Wasp Network é uma adaptação de Os últimos soldados da Guerra Fria, de Fernando Morais, livro em que se descortina uma rede de espionagem de agentes cubanos infiltrados nas organizações anti-Fidel Castro na Miami dos anos 1990. Foi exibido no Festival de Veneza e chegou a São Paulo ainda sem data de lançamento comercial. É um projeto estelar no elenco – Penélope Cruz, Gael Garcia Bernal, Wagner Moura, Edgar Ramirez (o Chacal) – e rodado em quase sua totalidade em Cuba. “Meu interesse e minha curiosidade em viajar e descobrir o mundo têm sido muito influentes no modo como eu tendo a me reinventar. Em termos da minha filmografia, tento fazer filmes que lidam com o modo como o mundo está mudando. Fazer um filme em Cuba é também descobrir sobre uma cultura que não domino e me forçar a reinventar minha narrativa”, comentou Assayas em uma sessão na qual a Continente estava presente.
Ele explicou, ainda, que os cubanos não estavam “tão felizes”, e sim “extremamente relutantes”, mas “gradualmente abriram as portas e nos deixaram entrar”. A questão, na narrativa de Wasp Network, é justamente essa “entrada”: há algo na montagem que provoca um descompasso, como se a história precisasse, lá pelas tantas, de uma explicação adicional que o diretor não havia sido capaz de conjurar na mise-en-scène. Aqui em São Paulo, a recepção foi mista. Resta saber como se dará a acolhida quando o filme entrar em cartaz, com sua evocação de um tempo em que Cuba enfrentava os Estados Unidos em defesa do comunismo, esse regime que hoje é tido como ameaça pelos “brasileiros de bem”.
BREVE MIRAGEM DE SOL
Foto: Miguel Vassy/Divulgação
O mais recente longa-metragem do cineasta Eryk Rocha é um potente estudo de personagem e, também, da experiência de estar e ser no Rio de Janeiro. Mas não sob a pele de qualquer um: seu protagonista, Paulo (Fabricio Boliveira, em interpretação magistral), é um taxista negro, que transita pela cidade em madrugadas nas quais parece não haver fronteira entre o interior do seu automóvel e os locais públicos que percorre. Seus passageiros simbolizam o que é o Brasil: ora são jovens ricos que jogam o dinheiro, ora duas travestis a caminho da rodoviária, ou ainda uma enfermeira, Karina (Bárbara Colen, iluminada), com quem Paulo quiçá trocará algum afago em uma rotina dura de trabalho, trabalho, trabalho.
Nas filmagens, não houve truque. “Fabrício estava permanentemente dentro do carro, nas madrugadas, nas ruas dessa cidade colapsada, onde muitas pessoas falam que vive uma guerra, mas, na verdade, é um genocídio da população negra”, explica Eryk. Na narrativa, de extrema força e beleza, o espaço privado da vida de Paulo (suas insistentes tentativas de falar com o filho, as poucas horas de sono na sua modesta quitinete) é amalgamado com o espaço público da cidade e suas contradições. “Queríamos incorporar a energia desse corpo sendo atravessado pelas forças sociais, mesmo na repetição e nas pequenas nuances, e fazer uma simbiose, colocando vocês dentro do carro”, complementou o diretor.
Ao “trazer essa câmera para esse centro energético” que é o seu protagonista, Breve miragem de sol, cuja poesia se dá no título e justamente nessa composição imagética de muita energia, constitui-se como quase um ensaio, porém de inegável cunho político, e uma brutal reflexão sobre o hoje. Importante: ainda sem previsão de lançamento comercial no país – mais provável, segundo semestre de 2020.
