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Carnaval: Mulheres erguem o estandarte

No universo das agremiações carnavalescas, tradicionalmente dominado pelos homens, elas se destacaram ao criar grupos a partir das entidades trabalhistas, já em fins do século 19

TEXTO Gilson Oliveira

01 de Fevereiro de 2011

Entre os sonhos realizados pela costureira e presidenta do Estrela Brilhante, Marivalda dos Santos, está a turnê que o maracatu nação fez pela Europa

Entre os sonhos realizados pela costureira e presidenta do Estrela Brilhante, Marivalda dos Santos, está a turnê que o maracatu nação fez pela Europa

Foto Jason Gardner

Fundada em 2 de fevereiro de 1889, mais de sete meses antes da Proclamação da República, a Troça Carnavalesca Mista Verdureiras de São José não teve, obviamente, influência sobre esse episódio histórico, assim como a criação do Clube Carnavalesco Misto Pás Douradas, em 19 de março de 1888, não repercutiu na Abolição da Escravatura, acontecida quase dois meses depois. Mas uma observação mais atenta do panorama social e político da capital pernambucana no final do século 19 mostra que existe uma relação profunda entre esses fatos, e também entre eles e o surgimento de um dos ícones sonoros de Pernambuco – que teve como berço os clubes carnavalescos.

“O movimento popular, que culmina com a denominação de frevo, nasce da realidade dos conflitos sociais das ruas do Recife, ao longo do século 19. Suas origens remetem às lutas e resistências. Os pernambucanos que reivindicavam a libertação dos escravos, a expulsão dos portugueses e a Proclamação da República foram os mesmos atores sociais que propiciaram o surgimento do frevo”, diz a escritora e pesquisadora recifense Cláudia Lima, no artigo Um movimento popular chamado frevo. Essa visão é compartilhada pela pesquisadora da Fundação Joaquim Nabuco (Fundaj) Rita de Cássia Barbosa de Araújo, que afirma no ensaio Carnaval do Recife: A alegria guerreira: “O frevo seria, por um lado, o produto cultural mais bem-acabado e capaz de expressar o espírito de luta e rebeldia que tanto motivou o pernambucano ao longo de todo o século 19”.

Foi, portanto, em um ambiente de grande agitação político-social, no qual a discriminação por gênero era tão radical quanto a econômica e a cultural, que surgiram, por volta de 1880, muitas agremiações carnavalescas com denominações alusivas às mulheres. A maioria está extinta há muito tempo e praticamente não existem informações sobre elas, o que torna difícil afirmar que eram integradas exclusivamente pelo sexo feminino. Mas há quem garanta que muitas eram. É o caso da Verdureiras de São José. “Ela foi criada por mulheres que vendiam verdura no Mercado de São José”, afirma Maria Graciete, atual presidente da agremiação, acrescentando que a troça passou muitas décadas inativa e só voltou a atuar em 1985, a partir do incentivo de lideranças femininas como Badia, figura lendária da folia recifense, cuja casa, no Bairro de São José, centro do Recife, era uma espécie de quartel-general da folia no local.

Como as classes trabalhadoras começavam a se organizar e as entidades trabalhistas passaram a manter uma estreita relação com os clubes, elas batizaram as agremiações a partir de suas atividades profissionais. Assim, surgiram, além da Verdureiras, a Parteiras de São José, Engomadeiras e Cigarreiras Revoltosas, entre outras. O mesmo espírito profissional orientou os batismos na área masculina, como demonstram não só o clube Pás Douradas (dos carvoeiros), o Vassourinhas (varredores) e outros, cujos nomes deixavam bem explícitas as atividades às quais estavam ligados, a exemplo de Carpinteiros, Marceneiros, Sapateiros e Funileiros.

Na época em que surgiram essas agremiações, as camadas populares estavam voltando a participar da folia, o que, desde 1822, tinha sido reprimido pelas autoridades públicas, principalmente na forma deentrudo – folguedo carnavalesco trazido para o Brasil pelos portugueses e caracterizado pela violência e falta de limites, com os foliões jogando coisas uns contra os outros, desde goma e pó de mico à fuligem e urina.


