Depoimento

Um copo de bílis

TEXTO Maikon K

15 de Maio de 2018

Maikon K em 'Domínio público'

Maikon K em 'Domínio público'

Foto Humberto Araújo/Divulgação

O mundo dissolve na minha boca.
Droga vulcânica sublingual.
A mucosa é hipervascularizada: uma dose é suficiente. Efeito rápido.
Aqui não é um lugar. Aqui não é uma igreja. Aqui não é um país. Aqui não é um planeta.
Aqui não é.

***

Este texto começou com um convite para que eu escrevesse sobre a construção de Domínio público, peça criada por Elisabete Finger, Renata Carvalho, Wagner Schwartz e eu, Maikon K. Mas não será um texto sobre Domínio público. Outras pessoas estão escrevendo melhor a respeito: acadêmicos, intelectuais, jornalistas. Pessoas realmente empenhadas em desembaçar as lentes gordurosas da humanidade. Pessoas quase santas, essas que querem nos esclarecer. Eu não consigo.

Complexificar ou descomplexificar?

Quando um corpo é exposto a doses excessivas de uma substância, perguntas ou acontecimentos, ocorre uma overdose. Este texto é a ressaca de 2017, de 2018 e do que virá pela frente. Do que se falou e do que ainda vai ser dito, escutado, debatido, ruminado de boca em boca. Com visões ou sem visões, o corpo é que paga o preço.

A arte está nauseada. Metabolizando toxinas. Fígado inchado. Bílis verde-amarela.

Sim, somos aqueles artistas que ganharam algum destaque na mídia, em timelines e grupos de WhatsApp por conta de “polêmicas” envolvendo nossos trabalhos. Um de nós foi detido nu em praça pública pela Polícia Militar; a atriz travesti foi impedida de se apresentar interpretando Jesus em uma peça; o outro foi acusado de incitar a pedofilia porque ficou nu em um museu e havia uma criança presente; e, por fim, a mãe que permitiu que sua filha tocasse o tornozelo desse artista nu.

Sim, foi no Brasil que tudo isso aconteceu. Em 2017, lembra? Se eu soubesse desenhar, eu criaria uma tirinha em quadrinhos com esses personagens, num clima de Simpsons ou South Park misturado com Kafka. Sim, recebemos ameaças de morte. Sim, notícias falsas foram criadas. Sim, policiais, delegados, advogados e juízes foram acionados. Sim, políticos e pastores fizeram vídeos nos acusando. Sim, houve gente que nos atacou e nos defendeu. Sim, a imprensa e a CPI quiseram nos ouvir. Quem não está sujeito a isso?

Esse é o enredo, o verdadeiro espetáculo, a grande obra original. É só escrever nossos nomes no Google. É patético. E, no fim do filme, quando ninguém esperava mais dar risada ou se emocionar, esses artistas se juntam e fazem uma peça pra contar ao mundo tudo aquilo que sofreram? Nossa, que sacada genial.

***

Domínio público também nasceu de um convite. No final de 2017, o Festival de Curitiba propôs que criássemos uma obra cênica para estrear em sua programação. Aceitamos. Por quê? Pra fazer do limão uma limonada. Vingança, autopromoção, sede de justiça, conciliação, reflexão, protesto, ato político, deboche?

“O fato de vocês quatro estarem juntos em cena já é algo tão importante, vocês nem precisam fazer nada”, diz alguém. “Vai ser histórico”, lê-se num comentário. “Os renegados”, diz outra pessoa com um sorriso malicioso. “Que coisa importante nesse momento que estamos passando”, dizem alguns. “Que afronta, que idiotice”, disseram outros. Ouvíamos, com a desconfiança de quem pisa em terreno movediço: as armadilhas estão espalhadas.

Palavras, gestos, argumentos, explicação, revide, reação, solução, saída. Resposta condicionada, resposta imunológica, resposta pra tudo. Dizer o que depois do desenrolar desse roteiro tão rico, tão cheio de nuances e peripécias? Como superar o absurdo da realidade?


Maikon K, Elisabete Finger, Wagner Schwartz, Renata Carvalho em 'Domínio público'. 
Foto: Annelize Tozetto/Divulgação

Nenhuma metáfora é possível. Nenhum símbolo dá conta de traduzir um engasgo, um AVC, um estupro, uma morte. Bandeiras, pedras, canções, microfones abertos, paredões, tirar a roupa, dançar? Não é um contra-ataque. Estamos imersos na mesma substância viscosa-coletiva que se acoplou nas vísceras. Os artistas também. Não há eles. Não há nós. O GPS falhou. Não somos mártires, vítimas, porta-vozes, justiceiros. Estamos no mesmo barco (uma caravela sem velas carcomida por cupins seculares) tirando, com as mãos, a água que enche o convés. Alguns ainda colocam água pra dentro enquanto outros tiram. Sobrevivência. Quem está no porão morre primeiro. É questão de tempo: os tubarões ou o mar devorarão todos, com igualdade.

