Teve greve, e espetáculo também
A despeito de contratempos e do público menor, o Fasp não foi tão atingido pela paralisação dos caminhoneiros, apresentando programação cênica de qualidade, mesmo quando precisou improvisar
TEXTO OLÍVIA MINDÊLO, DE CORUMBÁ*
29 de Maio de 2018
Público de Corumbá ao redor de palhaço do Circo Medellín, da Colômbia
Foto André Patroni/Fasp 2018/ Divulgação
Se no início do Festival América do Sul Pantanal (Fasp), a paralisação dos caminhoneiros inviabilizou a encenação da peça Kartas de uma bonéka viajante, da Cia. do Abração (PR), no último dia do evento (27/5) o mesmo contratempo foi driblado pelo improviso de outros artistas. Os integrantes do Grupo Teatral Boca de Cena, de Sergipe, já haviam chegado a Corumbá (MS), exceto o caminhão com todo o cenário, figurino e equipamento do espetáculo Os cavaleiros da triste figura. Resultado: eles se apresentaram basicamente com a “roupa do couro”, como se diz no Nordeste, usando criatividade e “arrumações” de última hora para fazer uma espécie de pocket show com direito a bis na Praça da República da cidade pantaneira. “Eles falaram da situação atual do Brasil e arrasaram, foi impressionante. Fiquei com vontade de ver o espetáculo completo”, comentou a contadora de histórias Fernanda Reverdito, que foi de Bonito (MS) para conferir o festival.
Um alívio, pois o festival já havia sido cancelado no ano passado. A despeito dos contratempos e, por vezes, de um de público reduzido, a programação de artes cênicas do Fasp 2018 merece um comentário à parte. A grade abarcou trabalhos de muito boa qualidade, diversos em suas origens e expressões, a exemplo do espetáculo Romeo y Julieta de Aramburo, do Kiknteatr (Bolívia). A montagem do diretor Diego Aramburo, conhecido por sua experimentação em performance e pelo interesse em atualizar Shakespeare no contexto sul-americano, foi destaque no primeiro dia do festival (quinta, 24/5). Dividindo a plateia binariamente (homens de um lado, mulheres do outro), a peça deixou o público estupefato ao redor da mesa-palco onde a atriz Camila Rocha desfilava em sua atuação intensa, por vezes aterrorizante. Aí, a agressividade do texto de Shakespeare recai sobre uma leitura contemporânea do amor, tendo como elemento guia a enfermidade acarretada pelo sentimento e suas impossibilidades. Poderia se chamar só “Julieta” mesmo, pois o outro protagonista torna-se uma voz distante perante a dor psicológica e emocional da personagem. O vício, a neurose, o sofrimento e a loucura são usados como recursos cênicos da performance que leva Julieta, em seu estado apaixonadamente doentio, a uma imersão no autoflagelo, com direito a cocaína e cortes ensanguentados em meio a copos de leite indigestos que a personagem vai tomando ao longo da apresentação.
A atriz boliviana Camila Rocha como a Julieta de Aramburo.
Foto: Vaca Azul/Fasp 2018/Divulgação
A dança é outro ponto a se ressaltar do Fasp 2018, seja na apresentação dos grupos ditos folclóricos, com expressões tradicionais da América do Sul, seja em espetáculos contemporâneos de companhias profissionais. Uma delas o Combinado Argentino de Danza, com oito bailarinos e um DJ em cena apresentando uma linguagem híbrida e de corpos múltiplos que vão das variações da dança de rua e à tradição popular argentina, passando por sapateado e beatbox. No mesmo palco do Centro de Convenções Miguel Gomez, apresentou-se, no dia seguinte (26/5), o Giradança, grupo do Rio Grande do Norte que trabalha com bailarinos cadeirantes, deficientes visuais, anões e outros corpos que precisam ser encarados socialmente de uma maneira sensível. Nesse sentido, o festival contribuiu para colocar em prática o seu tema Cultura e cidadania sem fronteiras, também abarcando apresentações de drag queens e LGBTQs em outros espaços da programação, além de recursos, em alguns pontos, de acessibilidade cultural, como a tradução simultânea em Libras, incluindo shows (caso de Martinho da Vila, na noite de abertura, dia 24/5).
A dança, aliás, também esteve presente no palco musical da Praça Generoso Ponce, principalmente na noite de sábado (26/5), com os shows de Puerto Candelaria, da Colômbia, e da cantora baiana Daniela Mercury. O grupo de Medelim havia ido ao festival há 11 anos e voltou nesta 14ª edição com um show marcado pela “cumbia rebelde”, como dizem, e pela “explosão sonora” cheia de bom humor, com doses de sarcasmo. Com muito corpo em cena, convocaram o público da cidade a dançar: “Vocês são sensuais como no Instagram? Corumbá é uma cidade sensual?”, perguntou o “maestro” da banda, o músico e cantor Juancho Valencia. Obtendo um “sim” como resposta, mandou as instruções: “Primeiro, mexam os ombros, essa parte muito importante do corpo. Agora, mexam os ombos e olhem para quem está ao seu lado. Pronto? Agora mexam os ombros, olhem para quem está ao seu lado e morda os lábios”. Divertido é a melhor palavra para definir esse momento do festival.
Puerto Candelária, de Medellín, Colômbia. Foto: André Patroni/Fasp 2018/Divulgação
Outro grupo vindo da metrópole colombiana para se apresentar no Fasp 2018 (e pela primeira vez no Brasil) foi o Circo Medellín, cujo trabalho volta-se à ocupação de jovens em situação de risco. Com espetáculos todos os dias do festival, mostraram sua habilidade com clássicos números circenses e atraíram muitas crianças à tenda armada no Porto de Corumbá, onde começa a história dessa cidade tão acolhedora.
OLÍVIA MINDÊLO é jornalista e editora da Continente Online.
*A repórter viajou a Corumbá (MS) a convite da Secretaria de Cultura e Cidadania do Governo do Mato Grosso do Sul, através da Belmira Comunicação