A irreverência feminina está presente em agremiações olindenses, como Hoje a Mangueira Entra. Foto: Divulgação

Denominadas “clubes pedestres”, porque todo o desfile era feito a pé, as agremiações ligadas às classes pobres tinham como contraponto os “clubes de alegoria e crítica”, que haviam surgido a partir de 1855 e durante mais de duas décadas dominaram os folguedos momescos do Recife. Ligados às sociedades carnavalescas, criadas pelas classes mais abastadas, essas agremiações eram inspiradas no carnaval europeu e tinham como ponto alto de suas festas o desfile de luxuosos carros alegóricos. Para tornar a folia ainda mais “civilizada”, a burguesia importou os bailes de máscaras de Veneza, Roma, Paris e Nice.

Todo esse glamour, somado ao desprezo das elites, às críticas dos jornais e à repressão policial, não inibiu o povão de botar o bloco na rua, e as agremiações se multiplicaram rapidamente, sobretudo depois da Abolição. Como sempre, os desfiles eram acompanhados por fantasias de diabos, morcegos e outros bichos e arrastavam todo tipo de gente: vadios, moleques de rua, prostitutas e grupos de capoeiristas, esses últimos formados principalmente por ex-escravos, que ficavam sempre na parte da frente dos desfiles e revidavam com violência a qualquer crítica feita a seus clubes.

Com relação a esses brigões, é interessante ressaltar que ficaram na história também por terem colaborado com a criação de um novo tipo de música e de dança. É o que defende Valdemar de Oliveira, no livro Frevo, capoeira e passo, argumentando que o gingado dos capoeiristas influenciavam os músicos das orquestras das agremiações, levando-os a acelerar o ritmo das obras executadas, e, em contrapartida, a música interferia na evolução dos lutadores, criando original e frenética coreografia. Os nomes das modalidades do passo (“tesoura”, “dobradiça”...) e os títulos de alguns frevos de rua (ArengueiroSatanás na onda...) esclarecem sobre a origem capoeirística de ambos.

Quanto aos demais participantes dos clubes pedestres, embora admirassem a pompa da Mi-Caréme e do Bal-masquê – os desfiles de carros alegóricos e os bailes da burguesia – tratavam com ironia a folia burguesa. Uma ilustração disso está na fala da negra Isaura, do romance O moleque Ricardo, de José Lins do Rego: “Carnaval de bloco não presta, não presta não. É colégio. Ninguém pode sair de forma”, palavras que parecem repercutir na observação de Olga von Simson, pesquisadora da Unicamp, no estudo Mulher e carnaval: mito e realidade, no capítulo em que analisa a participação feminina nos antigos carnavais de São Paulo e do Rio de Janeiro: “tanto nos desfiles processionais (formados por grandes carros alegóricos ou de crítica, animados por banda de música e abertos por comissões equestres), como nos animados bailes de máscaras, as mulheres de família não podiam tomar parte ativa, ficando restritas à situação de espectadoras da folia de Momo”.

Na esfera dos maracatus nação ou de baque virado (o maracatu rural ou de baque solto surgiria depois) as mulheres sempre marcaram forte presença, nas figuras de rainhas e princesas, mas a visão que a sociedade tinha delas, como dessa manifestação cultural de maneira geral, pode ser avaliada por um artigo publicado no jornal A Província, de 1877e reproduzido pelo pesquisador Evandro Rabello, no livro Memória da folia: o Carnaval do Recife pelos olhos da imprensa. Diz o texto: “Maracatu é uma coisa infame, estúpida e triste! Estamos todos de acordo, mas por quê consentimos nisto? Pois o povo (que é povo senão um horda de escravos vadios, que faz o maracatu) não pode divertir-se pelo carnaval, de um modo menos estupidamente infame e triste, degradante e incômodo?”.


“Os homens, antigamente, só nos aceitavam como costureiras”,
lembra a presidente do bloco Pierrot de São José, Dona Sevy.
Foto: Roberta Guimarães

BLOCOS MISTOS
O sexo feminino procurou ampliar cada vez mais seu papel na criação, organização, preservação e evolução das agremiações e dos festejos carnavalescos, mas inicialmente a reação masculina era forte: “Os homens, antigamente, só nos aceitavam como costureiras”, lembra a presidente do Bloco Carnavalesco Misto Pierrot de São José, Dona Sevy Caminha, 75 anos, baseando sua afirmativa, principalmente, na tradição oral dos muitos clubes pelos quais passou.

