Cobertura

Os atravessamentos e travessias do Cine Ceará

De longas a curtas-metragens, ‘Festival Ibero-americano de Cinema’ traz, em obras de sua seleção, o sentido de movimento

TEXTO LUCIANA VERAS, DE FORTALEZA*

03 de Dezembro de 2021

A atriz Marcélia Cartaxo interpreta Helena, no longa 'A praia do fim do mundo'

A atriz Marcélia Cartaxo interpreta Helena, no longa 'A praia do fim do mundo'

Imagem Divulgação

[conteúdo exclusivo Continente Online]

Com a pandemia, e por causa dela, passamos meses, mais de um ano, até, dentro de casa, em isolamento e distanciamento social, sem frequentar as outras pessoas e cumprir os rituais de convivência coletiva – como ir ao cinema, por exemplo. Agora, essa retomada gradual nos impele a examinar o estado das coisas – na nossa subjetividade, na loucura que é o Brasil de 2021 e em um mundo acelerado. Talvez por isso o signo do deslocamento tenha sido recorrente nos filmes selecionados para o 31º Cine Ceará – Festival Ibero-americano de Cinema. A ideia da travessia, ou mesmo do ato de “atravessar”, ir de algum lugar a outro, ou se permitir o impasse da encruzilhada, perpassa várias obras. 

Mesmo quando não há uma movimentação física em si, como é o caso do que vemos no curta-metragem Mar concreto, da realizadora carioca Julia Naidin, e do longa-metragem A praia do fim do mundo, de Petrus Cariry, a permanência se dá sob a chave da incerteza e da inquietude. Em ambos os casos, nas respectivas searas narrativas (o curta é um documentário e o filme do diretor cearense, uma ficção), o mar irrompe como uma constante e/ou uma ameaça. “Me interesso pelas metodologias de produção de memória e, no caso da Sônia, me espantei com o gesto dela de lidar com a própria perda”, explica Julia.


O doc Mar concreto, da realizadora carioca Julia Naidin. Imagem: Divulgação

Sônia, a protagonista do seu primeiro curta, mora em uma praia do Rio de Janeiro e, há mais de dez anos, documenta o processo de erosão do terreno. Percebemos a agonia dela frente ao que acontece e à impossibilidade de conter o avanço do mar. Já Helena, a personagem que Marcélia Cartaxo interpreta em A praia do fim do mundo, é o contrário: apegada à casa onde mora, uma sombra da pousada que ela geria no passado, não quer sair das ruínas de Ciarema, o local que dá nome a este sexto longa de Petrus.

Fotografado pelo próprio realizador em um preto & branco que ressalta os aspectos fantásticos da narrativa (filiada à essência do surreal, ou seja, de algo que vai “para além do real”, como define o dicionário Houaiss), A praia do fim do mundo se orquestra como um cabo de guerra entre Helena e sua filha Alice (Fátima Macedo), uma ativista ambiental que quer sair daquele lugar cujas fundações estão carcomidas pela água salgada, a mesma onde seu pai desapareceu misteriosamente décadas atrás. Elisa (Larissa Góes), uma amiga de Alice, é o outro vértice deste triângulo feminino que se pauta tanto pelo que se enuncia – nas palavras e nos gestos – como pelo que se renuncia – desejos amortecidos, a mudez sobre um passado cultuado e os silêncios.


A praia do fim do mundo, de Petrus Cariry. Imagem: Divulgação

A força do que não se fala também permeia obras como os curtas Sideral, de Carlos Segundo; Ato, de Bárbara Paz; Hawalari, de Cássio Domingos; e o longa 5 casas, de Bruno Gularte Barreto. Sideral foi um dos representantes do Brasil na competição de curtas-metragens no último Festival de Cannes. Em 15’, alinhava elementos do cinema de gênero – o ponto de partida é o lançamento do primeiro foguete brasileiro, direto da base aérea de Natal – ao olhar delicado para a intimidade de um casal (vivido por Enio Cavalcante e Priscilla Vilela) com seus dois filhos. Algo acontece, para além do foguete em si, que mudará por completo a configuração daquela paisagem familiar. “Não é sobre o foguete, mas sobre as pessoas”, pontuou Carlos, em participação virtual no debate pós-exibição, na manhã de quarta (1º). “Em meus filmes, gosto de contar histórias mínimas sobre personagens ordinários, comuns, e delas criar narrativas potentes”, acrescentou.

Há poucos diálogos em Sideral, o que ratifica a proposta do diretor de potencializar seus personagens, e sua narrativa, numa ambiência em que o não dito é sensorial. Palavras também são escassas em Ato, roteirizado por Cao Guimarães, dirigido pela atriz Bárbara Paz e exibido no último Festival de Veneza. No curta, a sensorialidade é explorada na fotografia de Azul Serra e na mescla entre a plasticidade de linguagens. Um homem e uma mulher se encontram, há pulsão de vida e morte no elo que se estabelece entre aquelas duas pessoas, que ora estão em um palco, ora em uma casa, ora como se estivessem a ensaiar, ora de fato ensaiando uma fuga. 

