A força do que não se fala também permeia obras como os curtas Sideral, de Carlos Segundo; Ato, de Bárbara Paz; Hawalari, de Cássio Domingos; e o longa 5 casas, de Bruno Gularte Barreto. Sideral foi um dos representantes do Brasil na competição de curtas-metragens no último Festival de Cannes. Em 15’, alinhava elementos do cinema de gênero – o ponto de partida é o lançamento do primeiro foguete brasileiro, direto da base aérea de Natal – ao olhar delicado para a intimidade de um casal (vivido por Enio Cavalcante e Priscilla Vilela) com seus dois filhos. Algo acontece, para além do foguete em si, que mudará por completo a configuração daquela paisagem familiar. “Não é sobre o foguete, mas sobre as pessoas”, pontuou Carlos, em participação virtual no debate pós-exibição, na manhã de quarta (1º). “Em meus filmes, gosto de contar histórias mínimas sobre personagens ordinários, comuns, e delas criar narrativas potentes”, acrescentou.
Há poucos diálogos em Sideral, o que ratifica a proposta do diretor de potencializar seus personagens, e sua narrativa, numa ambiência em que o não dito é sensorial. Palavras também são escassas em Ato, roteirizado por Cao Guimarães, dirigido pela atriz Bárbara Paz e exibido no último Festival de Veneza. No curta, a sensorialidade é explorada na fotografia de Azul Serra e na mescla entre a plasticidade de linguagens. Um homem e uma mulher se encontram, há pulsão de vida e morte no elo que se estabelece entre aquelas duas pessoas, que ora estão em um palco, ora em uma casa, ora como se estivessem a ensaiar, ora de fato ensaiando uma fuga.
Em Hawalari, produção goiana com direção de Cássio Domingues, cuja ação transcorre no final do século XIX, um indígena da etnia Iny, originária do Centro-Oeste brasileiro, tem um contato imediato de terceiro grau com um homem branco, o que desperta, em ambos, uma miríade de sensações. Como não há o impedimento linguístico, posto que o jovem explorador fala a língua matriz daquele indígena, o que sobressai são justamente outras possibilidades de entraves… A incomunicabilidade, nesse caso, suplanta até a curiosidade e o desejo, como sinaliza a brusquidão do desfecho.
Imagens dos curtas Sideral (acima) e Hawalari. Fotos: Divulgação
Falando em curiosidade e desejo, um dos últimos curtas exibidos na competição, na noite desta quinta (2), foi O amigo do meu tio, de Renato Turnes. Como dissemos no primeiro texto desta cobertura, relações humanas e memória são dois eixos que podem funcionar como arcabouços para pensar a seleção desta 31ª edição do Cine Ceará. O amigo do meu tio parte do acervo de imagens em VHS da família de Vicente Concílio, roteirista deste filme produzido em Santa Catarina, e discorre, em seus breves oito minutos, sobre o despertar da sexualidade homoafetiva, atentando para a vinculação com outra pandemia, talvez hoje já nem tão lembrada pela juventude, porém ainda bastante letal.
“Neste ano, estamos completando 40 anos da epidemia de HIV/AIDS no mundo. Precisamos falar disso”, sintetizou Vicente ao apresentar o filme diante da plateia do Cinema São Luiz, em Fortaleza. Com sua voz como guia, o curta desnuda o encanto dele por Chulé, um dos amigos do seu tio. A patota máscula, retratada pela câmera VHS que o pai de Vicente comprou nos anos 1980, ganha cheiro – de cerveja, suor e nicotina – e cor pelas lembranças do menino loiro e sorridente das imagens. “Eu te amei, Chulé”, diz a narração em off, depois de nos informar que Chulé foi uma das primeiras pessoas que sua família conhecia a morrer de AIDS.
“Acho que o tempo é tudo, é o passado que a gente vai revisitar e o que a gente projeta para o futuro. A pandemia trouxe um movimento de olhar para esses acervos, para essa memória da minha família. Ao mesmo tempo, eu moro em Florianópolis e meus pais, em São Paulo. Então, eu pensava: se eu morrer agora, quem vai vir aqui pegar meu corpo? Eu via essa simetria entre tudo isso que a gente estava vivendo e pensar na questão de HIV/AIDS”, respondeu Vicente à Continente.
Cena de O amigo do meu tio. Imagem: Divulgação
E veio também do Sul do país outro experimento em linguagem documental: 5 casas, primeiro longa-metragem de Bruno Gularte Barreto, que trafega em várias vias – a entrevista, a narração em off, o dispositivo – para mergulhar nas vastas e porosas sendas da memória. É, como muitos outros filmes deste Cine Ceará, um retorno a lembranças familiares, uma apropriação desta iconografia afetiva e uma tentativa de dar sentido ao que nem sempre é possível racionalizar. No caso do realizador, a morte da mãe, quando ele tinha 8 anos, e a perda do pai, cinco anos depois, os dois vitimados por câncer, na cidade de Dom Pedrito, no interior do Rio Grande do Sul.
“Não existe verdade”, definiu Bruno ao conversar com os jornalistas na manhã da quarta (1º). Depois de uma década voltando a Dom Pedrito para, em princípio, colher depoimentos sobre sua mãe e seu pai, Maria e Eley, e depois para se imiscuir às memórias de suas ex-professoras e amigos de infância, ele sentiu que tinha um filme. “Mas tive muitas dúvidas. O filme teve dezenas de cortes”, revela. Também pudera: cavucar, como um arqueólogo, os álbuns antigos de fotografia em busca de suas imagens como criança ou de algo mais sobre essa mãe (“em determinado momento, comecei a perceber que eu já não lembrava mais da voz dela”) é excruciante. Mas também libertador. “Me interesso em pensar a ideia de autoficção. É tudo verdade, mas também é tudo mentira. Vi no filme a possibilidade de transformar a dor da perda e memória através da arte”, resumiu Bruno, que também assina a montagem ao lado de Vicente Moreno.
5 casas, o primeiro longa de Bruno Gularte Barreto. Imagem: Divulgação
O curta Ato, de Bárbara Paz. Imagem: Divulgação
A premiação do 31º Cine Ceará – Festival Ibero-americano de Cinema ocorre nesta sexta (3). Contudo, a sensação é de que os troféus hão de vir, para estes ou outros filmes, mas os deslocamentos propostos – afetivos, estéticos, simbólicos e políticos – valem mais. O real nunca estará na chegada ou na saída, e sim sempre no meio da travessia.
LUCIANA VERAS é repórter especial e crítica de cinema da Continente.
* A repórter viajou a convite da organização do festival.