O que, se não os ecos do Brasil de 2018, poderia ligar o filme Eu não me importo se entrarmos para a história como bárbaros (Romênia/ França/Bulgária/Alemanha e República Tcheca, 2018), do romeno Radu Jude, e o documentário A valsa de Waldheim (Áustria, 2018), de Ruth Beckermann? Escalados para a seção Perspectiva internacional, são filmes diametralmente opostos na forma, porém se ancoram na ideia de revisão de um passado recente.
Vencedor do maior prêmio para o gênero na Berlinale, A valsa de Waldheim é uma investigação sobre Kurt Waldheim, que durante 10 anos foi secretário-geral da Organização das Nações Unidas – ONU e, em 1986, decide concorrer à eleição presidencial austríaca. Acontece que, poucos meses antes do pleito, um jornalista descobre, a partir de documentos da passagem de Waldheim pelo exército, uma filiação com a juventude nazista e a passagem, entre os anos de 1941 e 1944, por uma área da Europa – o front grego – de onde milhares de judeus foram deportados. Com a publicação da reportagem, a eleição ganha novo contorno, pois o país se pergunta dos motivos que levaram Waldheim a omitir esse fato de sua autobiografia. Como membro das forças armadas da Áustria, o primeiro país a ser invadido por Adolf Hitler, ele havia lutado ao lado do exército alemão contra as tropas soviéticas, e isso era algo de que se orgulhava, porém havia mais em seu passado do que gostaria de compartilhar.
Cena do documentário A valsa de Waldheim
A diretora Ruth Beckermann assume, desde o início, que se trata de uma história pessoal. Em 1986, aprendendo a manusear uma câmera VHS, ela vai às ruas para filmar os embates entre os cidadãos que questionavam Waldheim e os austríacos que ratificavam sua condição de “homem de bem” com frases do tipo “mas ele é católico” ou “mas os judeus eram porcos mesmo”. Quem porta cartazes contra Waldheim começa a ser hostilizado e agredido. Há um momento em que um político do mesmo partido de Waldheim tenta justificar o passado nazista do candidato com a seguinte afirmação: “Ele não era da juventude nazista. Apenas o seu cavalo que era”. Existe ou não uma semelhança com a tentativa dos correligionários do candidato que lidera as pesquisas para a eleição do próximo domingo, de relativizar, ou mesmo negar, seus discursos de ódio e sua postura violenta contra adversários?
A valsa de Waldheim, mais do que revisitar um episódio emblemático da história da Áustria (o que faz com inteligência e frescor na linguagem), reforça a importância do que Paul Ricoeur definia como o “dever de memória”: a necessidade de nunca esquecer os horrores do passado para que tragédia alguma se repita no presente. Ao negar que sabia do extermínio de milhares de judeus, Kurt Waldheim queria se alijar do processo histórico no qual, como todo austríaco, estava imerso até a nuca antes, durante e após a ascensão do nazismo.
Em dois momentos cruciais, jornalistas alertam para a conveniência da Áustria ter um presidente que ratificasse o “papel de vítima” que o país sofrera nas mãos de Hitler, mas que se recusasse a mergulhar na colaboração que a nação dera ao nazismo e atentam para o óbvio: aquele homem branco, militar, que mentia sobre seu passado e escondia sua participação em horrores seria o “presidente ideal” para uma nação com dificuldade de lidar com sua própria História.
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Eu não me importo se entrarmos para a história como bárbaros tem seu título pinçado de uma frase proferida numa reunião do Conselho de Ministros da Romênia durante a Segunda Guerra Mundial. É como se fosse a senha para o exército romeno expurgar os judeus do que se convencionava chamar de Frente Oriental, dando aval e força ao plano de limpeza étnica perpetrado por Hitler. Radu Jude monta um interessante jogo de opacidade e transparência entre o dispositivo que escolheu – o cinema – e o assunto que pretende desvelar. Logo na primeira cena, a atriz principal, Ioana Iacob, avisa ao público que, ao longo das próximas 2h30, ela vai interpretar Mariana, uma artista plástica e dramaturga que busca encenar um espetáculo em praça pública sobre esse episódio sombrio do genocídio judeu em solo romeno, e estabelece distinções entre ela própria e sua personagem.
Esse é um convite para que o espectador mergulhe em uma narrativa que, lastreada em aspectos ficcionais, é completamente calcada na realidade, mais ainda do que Corações cicatrizados, o filme anterior de Jude, exibido na mostra em 2016. Mariana chama veteranos de guerra, cidadãos comuns, “gente do povo” para ensaiar seu espetáculo enquanto lida com questões íntimas (a gravidez que o amante deseja que ela interrompa) e aspectos inerentes à decisão de montar uma peça sobre o lado nazifascista da Romênia (as negociações que precisa manter com o representante da prefeitura, que busca suavizar o espetáculo).
A Romênia foi, de fato, uma república socialista. Merece, pois, o epíteto de “país comunista”, ao contrário do Brasil que muitos teimam em enxergar. Foi governado durante décadas por Nicolae Ceauşescu, que, logo nos primeiros momentos da revolução democrática de 1989, foi executado por uma população sedenta por liberdade. Existe uma ambivalência com relação a esse passado, e é nisso que o cineasta Radu Jude e sua protagonista se apoiam para construir Eu não me importo se entrarmos para a história como bárbaros e o espetáculo que será encenado em praça pública, no fim do filme.
