Em Corumbá, percebe-se e vive-se essa confluência de culturas: das indígenas à afro-brasileira, sobretudo no contexto do festival. Foto: Marithê do Céu/Fasp
Ao longo dos dias de festival, também acontecem visitações ao Memorial do Homem Pantaneiro, que traz um recorte imagético do povo da região. Assim como na Praça Generoso Ponce, centro de Corumbá, estão instalados espaços que representam esse ponto de encontro sul-americano correndo nas veias brasileiras: a Tenda dos Saberes Indígenas, o Pavilhão dos Países – que conta com expositores da Bolívia, Paraguai, Uruguai, Venezuela, Chile, Argentina, Colômbia e Peru –, o Espaço Criativo – composto por expositores do Mato Grosso do Sul, que mostram e comercializam sua arte e seus produtos.
No primeiro dia do Fasp, quinta (26), o Teatro Imaginário Maracangalha, de Campo Grande, levou a uma escola estadual de Corumbá o espetáculo Areôtorare: o verbo negro e bororo do índio profeta, baseado em duas obras do poeta sul-mato-grossense e modernista Lobivar Matos (1915-1947). Segundo o diretor do grupo, Fernando Cruz, a poesia de Lobivar versava sobre o povo brasileiro a partir de uma ótica que não a dos modernistas de São Paulo. “Lobivar fazia uma crítica muito contundente em sua poesia. Ele não trazia uma visão romantizada do povo brasileiro. Para ele, o poeta da geração moderna tinha que falar do povo humilde, dos pobres, dos párias sem pão, sem amor, sem trabalho. Aí é o ponto da identidade nacional que ele trazia: o povo trabalhador brasileiro, com suas alegrias, mas também suas mazelas.” Para Fernando, o paralelo que se pode encontrar, atualmente, com a poesia de Bolivar são os movimentos da cultura de rua: o rap, hip hop, o slam. Sendo essa cultura uma outra camada desse povo mestiço e diverso, que também faz uma poesia denúncia, de cunho crítico afiado.
O Teatro Imaginário Maracangalha apresentou, cenicamente, obras do poeta corumbaense e modernista Lobivar Matos. Foto: Muriel Xavier/Fasp
Não por acaso, essa cultura de rua – influenciada pela cultura negra diaspórica norte-americana – também está marcada nas gerações mais novas de Corumbá e é representada no Fasp. Na sexta (27), o coletivo Cotidiano Difícil, formado por jovens corumbaenses, se apresentou no centro da cidade com performances de b-boys, b-girls, MCs, DJs. Parte desse grupo também fará apresentação de slam no sábado (28), na Batalha do Porto, pela programação do festival. Através do grafite, outros jovens vêm promovendo o encontro da arte urbana com o patrimônio cultural local. Isso se torna possível por um aspecto de viés modernista: a antropofagia. Deglutem-se as culturas outras que nos frequentam e atravessam e, a partir daí, faz-se algo resultado disso. O MC e dançarino Larocca, 29 anos, nasceu no Rio de Janeiro, mas, desde os nove, mora em Corumbá. Sua formação artística se deu nesta cidade. “A gente dialoga com todas as culturas, as daqui do nosso local e as de fora. Falamos da nossa gente e trazemos também a crítica, falamos dos seus problemas.”
Dentro desse caldeirão antropofágico, não há como não inserir a América do Sul hispânica. A exemplo da Academia de Danças Folclóricas da Bolívia, grupo que existe há 23 anos, com integrantes de La Paz e Potosí, que se apresentou na quinta (26), no Palco de Artes Cênicas, à beira do Rio Paraguai. Um espetáculo de cores vibrantes, de indumentárias ricamente trabalhadas como um artesanato típico do seu povo. Passeando por tradições culturais como Caporales, Diablada, Tinku, Tonada, entre outros. Outra representante da América hispânica foi a argentina Sofia Viola, que faz um som enérgico, trafegando por tangos, rock, boleros, jazz e pela primeira vez se apresentou no Fasp.
A cantora Sofia Viola (ARG) também representou o encontro da América hispânica com o Brasil no festival sul-matogrossense. Foto: Vaca Azul/Fasp
A programação do Fasp contempla ainda cinema, teatro, circo, literatura, dança, artes visuais, que também abrigam esse intercambiar de povos e suas singularidades/pluralidades. Cem anos depois do que pensaram e propuseram os modernistas, confirmamos, por mais uma vez, que não há como sintetizar uma identidade nacional de um povo muito mais afeito a misturar-se do que a distinguir-se, e o Festival América do Sul Pantanal é esse momento em que tudo isso parece muito mais nítido, vívido e digno de se celebrar.
LEONARDO VILA NOVA é jornalista cultural e músico.
*O repórter viajou a convite do festival, realizado pela Fundação de Cultura do Mato Grosso do Sul junto à Prefeitura de Corumbá.