Voltamos. Pela primeira vez, desde novembro de 2019, estamos cobrindo presencialmente um festival de cinema. E como entendemos o cinema, e o jornalismo, como uma ágora, isso não é pouco. De Fortaleza, acompanhamos o 31º Cine Ceará – Festival Ibero-americano de Cinema, uma realização da Associação Cultural Cine Ceará e da Bucanero Filmes viabilizada com recursos do Ministério do Turismo, via Secretaria Especial da Cultura, com a alegria do retorno e o olhar atento para o que significa ver, e perceber, uma seleção de curtas e longas-metragens compilada entre obras feitas já sob a égide da pandemia.
Não são tempos fáceis: uma nova variante do coronavírus circula, a vacinação oscila no mundo inteiro e o contexto sociopolítico do Brasil segue turbulento. Para além das agruras de uma vida ainda incerta e sob ameaça, sofremos a hostilidade que o atual governo dispara contra as atividades culturais. Porém, como diz o verso de Thiago de Mello que ilustra o tema da 34ª Bienal de São Paulo, “faz escuro mas eu canto”.
Por uma dessas coincidências e convergências da vida, a identidade visual desta edição do Cine Ceará lembra a explosão de uma supernova… Ou mesmo o fulgor que, saindo da cabine da projeção, ilumina uma sala de mais de mil lugares, como é o Cinema São Luiz, na Praça do Ferreira, centro da capital cearense. Faz escuro, mas cantamos. Ou dançamos, como fazem as duas personagens principais de Fortaleza Hotel (Brasil, 2021), escolhido para abrir a mostra competitiva ibero-americana de longa-metragem na noite do último sábado (27). Segundo longa do diretor cearense Armando Praça – que, em 2019, saiu do festival com os prêmios de melhor filme, diretor e ator para Marco Nanini por Greta –, Fortaleza Hotel se ancora na coreografia de aproximação entre Pilar (a atriz pernambucana Clébia Sousa), camareira da localidade que dá título ao filme, e Shin (a sul-coreana Lee Young-Lan), que chega ao Brasil para resolver os trâmites decorrentes da súbita morte do marido e lá se hospeda.
"O roteiro de Isadora Rodrigues e Pedro Cândido chegou para mim depois de passar pelo laboratório do Porto Iracema das Artes. Maurício Macêdo, que produz Fortaleza Hotel pela Moçambique Audiovisual, achou que eu poderia me interessar e, de fato, eu me interessei e me senti muito à vontade para trabalhar com ele. Tenho duas irmãs, fui criado com muitas tias e com minha avó e minha mãe, Jane Praça, foi a mulher mais solidária que eu conheci na vida. Me interessava poder explorar a solidariedade entre duas mulheres que vinham de lugares tão distintos, sem nem falar o mesmo idioma, mas que se conectam em um determinado momento", comentou Armando no debate com a imprensa.
Atrizes Lee Young-Lan e Clébia Sousa em Fortaleza Hotel. Still: Jorge Silvestre
Esse "determinado momento" se impõe a partir de uma intimidade forjada (e que nos é dada a sentir pela fotografia de Heloísa Passos), à medida que Shin, uma estrangeira desnorteada tanto pelo deslocamento geográfico como pela ausência do marido, pede a ajuda de Pilar e a brasileira, por sua vez, se vê em uma situação limite quando sua filha Jamile (Larissa Góes) é sequestrada. Em uma sequência crucial, em meio a adversidades físicas e concretas (tiros e policiais do lado de fora) e outras subjetivas (um impasse que as coloca em confronto), as duas dançam um misto de forró com tango em sotaque asiático. "No começo, foi muito desafiador contracenar com Lee, até com isso de falar em inglês, que é uma língua que tanto eu como Pilar não dominamos. Mas o bom é que essa cena específica foi gravada no meio das filmagens, então a gente já tinha uma relação de proximidade e pode ir experimentando… Vendo até onde era possível ir, no limite dos corpos de cada uma", pontuou Clébia (O som ao redor, Tatuagem, Bacurau).
Essa ideia, ou talvez mais uma sensação, de descobrir o caminho enquanto se estica o limite pode enfeixar algumas das obras exibidas até agora. No curta-metragem O durião proibido (Brasil, 2021), o realizador pernambucano Txai Ferraz nos conduz em uma viagem pela Tailândia, rumo a uma investigação pessoal e estética, costurando cenas captadas em uma viagem de férias com vídeos disponíveis no YouTube ou mesmo imagens do Google Street View. "O durião é uma fruta que existe na Tailândia e é muito comum. Parece com a nossa jaca. Mas, por alguma razão, o seu consumo é proibido em lugares públicos. Estive lá em 2019, numa viagem de férias. No ano passado, ganhei um edital para filmar e voltei a essas imagens querendo pensá-las em uma relação com a minha própria afetividade. Por que o durião pode ser comprado e consumido dentro de casa? Como se algumas coisas pudessem ser permitidas, mas não à vista de todo mundo. E o que pode e não pode fazer dentro dos códigos da sexualidade de um homem gay?", indaga o jovem cineasta.