(Em tempo: assista live com Fabrício Boliveira no dia 03 de setembro de 2020, às 20h, no Instagram da Revista Continente, quando o ator fala do lançamento do filme na Globoplay)
O JOVEM AHMED
Foto: Christine Plenus/Divulgação
Filme dos irmãos Dardenne é, bem, obrigatório. Menos por ter levado o prêmio de direção no último Festival de Cannes e mais por se tratar da nova obra de Jean-Pierre e Luc, os cineastas belgas que por duas vezes, inclusive, já venceram a Palma de Ouro em Cannes – Rosetta (1999) e O garoto (2005). Por isso, as sessões de O jovem Ahmed (Le jeune Ahmed, Bélgica, 2019) foram concorridas. Na que a Continente assistiu, por exemplo, uma fila aguardava do lado de fora da Sala 1 do Reserva Cultural para saber se alguma poltrona sobraria vazia tão logo a projeção começasse (eu mesma sentei na segunda fila, posto que a sala estava, de fato, quase lotada).
Ahmed (Idir Ben Addi) é o personagem-título: um adolescente belga que admira, com fervor, o imame que lhe ensina o Alcorão (Othmane Moumen) e adota uma interpretação radical e extrema dos ensinamentos do livro sagrado islâmico. Quando essa visão o leva a cometer um ato de violência contra a sua professora (Myriem Akeddhiou), Ahmed precisa lidar não apenas com as consequências de seus atos, mas com todas as outras forças gravitacionais – a relação com a família, o despertar do interesse pelo sexo feminino – que lhe torpedeiam em uma fase de travessias na vida.
Com a câmera epidérmica que nos leva a acompanhar os personagens por dentro das cenas, como se tivéssemos acesso a instantes do real, os Dardenne empurram seu jogo ficcional para o mesmo terreno que sempre manuseiam com ternura e habilidade – é no campo das relações humanas, afinal, que percebemos momentos de pura beleza em sua obra fílmica, como em O filho (2002) e Dois dias, uma noite (2014). Aqui, contudo, há o componente instável do fanatismo religioso, da intolerância e de tudo que pode acometer uma mente aberta a fertilizações diversas quando se impõe o radicalismo.
Destaque para a pungente relação entre Ahmed e sua mãe (Claire Bodson), personagem que de tão crucial, nem ganha nome: é apenas “la mére” (“a mãe”, em francês). As cenas entre os dois – doídas, cruas, intensas – são testemunho de que os diretores belgas são dos mais relevantes autores em atividade nessa contemporaneidade maluca que eles logram, com êxito, traduzir em imagens.
QUERÊNCIA
Foto: Divulgação
“Tudo começa com uma grande história de amizade”, me conta Helvécio Marins Jr. sobre seu novo longa, exibido em fevereiro, na Berlinale, e agora um título a figurar na competição de novos diretores na Mostra de São Paulo. As pessoas que aparecem em Querência são seus amigos, com quem convive e se sente “mais à vontade do que no meio de um monte de cineastas”. Suas histórias de vida são as que ele retrata e, portanto, é nas borras entre ficção e registro documental que se lastreia o filme.
Conta Helvécio: “Eles sabem que sou cineasta, têm um desconfiômetro, eles brincam e aí chega o momento em que eu ganho um edital e digo: ‘Bora fazer um filme?’. E aí vou fazendo umas brincadeiras para desconstruir o processo. O roteiro é totalmente observação do cotidiano, das histórias deles, com algo que vou inventando. Diria que 70%, 80% aconteceram mesmo”.
Marcelo (Marcelo Di Souza) é um vaqueiro cujo sonho é ser narrador de rodeios. Ele mora no sertão de Minas Gerais e, um dia, quando a fazenda onde trabalha é assaltada, sua vida sofre um impacto brutal. “Tudo é um pouco desconstruído”, diz o cineasta, cujo longa anterior, Girimunho (2011), também era ambientado nessas veredas mineiras. “Gosto muito de roça, sabe? Morei cinco anos naquela mesma casa, naquela mesma fazenda”, completa. Então, as relações entre as pessoas em cena emulam os vínculos que existem entre elas de verdade – “verdade” sendo uma palavra que tem mais a ver, na proposta ética e estética de Querência, com o sentimento do que com tentativas de apreensão e representação do real.
Não estamos, afinal, sempre sob a perspectiva de uma contínua reinvenção?