Falamos das coisas falando de nós mesmos. Falamos para afirmar nossa existência como entidades reais. Atacamos para pertencer. Rejeitamos para não sucumbir.

A arte é uma carniceira. O urubu é o alquimista. O que está morto é comida. Intestino é cérebro. Urubu voa.

Fazer uma peça a partir do que aconteceu conosco, e não sobre. Nos alimentar disso em vez de sermos devorados e cuspidos. Não nos interessa repetir, apontar, desabafar, proclamar. Faria sentido se estivéssemos de mãos dadas vomitando no palco. Regurgitando e devolvendo aquilo que engolimos: a porra de gozadas alheias. Agora, é a vez do nosso gozo. Sem gemer, no sigilo, discreto, normativo, sem afetação, sem afronta, no armário, subentendido, como manda a tradição.

O dedo indicador colocado bem fundo na goela. Este é o gatilho. Não vamos atirar para todos os lados, mas gastar apenas uma bala. Nossa metralhadora AK 47: Mona Lisa, La Gioconda, o receptáculo impassível de todos os dejetos, de todo miasma semiótico, de toda agonia que enfim nos conforta ao virar estética, a entranha holográfica do nada devastador, a esfinge tudo-nada da arte legitimada, a Europa mumificada, a necromancia, a obra incalculável, inflacionada, a bolsa de valores dos sentidos, a supremacia sígnica.

A história é um campo de virtualidades. Acontecimentos são matéria-prima ficcional, narrativas virais, partes desmembradas do que já foi um corpo e agora é um lustre, um totem, uma capa de revista, um post, uma conversa de bar, miolos no asfalto, uma rede de enxertos sem espinha dorsal. Um borrão onde somos dissolvidos. Sem olhos, sem lugar, sem certezas.

Esse é o desespero: não somos certezas. Nada é absoluto. Por isso, acreditar em algo. Por isso. Para não colapsar.

Domínio público é uma comédia. Mesmo sem risos, há uma gargalhada de fundo: branca, limpinha e bem-vestida. O vazio é o maior escândalo. E, para existir por completo, é preciso que seja capitalizável. Que não haja fluidos à vista, que a travesti fale serenamente, que a camisa esteja bem-passada, que o viado se apresente numa elegância contida, que a mulher seja apolínea, que sejamos sóbrios em vez de viscerais. Estrategistas. Não é hora do campo de batalha, mas do jogo de xadrez. Um origami de nervos e sutileza.

O modo como reagimos à arte diz muito sobre nós.
O modo como fazemos arte diz muito do que se espera de nós.

No debate após a estreia, ouve-se duas vezes a palavra “sofisticado”. Uma diretora na plateia diz: “vazio”. Ao que concluo: um vazio sofisticado. Ainda assim é um vazio?

Não é o vazio aquilo que mais aterroriza? A falta de um chão sob os pés, a falta de sentido, de esperança, de emoção. A falta. Que nem a arte pode preencher. Talvez a guerra possa, talvez a estupidez possa, talvez a violência, todos esses entretenimentos. A arte não é uma anestesia. Nem nunca foi sólida. Se apossa dos corpos e substâncias e logo passa a outra coisa. Ama ao mesmo tempo em que despreza. É uma puta mesmo.

Não é o vazio o produto por excelência? Aquilo que pode ser vendido sob todas as formas? Que aceita todos os invólucros: ideologias, palestras, discursos, refrigerantes, eletrônicos, imagens, ícones, prêmios, salvação? Só o vazio pode ser moldado, emoldurado. Só o vazio nos serve infinitamente. Só o vazio é digno da nossa angústia.

É em torno dele que se criam as teorias, as teologias, as conferências TED, a poesia, o sexo, as galáxias, as notícias, as selfies, as vidas, as famílias, os cursos de coaching, os receituários médicos, as meditações.

Se a história é um amontoado de corpos soterrados, sobrepostos uns sobre os outros; um amontado de narrativas, soterradas e superadas por outras narrativas: um eco molda nossas vozes. Linhas mestras e perspectivas fundadas guiam nosso olhar.

Mudam as tecnologias, mas o medo persiste como aparato fundamental.

A resposta aguarda a pergunta pertinente.

Aos que esperam uma reação, bocejamos. Aos que anseiam por pirotecnia, exibimos um power point. Aos que querem combate, dançamos sobre os cadáveres.