Em Pernambuco, uma das primeiras a romper esses limites foi Joana Batista Ramos, autora da letra original da Marcha nº 1 do Clube Vassourinhas, mais famoso frevo pernambucano, que tem música de Matias da Rocha. Pouco se sabe sobre a vida de Joana, muito menos como conseguiu ser aceita como compositora, uma vez que a produção musical das agremiações sempre foi reduto masculino. Exemplo dessa realidade, ainda nos dias de hoje, foi dado por Dona Ivone Lara, da carioca Império Serrano, que, apesar de ser conhecida em todo o Brasil, se sentiu discriminada em sua escola, chegando a dizer, como registra o já citado estudo da pesquisadora Olga von Simson:“Começaram a fazer política contra mim. (...) Achavam que mulher não deve tomar parte da ala dos compositores”.

Como musas, a relação das mulheres com a música, dentro e fora da folia, também sempre foi cheia de contradições. Ao mesmo tempo em que eram tratadas como “estátua majestosa” (Rosa, de Pixinguinha e Otávio de Souza), viraram alvo de versos como: “Que mulher indigesta, / merece um tijolo na testa” (Mulher indigesta, Noel Rosa); “Esta mulher/ há muito tempo me provoca/ dá nela! dá nela!/ É perigosa/ fala mais que pata choca / dá nela! dá nela!” (Dá nela, Ary Barroso); e “Às vezes, passava fome a meu lado/ e achava bonito não ter o que comer” (Ai, que saudades da Amélia, Ataulfo Alves e Mário Lago, grande sucesso no Carnaval de 1942).

Um velho sonho das mulheres de classe média, o de brincar o Carnaval de rua, tornou-se realidade no Recife com a criação dos blocos carnavalescos mistos (misto expressa exatamente a oficialização da participação feminina e seria incorporado também pelas troças e clubes de frevo). Os mais antigos grupos do gênero em atividade são Madeira do Rosarinho, de 1926, e Banhistas do Pina e Batutas de São José, de 1932 – mesmo ano em que as mulheres adquiriram o direito de votar. Quem morava nessa época na cidade era a menina Clarice Lispector, que anos depois diria no conto Restos do Carnaval: “E quando a festa já ia se aproximando, como explicar a agitação que me tomava? Como se enfim o mundo se abrisse, de botão que era, em grande rosa escarlate. Como se as ruas e praças do Recife enfim explicassem para que tinham sido feitas. Como se vozes humanas enfim cantassem a capacidade de prazer que era secreta em mim. Carnaval era meu, meu”.

Pelo menos na área carnavalesca, faz muito tempo que as mulheres chegaram à presidência. Em Pernambuco, elas já estão no comando de agremiações como clubes de frevo, troças, blocos líricos, bois de carnaval, caboclinhos, tribos de índios, maracatus, escolas de samba, afoxés e ursos. Além de organizar ensaios e desfiles, muitas ampliaram o papel social dos clubes, oferecendo desde variadas atividades recreativo-culturais a cursos de informática, buscando, entre outras coisas, colaborar para que os jovens não se envolvam com a marginalidade.


Presidente do Oxóssi Pena Branca, Zuleide Alves
integrava-se ao samba até ser conquistada pela cultura indígena.
Foto: Roberta Guimarães

Ao longo do tempo, também têm se multiplicado, em vários setores, os grupos formados exclusivamente pelo sexo feminino, a exemplo das Traquinas de São José, fundado em 1977 e considerado o primeiro grupo de samba do Brasil formado só por mulheres; a Orquestra 100% Mulher, também do Recife, e o maracatu Conxitas, de Olinda. Foi em 1978 que Dona Sevy Caminha criou o Bloco Pierrot de São José, que ainda hoje tem sede em sua casa e é dirigido em conjunto com seus familiares. Segundo ela, a fundação do bloco foi uma forma de colocar em prática, com liberdade, uma série de projetos carnavalescos surgidos quando ainda era bem jovem.

Atual vice-presidente do Clube das Pás – a primeira a exercer essa função na agremiação –, Zene dos Anjos Bezerra só começou a se envolver com a organização dos festejos carnavalescos em 1978, quando ficou viúva. Residente em Boa Viagem e formada em Relações Públicas, Zene diz que, no início, sofreu muitas críticas da família e de amigos, mas hoje eles até vibram com o seu sucesso. Uma de suas mais gratas recordações é a apresentação da agremiação na sede da Mangueira, no Rio de Janeiro, e, em seguida, pelas ruas de Niterói, em 2007.