Em Hawalari, produção goiana com direção de Cássio Domingues, cuja ação transcorre no final do século XIX, um indígena da etnia Iny, originária do Centro-Oeste brasileiro, tem um contato imediato de terceiro grau com um homem branco, o que desperta, em ambos, uma miríade de sensações. Como não há o impedimento linguístico, posto que o jovem explorador fala a língua matriz daquele indígena, o que sobressai são justamente outras possibilidades de entraves… A incomunicabilidade, nesse caso, suplanta até a curiosidade e o desejo, como sinaliza a brusquidão do desfecho.




Imagens dos curtas Sideral (acima) e Hawalari. Fotos: Divulgação

Falando em curiosidade e desejo, um dos últimos curtas exibidos na competição, na noite desta quinta (2), foi O amigo do meu tio, de Renato Turnes. Como dissemos no primeiro texto desta cobertura, relações humanas e memória são dois eixos que podem funcionar como arcabouços para pensar a seleção desta 31ª edição do Cine Ceará. O amigo do meu tio parte do acervo de imagens em VHS da família de Vicente Concílio, roteirista deste filme produzido em Santa Catarina, e discorre, em seus breves oito minutos, sobre o despertar da sexualidade homoafetiva, atentando para a vinculação com outra pandemia, talvez hoje já nem tão lembrada pela juventude, porém ainda bastante letal.

“Neste ano, estamos completando 40 anos da epidemia de HIV/AIDS no mundo. Precisamos falar disso”, sintetizou Vicente ao apresentar o filme diante da plateia do Cinema São Luiz, em Fortaleza. Com sua voz como guia, o curta desnuda o encanto dele por Chulé, um dos amigos do seu tio. A patota máscula, retratada pela câmera VHS que o pai de Vicente comprou nos anos 1980, ganha cheiro – de cerveja, suor e nicotina – e cor pelas lembranças do menino loiro e sorridente das imagens. “Eu te amei, Chulé”, diz a narração em off, depois de nos informar que Chulé foi uma das primeiras pessoas que sua família conhecia a morrer de AIDS.

“Acho que o tempo é tudo, é o passado que a gente vai revisitar e o que a gente projeta para o futuro. A pandemia trouxe um movimento de olhar para esses acervos, para essa memória da minha família. Ao mesmo tempo, eu moro em Florianópolis e meus pais, em São Paulo. Então, eu pensava: se eu morrer agora, quem vai vir aqui pegar meu corpo? Eu via essa simetria entre tudo isso que a gente estava vivendo e pensar na questão de HIV/AIDS”, respondeu Vicente à Continente.


Cena de O amigo do meu tio. Imagem: Divulgação

E veio também do Sul do país outro experimento em linguagem documental: 5 casas, primeiro longa-metragem de Bruno Gularte Barreto, que trafega em várias vias – a entrevista, a narração em off, o dispositivo – para mergulhar nas vastas e porosas sendas da memória. É, como muitos outros filmes deste Cine Ceará, um retorno a lembranças familiares, uma apropriação desta iconografia afetiva e uma tentativa de dar sentido ao que nem sempre é possível racionalizar. No caso do realizador, a morte da mãe, quando ele tinha 8 anos, e a perda do pai, cinco anos depois, os dois vitimados por câncer, na cidade de Dom Pedrito, no interior do Rio Grande do Sul.

“Não existe verdade”, definiu Bruno ao conversar com os jornalistas na manhã da quarta (1º). Depois de uma década voltando a Dom Pedrito para, em princípio, colher depoimentos sobre sua mãe e seu pai, Maria e Eley, e depois para se imiscuir às memórias de suas ex-professoras e amigos de infância, ele sentiu que tinha um filme. “Mas tive muitas dúvidas. O filme teve dezenas de cortes”, revela. Também pudera: cavucar, como um arqueólogo, os álbuns antigos de fotografia em busca de suas imagens como criança ou de algo mais sobre essa mãe (“em determinado momento, comecei a perceber que eu já não lembrava mais da voz dela”) é excruciante. Mas também libertador. “Me interesso em pensar a ideia de autoficção. É tudo verdade, mas também é tudo mentira. Vi no filme a possibilidade de transformar a dor da perda e memória através da arte”, resumiu Bruno, que também assina a montagem ao lado de Vicente Moreno.


5 casas, o primeiro longa de Bruno Gularte Barreto. Imagem: Divulgação


O curta Ato, de Bárbara Paz. Imagem: Divulgação

A premiação do 31º Cine Ceará – Festival Ibero-americano de Cinema ocorre nesta sexta (3). Contudo, a sensação é de que os troféus hão de vir, para estes ou outros filmes, mas os deslocamentos propostos – afetivos, estéticos, simbólicos e políticos – valem mais. O real nunca estará na chegada ou na saída, e sim sempre no meio da travessia.

LUCIANA VERAS é repórter especial e crítica de cinema da Continente.

* A repórter viajou a convite da organização do festival.

Publicidade

veja também

Premiação do Cine Ceará

Memória e relações humanas marcam o início do Cine Ceará