Wagner recebeu, por e-mail, a longa mensagem de um espectador após assistir à peça:

(...) Segurei-me no banco para não sair do teatro e esperei até o último minuto com uma fé ingênua de que algo iria redimir o disparate grosseiro que eu assistia. Infelizmente, não aconteceu. Serei direto: o que eu vi ontem, dia 30 de março de 2018, não consigo adjetivar senão como covarde. Não admito que artistas que sentiram com tanta veemência a intolerância decidam, como resposta, utilizar um espaço destinado à arte para fazer algo que inequivocamente não é arte. Não consigo compreender como artistas, que gostam de arte, que se interessam por arte, que vivem de arte, que amam a arte e que entendem a arte em suas dimensões política e social, simplesmente se resignem a fazer arte. E mais absurdo: utilizem um dos poucos espaços que a arte e, mais especificamente, o teatro têm para alardear publicamente sua resignação. Domínio público é covarde e decepcionante. (...)

Ao que Wagner respondeu:

(...) Seu texto tem a consistência dos vários ataques que sofri: ele acusa, pede uma resposta, obriga a dizer (...)

No dicionário:

re.sig.na.ção
sf
1 Ato ou efeito de resignar(-se).
2 Aceitação de todos os sofrimentos, sem se revoltar.
3 JUR Demissão voluntária de um cargo.
4 Desistência de uma graça, de uma função etc.
5 Submissão à vontade de alguém; sujeição.
6 Submissão ao destino.
ANTÔN: protesto.

Você está certo, caro espectador. Todas as alternativas se aplicam.

E, no meu verbete, há mais um significado: prazer em trair a pátria, a plateia, a própria arte, a nós mesmos. Prazer em servir o desencanto: esse croquete frio sem catupiry.

Porque a arte, essa imensurável abstração, potência criadora de mundos, artífice sobrenatural, tábua da salvação, ovelha negra da família, prima descolada da magia e da ciência, também opera por exclusão, nichos, reserva de mercado, controle de qualidade, marketing, manipulação, cinismo, castas, valor agregado, currículo, oportunidade, sadismo, benevolência, altruísmo, paternalismo, rebeldia, destruição, ódio, agressão, insulto, revelação, curadoria, temática, desesperança, crença, obstinação, desistência, amor, desespero, ilusão, aniquilamento, perversão, esvaziamento, conceitos, redenção, fracasso, proletariado, dinheiro, pastiche, tesão, utopia, distopia.

Arte, Deus, Dinheiro, Amor. Palavras fundantes. Palavras iguais. Tanto se faz por elas, mas ninguém sabe o que elas são.

Para o cis-tema (parafraseando Renata Carvalho), o que importa é que Mona Lisa seja Mona Lisa. Que Mona Lisa continue a ser Mona Lisa. Mesmo que ninguém saiba o que ela realmente é. Nem Da Vinci sabia. Mas nós vamos explicar para que você entenda. Relaxe e acompanhe as legendas.

Afinal, pelo que lutam os artistas? Por um espaço que nunca foi deles: o quarto de empregada na cobertura do patrão. Que dali, possam sentir que estão no alto, intercessores de infinitos horizontes. Reinem na área de serviço. Imaginem. Imaginem mais. Enquanto contam os tostões, a pilha de louça suja vos aguarda.

A censura, no fim das contas, é o que menos importa. É a cereja do bolo, a galhofa, o cheque sem fundo. Ela é o cheque da bicha que não fez a chuca de propósito. É a última bijuteria penhorada, o golpe de misericórdia. Agradeça pela mídia espontânea que ela te dá.

Os policiais continuam imunes, os perfis ainda são falsos, as opiniões não mudaram, ninguém se retratou. A arte não fez justiça. Logo serei uma cédula antiga retirada de circulação.

Ao espectador indignado, só posso dizer: você ainda tem fé. Você não se levantou e saiu daquele teatro. Abusaram da sua esperança. Você não gritou no meio da peça, você se conteve, você esperou, você teve que engolir tudo aquilo e voltou para casa. Eu entendo você. Foi pra isso que eu estava ali. Você sabia que a calça que eu estava vestindo custa mil reais numa loja da Oscar Freire?

E ainda dizem que a arte tem que ser política. A política é que deveria ser arte.

E assim seguimos, tentando acompanhar a velocidade das nossas timelines. Nem a Terra gira tão rápido. Viva a náusea, a vertigem, o pânico.

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MAIKON K é performer. O centro de seu trabalho é o corpo e sua capacidade de alterar percepções. Entre suas criações, estão DNA de DAN, Terrário, O ânus solar e Neblina canibal. Ele vive em Campo Magro e não pretende se mudar para São Paulo.

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