Pela chave ficcional, ele reinventa a si mesmo – é sua voz na narração em off –, mas também contribui para uma reflexão maior: "Vivemos um momento de apagamento sistemático da memória, mas, pensando na especificidade da memória LGBT, a gente está em um momento histórico em que essa memória está sendo contada pela primeira vez. Temos os 50 anos de Stonewall, os 40 anos da epidemia de HIV/AIDS. Essa memória pequena e individual pode ser política também, na medida em que as pessoas veem e se reconhecem. Sem essencializar o que é ser um homem gay, acho que é possível contar uma história que pode ser muitas pessoas. E, quando cada um contar sua história, vamos na contramão do discurso oficial que, sem dúvida, não inclui nossa afetividade".
Diretor Txai Ferraz. Foto: Rômulo Santos/Divulgação
As possibilidades de falar de uma memória no micro e no macrocosmo e de articular o cotejo entre o local e o global estão também nos curtas Chão de fábrica (Brasil, 2021), de Nina Kopko, e Foi um tempo de poesia, de Petrus Cariry, e no longa Bosco (Uruguai/Itália, 2020), de Alicia Cano Menoni. No primeiro, uma ficção inspirada em uma cena da peça O pão e a pedra, escrita por Sérgio de Carvalho e montada pela Companhia do Latão em 2016, a atmosfera política das greves do ABC Paulista em 1979 é condensada no minúsculo espaço de um banheiro de fábrica onde quatro operárias (interpretadas magistralmente por Helena Albergaria, Carol Duarte, Alice Marcone e Joana Castro) se encontram no intervalo de almoço.
Ao longo dos 24 minutos, conhecemos aquelas mulheres que repartem segredos – um filho que está em um orfanato, o desejo por corpos iguais –, enquanto lá fora um líder chamado Lula lidera a paralisação dos metalúrgicos em São Bernardo do Campo. "Foram dois dias de filmagens em uma fábrica desativada, que fica sob os cuidados do Sindicato dos Metalúrgicos de São Bernardo. Eu precisava de mulheres que topassem ensaiar duas semanas e filmar sem ganhar cachê. Algumas já eram minhas amigas, como a Carol Duarte. Outras se tornaram depois da filmagem, como a Joana Castro", contou Nina Kopko, em sua primeira direção solo – em 2019, ela esteve no Cine Ceará como diretora-assistente de A vida invisível, de Karim Aïnouz, e participou virtualmente do debate na manhã desta terça (30).
Ao término de Chão de fábrica, antes de os créditos subirem – uma equipe 95% feminina, segundo a realizadora, bancada com recursos próprios, sem verba de edital –, vemos icônicas fotografias da massa operária do ABC. Nelas, poucas, pouquíssimas mulheres, singularizadas por um recurso da montagem (um excelente trabalho de Lis Paim). "As personagens são um recorte ficcional a partir da história de dezenas de mulheres que existiram de verdade, que trabalhavam nas fábricas e que nem sempre podiam aderir à greve porque tinham que cuidar dos seus filhos em casa. É uma ficção calcada na história do movimento trabalhista feminino do Brasil. Por que vemos poucas mulheres nas fotos? Porque, para que os homens pudessem estar lá, havia uma mulher em casa", situa Nina.
Ela menciona que seu filme tem o tempo do "futuro do pretérito" e nos leva a conjecturar o que teria acontecido a cada uma daquelas quatro mulheres. Brincar com os tempos, e com o tensionamento entre passado, presente e futuro, também é algo que o cearense Petrus Cariry faz em Foi um tempo de poesia. Usando o rico acervo da Cariri Filmes, produtora do seu pai, Rosemberg Cariry, ele se volta para trechos em que o poeta Patativa do Assaré (1909-2002) aparece, ora caminhando pelas ruas do centro de Fortaleza, ora carregando o então bebê Petrus, seu afilhado, pelo colo. Com a sua voz em cena, em recurso similar ao que Txai Ferraz emprega em O durião proibido, Petrus confronta suas lembranças – uma vez em que o padrinho prometeu levá-lo ao parque de diversões, e não levou (ou levou?) – com a força que ainda emana daquele material de arquivo.
As personagens de Chão de fábrica, curta de Nina Kopko. Foto: Divulgação"Um arquivo é isso: quando está lá, você começa a mexer nele, a organizar, e vai também se organizando para trabalhar com aquelas imagens. São quase 70 minutos de cenas do Patativa. Aí, eu descobri que tinha umas imagens que eu tinha feito em uma câmera Bolex que meu pai tinha me dado, quando eu tinha uns 6, 7 anos. E pensei que tinha que fazer um documentário sobre isso", diz Petrus, que também exibirá um longa, A praia do fim do mundo, neste 31º Cine Ceará. O prolífico cineasta entende que preservar a memória de Patativa do Assaré não serve apenas para que ele possa se acertar com o passado (em determinado momento do curta, por exemplo, ele narra que não conseguiu ir ao velório do padrinho), e sim para assegurar ao menos a salvaguarda desse material: "Tratamos muito mal a memória de uma forma geral, mas sobretudo a memória cinematográfica no nosso país. Tem filmes da Retomada, dos anos 1990, que estão se estragando. Que precisam ser restaurados. Acho que a preservação desse material precisa ser uma política pública".
Alicia Cano Menoni, diretora de Bosco, em participação virtual no debate.
Foto: Rômulo Santos/Divulgação
LUCIANA VERAS é repórter especial e crítica de cinema da Continente.
* A repórter viajou a convite da organização do festival.