Carnavalesca desde criança, Zuleide Alves, presidente do Caboclinhos Oxóssi Pena Branca, diz que sempre viveu na área do samba, mas terminou “virando a cabeça” pela cultura indígena, tanto pelo lado profano como pelo sagrado. Embora às vezes desanime pelas dificuldades de manter a agremiação, que tem como vice-presidente Kátia Xavier, Zuleide avalia que tem crescido o apoio governamental aos carnavalescos, que antigamente “viviam mendigando”. Um dos grandes feitos do Oxóssi nos últimos tempos foi a apresentação, em 2009, na cidade de Floresta, sertão pernambucano.

“Os tambores acariciam a noite, Sinhá Marivalda acordou”. Esses versos de uma música do cantor e compositor Silvério Pessoa são apenas uma das homenagens que a presidente do Maracatu Estrela Brilhante, Marivalda dos Santos, tem recebido nos últimos tempos, devido ao trabalho cultural e social que vem realizando. “Um dos meus sonhos é continuar ajudando a comunidade e, com o apoio da família, fazer um Carnaval cada vez melhor”. Entre os sonhos já realizados por Marivalda, que desde os 12 anos trabalha como costureira, está a excursão que o Estrela Brilhante fez por países da Europa.

Para dar maior visibilidade à participação das mulheres na preservação e condução das manifestações culturais da folia da cidade, a Prefeitura do Recife pretende lançar, no início de março deste ano, um livro com perfil de 30 carnavalescas. Escrito pela produtora cultural e professora da UFPE Claudilene Silva, a obra, cujo título provisório é Mulheres do Carnaval do Recife, focaliza lideranças femininas do presente e do passado, como Badia, Dona Ivanize de Xangô e Dona Santa, rainha do Maracatu Elefante (fundado em 1880), que, durante o Estado Novo, foi uma das grandes lutadoras contra a perseguição que os governos Vargas e Agamenon Magalhães promoveram contra as manifestações culturais de origem africana.


Vice-presidente do Clube das Pás, Zene dos Anjos Bezerra é a primeira mulher a exercer essa função na agremiação. Foto: Roberta Guimarães

A INVENÇÃO DAS FOLIÃS OLINDENSES
Na antiga capital pernambucana, a presença feminina no Carnaval é cada vez mais, pode-se dizer, gigantesca. E não apenas pelo crescimento do número de bonecas gigantes, que, incorporadas à folia olindense em 1967, com a criação de A Mulher do Dia, somam dezenas. Uma das principais justificativas ao adjetivo é a multiplicação de agremiações fundadas e dirigidas por mulheres, embora nem todas ostentem isso nos seus títulos.

Uma das pioneiras foi Laura Nigro, hoje nome de praça no sítio histórico da cidade. Falecida em 2007, aos 98 anos, ajudou a fundar algumas das mais famosas agremiações olindenses, como Pitombeira dos Quatro Cantos, Flor da Lira e Olinda, Quero Cantar, esta, em homenagem ao marido Clídio Nigro, autor da música do Hino do Elefante de Olinda, cujos versos costumam ser cantados por milhões de vozes durante a folia: “Olinda, quero cantar/ a ti esta canção”.

As mulheres também estiveram à frente de alguns dos grupos mais irreverentes do carnaval pernambucano. É o caso do Siri na Lata, surgido em 1976, em plena ditadura militar, com o objetivo de, como diziam as organizadoras, “falar mal do governo”. Tendo como sede o extinto bar Maconhão, não é preciso dizer que seus desfiles naqueles tempos eram considerados “caso de polícia”.

Outra agremiação que, nos anos de chumbo, sempre desfilou “escoltada” é o bloco Segura a Coisa, que tem entre as fundadoras a cineasta Andreia Mota, a pesquisadora Pii e a cantora Miúcha (ambas irmãs de Chico Buarque). Miúcha é autora do hino: “Segura a coisa que eu chego já/ (...) / o bumba batendo levantado a fumaça/ o bloco contente com a massa”.

Atualmente, a irreverência feminina está cada vez mais presente em agremiações exclusivas, a exemplo de I Love Cafusú e Hoje a Mangueira Entra, que, devido ao nome (na verdade, uma homenagem à Mangueira, do Rio, que entra na passarela no domingo, mesmo dia em que as olindenses desfilavam), fez, inicialmente, os maridos das integrantes dizerem frases do tipo: “A mangueira hoje entra na rua e, em casa, o pau come!”. 

GILSON OLIVEIRA, jornalista e revisor.

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