É como se o povo romeno, ainda com raiva do período vivido sob a égide do regime socialista, quisesse expurgar os traumas do passado recente com a normatização/normalização da violência que praticou contra os judeus. Como se uma agressão justificasse a outra. Alguém se lembra dos episódios recentes de agressão e assassinato praticados sob os gritos do nome do capitão do Exército que é candidato pelo PSL no Brasl? Em uma cena-chave, Mariana se aterroriza ao constatar que o público aplaude a execução dos judeus: “Meu Deus, como podem não sentir empatia?”. Em outra, ela reclama da passividade que alguns preferem adotar: “Não há tempo para sutileza nem para omissão”. O título é profético para romenos e brasileiros: Eu não me importo se entrarmos para a história como bárbaros parece ser o canto dos que, no Brasil de agora, preferem anular seu voto ou esbravejar por autocríticas e remissão de pecados ante a iminência de uma noite sem fim.
RESISTIRMOS, A QUE SERÁ QUE SE DESTINA? “Brasil, mostra a tua cara” é um verso que ecoa, também, em três dos 83 longas-metragens dirigidos por mulheres – um terço da programação completa da 42ª mostra tem assinatura de realizadoras. No filme mais recente de Tata Amaral, Sequestro relâmpago (Brasil, 2018), a face perversa da desigualdade tupiniquim é estampada de imediato: uma jovem branca (Marina Ruy Barbosa) é tomada refém por dois jovens da periferia (vividos pelo negro Sidney Santiago e por Daniel Rocha) ao sair de um bar. Eles querem esvaziar sua conta bancária, mas existe a impossibilidade de saque depois das 22h, o que os obriga a perambular, juntos, durante a madrugada de São Paulo.
Imagem do filme mais recente de Tata Amaral, Sequestro relâmpago
Estão lá a tensão racial, a fricção entre os estratos sociais, o jogo de aparências, a cordialidade brasileira, o machismo estruturante e a revolta que explode quando todos esses elementos são misturados. A protagonista, na ânsia para gerar algum tipo de vínculo com os sequestradores, diz: “Somos iguais, somos 99% da população do Brasil que não é rica”. Mas não é bem assim, séculos de escravidão e de desequilíbrio racial e econômico nos ensinam. Como resolver? “Vamo passar geral”, diz um personagem, usando a gíria – “passar” – para assassinato. Quando se pensa que uma das propostas do candidato líder das pesquisas no Brasil envolve a liberação do porte de armas, e quando se constata que Tata Amaral escreveu seu roteiro a partir de uma história verídica, o pensamento é: quão mais próximos precisam estar ficção e realidade no Brasil para que vivamos uma distopia?
Por fim, mas ainda no campo de possibilidades de articulação entre o que acontece agora no Brasil e os filmes exibidos na Mostra de São Paulo, uma breve nota sobre O mau exemplo de Cameron Post (EUA, 2018) e Rafiki (Quênia/África do Sul/Líbano/Alemanha/Holanda/França/ Noruega, 2018). Em ambos os filmes, que chegam à capital paulista após causar alarido em festivais (o primeiro foi o grande vencedor de Sundance, em janeiro, e o segundo gerou repercussão intensa em Cannes ao ser exibido na Un Certain Regard), a homossexualidade feminina é enquadrada do mesmo ponto de vista defendido pela maioria dos eleitores do país: como algo a ser combatido, batido, curado, erradicado.
Baseado no livro de Emily M. Danforth, com direção segura de Desiree Akhavan, O mau exemplo de Cameron Post acompanha a jornada de Cameron (Chloë Grace Moretz) nos idos de 1993, ao ser mandada pela família para um centro de conversão gay. Seu crime? Ter se apaixonado pela amiga e sido pega, ao lado dela, aos beijos e sarros no carro do namorado. A construção do filme é madura, ao tratar a adolescência como uma época de questionamentos e incertezas, e incisiva ao retratar os procedimentos terapêuticos, por assim dizer, para converter Cameron e os outros jovens que demonstraram a tão temida “confusão de gênero”. A atração por pessoas do mesmo sexo é vista, pela família dela, pela psicóloga (?) do centro e pela sociedade como uma doença.
O mau exemplo de Cameron Post trata de homofobia
Em Rafiki, a diretora Wanuri Kahiu narra o encontro entre Kena (Samantha Mukasia) e Ziki (Sheila Munyva), duas jovens quenianas que mantêm uma amizade apesar de pertencer a famílias rivais no campo político. Há um ditado popular que sentencia que “good kenyan girls become good kenyan wives”, mas elas não querem vestir a fantasia de “bela, recatada e do lar” e decidem vivenciar uma paixão. Como, portanto, optam por fugir do script secularmente estabelecido e apropriado para elas, hão de arcar com as consequências, que virão na forma – vejam lá a coincidência! – de espancamentos.
OK, é apenas um filme, são apenas filmes, da Romênia, da Áustria, do Quênia ou dos Estados Unidos, e esses "apenas filmes" não foram comprados para distribuição no Brasil, o que significa que talvez nem sejam mais exibidos por aqui mesmo... E mesmo o nacional é apenas um filme, não é? Pois aqui não existe desigualdade racial, não existe racismo, não existe preconceito contra a comunidade LGBT, não existiu ditadura, foi apenas um movimento segundo um juiz do Supremo Tribunal Federal, não existe apologia ao uso de armas, não existem registros de candidatos mandando metralhar os rivais...
No Brasil, não existe é memória, não existe empatia e tudo indica que boa parte das pessoas, em nome de uma suposta isenção, não se importe mesmo de entrar para a História como bárbaros. Mas na 42ª Mostra Internacional de Cinema de São Paulo, o que a arte faz é sinalizar, como um farol, os caminhos para reelaborar, reagrupar e resistir.
LUCIANA VERAS é repórter especial e crítica da Continente.
* A jornalista viajou a convite da 42ª Mostra Internacional de São Paulo.