CICATRIZES
Foto: Divulgação
E se você tivesse a certeza de que, há 18 anos, quando deu à luz seu primeiro filho, ele não nascera morto, e sim fora roubado? É dessa premissa que se erige o segundo longa-metragem do realizador Miroslav Terzic, Cicatrizes (Savovi, Sérvia, 2019). O letreiro antes do primeiro plano avisa: trata-se de uma história baseada em fatos reais. Nela, Ana (Snezana Bogdanovic) é uma mulher casada com Jovan (Marko Bakovic). Eles têm uma filha adolescente e uma pequena loja onde recebe suas clientes de corte e costura. Sua rotina é espartana e de poucas palavras – aí vale ressaltar a interpretação contida e de muito significado no olhar de Snezana. Mas existe algo que a move a transcender os papéis que desempenha (a mãe que cozinha, a costureira) e é essa jornada que a leva a perambular por hospitais, delegacias e instituições públicas para saber o que, de fato, aconteceu com seu filho.
Savovi, o título original, foi traduzido para o inglês como Stitches (pontos, suturas). Claro que a primeira referência, meio óbvia até, é a cicatriz de uma cesariana, mas podemos expandir o horizonte de associações e relembrar depoimentos de pessoas que têm seus membros amputados e reportam formigamentos ou mesmo dores onde já não mais existe nada. Ana é uma mulher cindida, como se fosse incapaz de prosseguir (muito embora prossiga, anestesiada, quase na inércia) e viver com plenitude, entre o passado que lhe deu e lhe tomou o filho e o presente no qual essa ausência lhe apavora.
O diretor propõe uma narrativa sóbria, como a acentuar a dureza daquela vida, mas é no rosto de Ana que tudo se desvela. É impossível pensar nela, no arco dramático dessa personagem de Belgrado, e no próprio filme sem recorrer às emendas que fazemos na vida, ora para sublimar experiências tristes, ora para nos recompor rumo a outras possibilidades. Por fim, o plano final é uma das imagens mais magnéticas que essa edição da Mostra Internacional de Cinema de São Paulo haverá de ser capaz de entregar. Boa notícia: foi comprado para o Brasil, onde terá distribuição da Arteplex Filmes. Que não tarde a circular.
CARCEREIROS – O FILME
Foto: Divulgação
“Estávamos filmando a segunda temporada da série quando recebemos a incumbência de criar um longa-metragem. Então tivemos que pensar em uma história que não poderia ser contada no seriado.” Assim o corroteirista Marçal Aquino (O invasor) detalha a concepção de Carcereiros – O filme, um spin off da série produzida e exibida pela Rede Globo desde 2017. Na trama pensada para o cinema, sob a direção de José Eduardo Belmonte, o carcereiro Adriano (Rodrigo Lombardi) precisa lidar com a chegada de um prisioneiro especial, um terrorista estrangeiro (Kaysar Dadour), na mesma noite em que se desenha um confronto entre as facções que disputam o domínio territorial da penitenciária.
O universo da prisão, que já havia sido tema do livro homônimo escrito por Drauzio Varella, ganha mais tensão cinematográfica: como a ação se concentra em uma única noite, no espaço exíguo e escuro das celas e corredores onde se amontoam os homens encarcerados e, de certa forma, esquecidos pelo Estado. Belmonte aposta nas ferramentas que constroem o gênero “filme de ação em uma prisão”: tiros, explosões, violência, morte em alta escala. De fato, a narrativa se robustece com essa pirotecnia, mas deixa o aspecto dramático a desejar.
Milton Gonçalves, Rômulo Braga, Tony Tornado, Jackson Antunes e Dan Stulbach completam o elenco. Com distribuição da Imagem, tem estreia prevista para 28 de novembro.
