No último fim de semana, a cidade de Corumbá (MS) foi ponto de encontro de artistas de várias partes do Brasil. Além de ser a “capital do Pantanal” e, por si, já representar um amálgama interessante – sendo atravessada pelas matrizes indígenas, por influências bolivianas e paraguaias (países vizinhos à cidade) –, Corumbá abriu suas portas para receber gente de todos os cantos deste país continental. Foi durante o Festival América do Sul Pantanal – Fasp, que celebrou sua 16ª edição, a primeira após o surgimento da pandemia da Covid-19, em 2020.
Da Bahia, a cantora Margareth Menezes levou seu “afro pop brasileiro” a terras sul-mato-grossenses. Esse movimento congrega ancestralidade da música diaspórica afrodescendente com sonoridades contemporâneas. Como ela mesmo diz, é uma música feita com “o tambor e o computador”.
Margareth foi um dos pontos altos da programação. Foto: Marithê do Céu/Fasp/Divulgação
Apesar de trazer em seus traços uma marca indígena bastante nítida, Corumbá tem sangue negro também correndo em suas veias. Lá, cerca de 71% da população se declara afrodescendente e a cidade possui mais de 400 terreiros de candomblé. O próprio casario do Porto Geral de Corumbá, às margens do Rio Paraguai, lembra muito a arquitetura do casario da Salvador mais antiga, no Pelourinho, ligada à colonização portuguesa, mas erguida pela mão de obra escravizada vinda da África.
A partir dessa história, Margareth celebrou estar ali. “É uma característica deste país, né? Essa mistura. Fiquei muito feliz, inclusive, em saber disso [da quantidade de terreiros existentes em Corumbá]. E isso sendo aqui, onde a gente tem o Pantanal, é muito mágico”, disse Margareth. Diretamente de São Paulo, a bailarina Maria Eugenia Tita – filha do multiartista pernambucano Antonio Nóbrega – esteve no Fasp com duas obras diferentes. A performance Cabeção no mundo, que deu uma volta em vários locais de Corumbá, ao longo dos dias de festival, e o espetáculo Planta do pé, que celebra as raízes culturais do povo brasileiro. O “Cabeção”, figura enigmática de cabeça gigante e corpo miúdo, passou por locais de grande circulação, como a feira livre e o centro comercial da cidade, interagindo com o público, causando muitas risadas e mudando totalmente a energia do ambiente por onde chegava. Já Planta do pé – concebido originalmente como aula espetáculo, em 2014, para o Festival Internacional de Dança do Recife – é um misto de música, teatro popular e dança, e traz ao corpo cênico referências das manifestações culturais brasileiras, em trabalho de pesquisa realizado com o pai.
O "Cabeção" de Maria Eugenia Tita. Foto: Marithê do Céu/Fasp/Divulgação
Também de São Paulo, passaram pelo festival a Trupe da Lona Preta, com o espetáculo circense Conto da lona preta; as contadoras de histórias Sandra Guzman e Paula Dugaich; e o caricaturista Luiz Carlos Fernandes, com a exposição a céu aberto Ícones – 100 Anos de 1922, que levou caricaturas de autores canônicos da Semana de Arte Moderna de 1922, tema deste ano do Fasp.
Já na música, quem compareceu em peso foram os cariocas. Marcelo D2 levou ao Palco Rio Paraguai, no último sábado (28), um apanhado da sua carreira solo – desde o álbum Eu tiro é onda (1998) até o mais recente trabalho multimídia Assim tocam os MEUS TAMBORES (2020). O músico mostrou que continua “à procura da batida perfeita” (segundo ele, ele nunca encontrará a tal batida; o que importa é exatamente esse caminho da procura por ela). A última vez em que esteve em Corumbá havia sido em 2005, há 17 anos. Nesse retorno ao Pantanal, ele conseguiu reunir um público imenso – grande parte, como era de se prever, de gente identificada com a cultura hip hop, o “habitat mais natural” de Marcelo Maldonado Peixoto.
Marcelo D2. Foto: Muriel Xavier/Fasp/Divulgação
Na última noite de festival, domingo (29), Monobloco e Mart’nália também se apresentaram em Corumbá. O grupo percussivo liderado por Pedro Luís já tem 22 anos de trajetória e subiu ao Palco Paraguai com um repertório extenso, passeando pela diversidade musical brasileira – samba, marchas carnavalescas, funk, axé music, pop, frevos e tudo o que é possível ser transformando em música para dançar, pular e se jogar (até mesmo Ainda é cedo, da Legião Urbana, virou música para animar geral, com sua bateria “NOTA 10”.
E Mart’nália não deixou de fazer jus ao sangue que corre nas veias da família Ferreira – tendo Martinho da Vila, seu pai, como o coração pulsante. Seu repertório incluiu ainda vários sambas, no mais autêntico sotaque e malemolência “carioca da gema”. Ao final, Pedro Luís e o Monobloco juntaram-se à conterrânea e transformaram o Palco Integração no momento mais carioca de toda a edição do Fasp.
Outros nomes do estado do Rio de Janeiro se apresentaram no festival, como a Companhia de Ballet da Cidade de Niterói, com o espetáculo Presença na ausência e o artista circense Guga Morales, com O homem foca.
Artistas da Paraíba e do Rio Grande do Norte também participaram dessa celebração ao Brasil, que, geograficamente, também se integra à América do Sul, mas ainda pouco se reconhece como tal. O Fasp revela parte desse Brasil, que recebe esses tantos outros “brasis”, numa festa que surpreende pela diversidade e pela potência da arte feita neste país que ainda precisamos conhecer melhor. Quando puder, vá a Corumbá.
Show de Mart’nália se juntou ao de Monobloco no último dia. Fotos: Marithê do Céu/Fasp/Divulgação
LEONARDO VILA NOVA é jornalista cultural e músico.
*O repórter viajou a convite do festival, realizado pela Fundação de Cultura do Mato Grosso do Sul junto à Prefeitura de Corumbá.