Apresentando-se no Recife, no último domingo (4/6), no Trema! Festival, a messias, em corpo travesti, vem ao mundo pela peça O Evangelho segundo Jesus, Rainha do Céu e escancara seu calvário: a paixão dos excluídos, das párias e dos corpos abjetos diante de uma sociedade intolerante com a alteridade. Como da primeira vez que veio à Terra, os ensinamentos de Jesus incorporam uma insubordinação radical e uma compaixão profunda por si e por todxs.
“Isso acontece...”, repete Jesus em tom sereno, depois de narrativas violentas sobre mortes, abusos, agressões. Não há conivência, não há silenciamento, cumplicidade ou resignação, mas tampouco há ódio. A raiva é o sentimento próprio dos preconceituosos, “é o único talento que têm, e não vale nada”. Ao contrário, ainda que abordando temas carregados de dor e tristeza, a “mensagem” vem com uma leveza saborosa e doses altas de deboche.
Atriz trans, Renata Carvalho entra em cena deliciando-se com uma lata de guaraná Jesus no meio de um Teatro Apolo lotado. Todas as cadeiras preenchidas sinalizam o sucesso de uma encenação potente, polêmica e necessária – O Evangelho... chegou a ser censurada em duas cidades (Jundiaí e Salvador), o que compôs o cenário de retrocessos brasileiros de 2017 que somam o fechamento precoce da mostra Queermuseu, a perseguição à nudez de Wagner Schwartz na performance La bête, no MAM-SP, e outros episódios como o do performer Maikon K, preso por estar nu em DNA de DAN, também parte da programação desta sexta edição do Trema!.
Plateia do espetáculo de Renata Carvalho no Teatro Apolo. Foto: Rogério Alves/Divulgação
Passeando pelas cadeiras, Jesus reconhece uma plateia repleta de pessoas trans, como costuma ser em todas as apresentações. Aquele corpo político em cena proporciona várias camadas de significado, mas uma delas, certamente, é a da representatividade, pela qual a própria atriz milita. Seu vestido preto – Susana que escolheu – e seu salto grosso lhe dão um caminhar sóbrio. Seus cabelos cacheados na altura dos ombros lhe assemelham à imagem de Cristo, mas não de um Cristo cis-heteronormativo. A atriz não perde nem por um segundo o contato com a plateia, por onde transita durante toda uma hora e meia de espetáculo. Olha no olho, provoca, instiga participação e respostas em coro, improvisa, num timing que ora nos lembra as comédias de stand-up, ora a pregação das igrejas neopentecostais.
As fábulas bíblicas explodem em releituras contemporâneas. O bom samaritano, Amulher adúltera e Asemente de mostarda são reencenadas em um altar repleto de velas logo após ser feita a luz. Na peça, plena de intertextos bíblicos e referências à liturgia cristã, Jesus comunga seu corpo, em forma de pão e seu sangue, em forma de vinho, ensinando a oração “Mãe nossa que está na terra”, para fiéis, mais uma vez, sem distinção. A missa dominical, repleta de sermões, se mistura ao Pajubá (dialeto criado pelas travestis da noite) e a diversas referências da cultura LGBTQ (um beijo pras travestis), em uma versão do texto inglês carregada de autoria. Como diria a própria Renata, em neologismo preciso: é pura transpofagia.
O pacto é de amor, prazer, cuidado, respeito. Do jeito que tem de ser. E o público, cativado, retribui. Grita, assovia, responde, canta, se remexe na cadeira. Se regojiza ao ver uma travesti em cena. Aplaude não só pela enorme presença cênica de Renata, ou pelo texto brilhante de Jo Clifford, traduzido pela diretora Natália Mallo. Mas celebra a vida. Ela está em cena, ela vive de arte, ela está presente. Renata tem 37 anos, é uma atriz trans e está viva!
CHICO LUDERMIR é jornalista, escritor e artista visual. É integrante dos movimentos Coque Vive e Ocupe Estelita e mestrando em Sociologia PPGS-UFPE. É autor do livro A história incompleta de Brenda e de outras mulheres.