pequeño paraíso foi selecionado como um dos melhores filmes de animação do século 20, no consagrado Festival de Annecy, na França, em 2000.
Desde 1998, o diretor mantém o estúdio Tounier Animación, instalado em Montevidéu. O espaço reúne profissionais que desenvolvem desde roteiro até pós-produção digital. Tournier deixa claro que não tem nada contra a animação computadorizada em 3D. Tanto é que, quando necessário, recorre a profissionais da área. Foi o que aconteceu no seu primeiro longa Selkirk, el verdadero Robinson Crusoe, uma coprodução do Uruguai, Argentina e Chile, de 90 minutos, previsto para ser lançado em fevereiro do próximo ano. No filme, os personagens são animados em stop motion e os cenários desenvolvidos em 3D. “Há muita gente boa trabalhando com essa técnica, mas eu fico com a minha”, diz, com a convicção de um mestre que domina e tem orgulho de sua arte.
Entre suas produções mais relevantes, destacam-se a série Los tatitos, veiculada nas televisões do Uruguai e Argentina, El jefe y el carpintero e Navidad caribeña, produzidos para a TV de Gales e o Discovery Kids, além do curta A pesar de todo e da série Los derechos del niño, transmitidos em mais de 200 emissoras da América Latina. Grande parte desses filmes poderá ser vista na abertura do Brasil Stop Motion 2011 – I Festival Internacional de Stop Motion do Brasil, que vai acontecer no Recife e em Olinda, neste novembro, entre os dias 22 e 26, com projeções no Cinema São Luiz. Walter Tournier será o convidado de honra do festival, que tem o patrocínio do Governo de Pernambuco, por meio do Edital Audiovisual do Funcultura.
Los derechos del niño, de Walter Tournier, é exibida em mais de 200 emissoras da América Latina. Imagem: Divulgação
MASSA DE MODELAR
Como estrela maior de Pernambuco, o I Brasil Stop Motion terá a jovem realizadora Nara Normande, 25 anos, diretora do filme Dia estrelado, uma produção de 17 minutos, finalizado recentemente, após quase quatro anos de trabalho contínuo. Nara desenvolveu seu projeto usando, principalmente, papel e massa de modelar para dar vida a um cenário inóspito, no qual se desenrola a luta pela sobrevivência de um menino e sua família. “Eu e minha equipe trabalhamos duro para fazer desse filme uma pequena obra de arte – tudo foi feito manualmente, do papel machê, arame e espuma, para construir os cenários, aos 200 kg de massa de modelar para fazer o céu. Eu adoro o fato de poder ver as impressões digitais nos bonecos”.
Assim como Tournier, a realizadora não se interessa pela animação computadorizada em 3D. E explica: “Gosto do trabalho artesanal e, com o stop motion, é possível se fazer um filme mais rústico, em que as mãos dos criadores possam ser reconhecidas e atestadas como atuantes em toda a encenação”.
Atualmente, a animação em stop motion é obtida a partir da captura digital das imagens que são, posteriormente, editadas sequencialmente no computador, com o uso de programas específicos para a técnica. Dentre suas modalidades, destacam-se as produções com bonecos, objetos e pessoas. O stop motion está presente no cinema, nos filmes experimentais, na publicidade. Mas, até chegar a ser uma técnica reconhecida e aplaudida pelo grande público, por filmes premiados como O estranho mundo de Jack (1993), do americano Tim Burton, e A fuga das galinhas (2000), produzido pelo Aardman, um dos grandes estúdios ingleses de animação com modelos, o stop motion percorreu um longo caminho.
La increíble historia de la niñapajaro, da produtora espanhola OQO filmes, estará na mostra especial do festival. Imagem: Divulgação
PRECURSORES
Foi no contexto da expansão científica na Europa, na metade do século 17, que o padre jesuíta Athanasius Kirther lançou seu livro A grande arte da luz e sombra (Ars magna lucis et umbrae), em 1665, que dedicava seu último capítulo à invenção da lanterna mágica: uma caixa com orifício e lente curva, iluminada internamente por vela ou lâmpada a óleo, que projetava, em tamanho ampliado, desenhos feitos sobre placas de vidro. Constitui-se assim, o equipamento antecessor dos modernos sistemas de projeção de diapositivos e do cinema. Apesar do ceticismo inicial, o fascínio pela lanterna mágica espalhou-se, tornando-se um objeto de interesse geral do público.
Quase 100 anos depois, outro alemão, Pieter van Musschenbrock, apresenta um disco removível com sequência de imagens que produziam a ilusão do movimento. O invento provocou um verdadeiro rebuliço no mundo do espetáculo e, segundo Charles Solomon, no seu livro A história da animação, a partir de então, “como uma tempestade no mar, surge o primeiro entretenimento animado”.
Os inventos não pararam de surgir, mas, apesar da multiplicidade deles, os artefatos que simulavam o movimento utilizavam apenas desenhos, pinturas e recortes. Com o surgimento da fotografia, entra em cena o lendário fotógrafo inglês Eadweard J. Muybridge, nascido em 1830. Os estudos pioneiros de Muybridge sobre a mobilidade animal e humana foram revolucionários no captar, decompor e representar o movimento. O fotógrafo também marcou espaço na projeção de imagens com a invenção do zoopraxiscópio – equipamento usado para dar animação às suas fotografias.
El color del agua é um dos filmes de Walter Tournier que estão na mostra.
Imagem: Divulgação
Muybridge morreu em 1904, logo após ter sido realizado, em 1898, The Humpty Dumpty Circus, dos ingleses Albert E. Smith e James Stuart Blacklton, apontado por pesquisadores como o primeiro filme animado com a técnica de stop motion. Sobre a animação, Smith relatou que fez uso de um brinquedo de madeira da sua filha, composto por figuras de artistas e animais de circo, cujas articulações móveis permitiam colocá-los em posições equilibradas. “Foi um processo tedioso, na medida em que o movimento só poderia ser alcançado apenas por fotografias feitas separadamente a cada mudança de posição. Sugeri que deveríamos obter uma patente sobre o processo; Blackton, no entanto, achou que não era importante o suficiente para patenteá-lo.” Apesar do depoimento ter sido registrado, não restou nenhuma cópia do filme.
Foi também no início do século 20 que o mágico e ilusionista francês George Méliès vislumbrou no stop motion uma ótima possibilidade para dar sequência aos seus truques que encantavam a todos, tendo alcançado o ápice de sua carreira cinematográfica com o filme Viagem à Lua, de 1902. Ao longo desse século, a técnica foi aprimorada por diversos diretores e usada para criar os efeitos especiais na indústria cinematográfica, que ainda não dispunha de uma tecnologia capaz de resultar em cenas digitais.
Com a expansão da indústria cinematográfica em 3D, a técnica do stop motion está fadada ao desaparecimento? Para o mestre Tournier, essa é uma questão sem fundamento: “Basta olhar para a nova produção cinematográfica. Na verdade, estão sendo feitos cada vez mais filmes com esse sistema tradicional de animação”.
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