A FERA E A FESTA
Foto: Divulgação
Em 2015, durante a cobertura da Continente da 39ª Mostra, pude conversar com Geraldine Chaplin e o resultado desse encontro foi publicado na edição de dezembro daquele ano. Na entrevista, ela comentava: “Acho que o embrião de um cinema realmente novo e fantástico está na América Latina”. E citava “os incríveis dominicanos Laura Amelia Guzmán e Israel Cárdenas, com quem trabalhei em Dólares de areia (2014)” como diretores que admirava. É curioso e, de certa forma, fascinante, voltar ao mesmo festival, na mesma cidade, quatro anos depois, e ver A fera e a festa (Holy beasts, República Dominicana, 2019), novo filme da dupla Guzmán e Cárdenas, com Geraldine como protagonista.
Ela interpreta Vera, uma atriz em descenso que retorna a Santo Domingo para retomar o projeto de um musical acalentado, por anos, pelo seu amigo Jean-Louis Jorge. Ele é espectro. Ele é uma fotografia que Vera carrega, ele é as imagens remanescentes dos seus filmes antigos, projetadas em encontros com amigos como Victor (Jaime Pina) e Martin (Luis Ospina), ele é a sombra com quem a mesma Vera dialoga, ora em francês, ora em inglês ou espanhol. E é a quem ela recorre quando fatos estranhos e violentos começam a acontecer.
Jean-Louis Jorge existiu de fato: foi um cineasta dominicano assassinado em 2000 e as imagens que vemos em A fera e a festa carregam a sua assinatura. Isso torna a narrativa intrigante a partir de sua premissa – a mescla entre ficção e documentário, personagens inventados lidando com memórias reais – e mais desafiadora ainda quando as ações parecem seguir tanto as pulsões de morte e prazer que trazemos dentro de nós como a força incontrolável da natureza. Mais: Udo Kier (o líder vilão dos invasores de Bacurau) empresta seu semblante misterioso para o filme, ainda sem distribuidora no Brasil.
O JUÍZO
Foto: Suzanna Tierie/Divulgação
Com roteiro original de Fernanda Torres e direção de Andrucha Waddington, e a participação da mãe dela, Fernanda Montenegro, e um papel de destaque para Joaquim Torres Waddington, filho de Fernanda e Andrucha, esse “é um filme em família”, nas palavras do seu realizador. Dentro e fora da encenação fílmica, é bom dizer. Porque se a gênese do projeto se deu durante um feriado que eles passavam numa fazenda em Minas, no enredo Augusto (Felipe Camargo) leva a mulher (Carol Castro) e o filho único Marinho (Joaquim) para a antiga e isolada propriedade da sua família, uma casa onde o passado está à espreita e disposto a um revide.
“Escrevi o roteiro em uma época em que as comédias estavam dominando o cinema brasileiro e aí começou essa coisa de abrir para outros gêneros. O cinema brasileiro já é um gênero por si só, mas aí pensei: ‘Por que não tentar um filme de terror ou de suspensa?’. Para fazer, sempre achei que tinha que ser em Minas Gerais. Porque ali é o carma: onde se descobriu o ouro, onde não tem mar, onde teve uma escravidão pesadíssima e muita concentração de minério”, narra Fernanda à Continente.
Ela acrescenta que os “diamantes brasileiros são uma espécie de aparição fantasmagórica”, cuja existência é um mistério. Isso é plasmado para a narrativa, onde a herança escravocrata da família do protagonista e a avidez por pedras preciosas são trazidas à tona nos encontros que Augusto tem com Couraça (o rapper Criolo) e na relação que se estabelece entre Marinho e a filha de Couraça (Kênia Barbara). Mas há algo de sobrenatural por aí...
“O juízo é um acerto de contas. Um cara que está absolutamente perdido resolve ir para essa fazenda que ele ganhou como uma herança, mas se depara com esse acerto de contas com o passado. Mas é um filme de tensão, sem ser de sustos”, diz Andrucha. Filmado no final de 2016, em Barra do Piraí, na fronteira entre Rio de Janeiro e Minas Gerais, entra em cartaz em 5 de dezembro, com distribuição da Paris Filmes.
LUCIANA VERAS é repórter especial e crítica de cinema da Continente.