Reportagem

Luz à produção 'afrocênica'

É preciso abrir espaço, no país, ao trabalho de negras e negros ligados aos palcos. Eis uma das propostas da mostra 'Luz Negra – O Negro em Estado de Representação', no Recife

TEXTO Márcio Bastos

19 de Outubro de 2017

A atriz Mônica Santana apresenta, na mostra, o solo 'Isto não é uma mulata'

A atriz Mônica Santana apresenta, na mostra, o solo 'Isto não é uma mulata'

Foto Andrea Magnoni/Divulgação

Uma rápida olhada nos elencos das grandes produções nacionais, assim como nas plateias que comumente frequentam espaços cênicos, leva os mais atentos a um questionamento: onde estão os negros? O número ainda pequeno de afrodescendentes na frente e atrás dos palcos e de espectadores não-brancos tem, em sua raiz, o racismo institucionalizado que continua a vigorar no Brasil. Dispostos a transformar essa realidade, fazedores de cultura e intelectuais ao redor do país têm se organizado em ações afirmativas acerca da(s) identidade(s) negra(s). Uma dessas iniciativas é a mostra Luz Negra – O Negro em Estado de Representação, do coletivo pernambucano O Poste Soluções Luminosas, cuja primeira edição ocorre de 19 a 29 de outubro no Recife (veja programação AQUI), reunindo artistas de diferentes linguagens na tentativa de trabalhar raça, gênero, sexualidade, entre outras questões, pelo prisma da vivência afro-brasileiras (leia também: Palcos voltados à questão negra).

A diversidade racial e cultural é um dos aspectos mais celebrados do Brasil. No entanto, a ideia de que a nação é exemplo de uma democracia racial, ainda hoje sustentada local e internacionalmente, é também um de seus maiores mitos. A nação continua excludente em relação aos negros, nos aspectos econômicos, sociais e culturais. Nas artes, o protagonismo historicamente negado às minorias sociais tem sido por elas reivindicado desde o início do século XX. Isso porque a presença dos negros nos palcos e na criação de obras teatrais foi cerceada por séculos. A prática do blackface, na qual atores brancos pintavam seus rostos de preto a fim de emular personagens negros, geralmente estereotipados e preconceituosos, era comum e produto desse sistema racista. A negritude era, portanto, representada apenas através do olhar caucasiano.

Para se fazerem ouvir, artistas negros se reuniram com o objetivo de realizar empreitadas transformadoras, como a Companhia Negra de Revista, criada pelo artista De Chocolat, em 1926. Porém, a grande revolução no sentido da representatividade foi o Teatro Experimental do Negro (TEN), criado por Abdias do Nascimento, em 1944, no Rio de Janeiro. Este, inclusive, nasceu da inquietação de Nascimento após viagem ao Peru, onde assistiu à peça Imperador Jones, de Eugene O’Neill, que apesar de se tratar de um relato sobre a vivência de um negro, era protagonizada por um branco.

“Por que um branco brochado de negro? Pela inexistência de um intérprete dessa raça? Entretanto, lembrava que, em meu país, onde mais de 20 milhões de negros somavam a quase metade de sua população de 60 milhões de habitantes, na época, jamais assistira a um espetáculo cujo papel principal tivesse sido representado por um artista da minha cor”, escreveu Abdias sobre o episódio dos anos 1940 no artigo “Teatro experimental do negro: trajetória e reflexões”, publicado em 2004.

Ao voltar ao Brasil, se lançou na empreitada de criar um projeto que trabalhasse a valorização do negro na sociedade, a partir da cultura e da educação. Constatando que a dramaturgia brasileira continha raras narrativas com a presença de afrodescendentes e, quando o fazia, partia de um viés racista, Nascimento decidiu montar a peça de O’Neill. Por sua iniciativa revolucionária, recebeu o aval do dramaturgo norte-americano, que abriu mão dos direitos e afirmou torcer para que o grupo conseguisse mudar a realidade excludente do teatro brasileiro. A estreia ocorreu em 1945, no Teatro Municipal do Rio de Janeiro.

O TEN partia do princípio de se criar uma poética que representasse as vivências, os desejos e as angústias dos afrodescendentes e essa perspectiva gerou frutos, formando uma nova geração de agentes de teatro e influenciando outras iniciativas nas artes cênicas, como o Teatro Folclórico Brasileiro, o Balé Brasiliana, o Teatro Popular Brasileiro e o Balé Folclórico Mercedes Baptista.

PALCO COMO TRINCHEIRA
Em seu livro O Teatro Negro em perspectiva: dramaturgia e cena negra no Brasil e em Cuba, o pesquisador Marcos Antônio Alexandre ressalta a necessidade de se demarcar e estudar Teatro Negro, definido por ele como “textos dramáticos e/ou espetaculares em que os negros, a sua cultura e a sua visão ideológica do (e para) o mundo aparecem como temática central e dos agentes”. Ele defende ainda que, nas formas artísticas em que o negro se vê representado, seu corpo é ressignificado, sendo visto como legitimador de discursos políticos e ideológicos. Dessa forma, passa a construir narrativas que articulam memórias individuais e coletivas. Representatividade, acima de tudo.

Esse pensamento dialoga com o espírito de iniciativas ao redor do país que promovem a produção de artistas afro-brasileiros, a exemplo do Festival de Arte Negra em Belo Horizonte (FAN/MG), Festival Afro Music (SP), Centro Afrocarioca de Cinema (RJ), e A Cena Tá Preta e o Fórum Nacional de Performance Negra, do Grupo de Teatro Olodum (BA), para citar alguns.

É nesse contexto que nasce a mostra Luz Negra – O Negro em Estado de Representação, contemplada com o 4º Prêmio Nacional de Expressões Culturais Afro-brasileiras, dedicado ao fomento de ações afirmativas de artistas e ativistas negros. O projeto traz à capital pernambucana espetáculos teatrais, performances, danças afro-brasileiras, música, entre outras ações.

A busca do evento por ocupar espaços se manifesta de maneiras simbólicas, em escolhas práticas, como eleger o Teatro de Santa Isabel para a noite de abertura. O palco mais tradicional do Recife foi, por muito tempo, destino quase exclusivo das elites, que consumiam, como o resto do país, obras majoritariamente de caráter eurocêntrico.

A mostra cênica marca também um momento de amadurecimento e expansão de O Poste Soluções Luminosas. Ao longo da última década, o grupo formado por Naná Sodré, Samuel Santos e Agrinez Melo vem se dedicando à pesquisa da ancestralidade teatral, a partir das matrizes africanas através de seus espetáculos e também de oficinas teatrais e apresentações em terreiros e quilombos, na tentativa de aproximar os afrodescendentes das artes cênicas. Entre os planos do Poste está, em 2018, abrir uma escola de interpretação no espaço que mantém, de forma independente, na Rua da Aurora, onde, aliás, acontecerá a maioria das intervenções da mostra.


O poético Ombela, do Poste, está na mostra. Foto: Lucas Emanuel/Divulgação

“O Poste é da região (Nordeste) e do estado (Pernambuco) que mais trouxeram negros escravizados da África. Muitas das riquezas do estado, dos senhores, foram herdadas da escravização do negro africano e seus descendentes. Mas muitas dessas riquezas até hoje não foram usufruídas pelo povo negro. Isso se estende também para o campo das artes, precisamente o teatro. Notamos uma ausência do público afro nas encenações cênicas, pois, em sua grande maioria, há a ausência de negros nos espetáculos e temas muitas vezes distantes dos seus anseios, não havendo uma identificação e uma representatividade por parte das obras encenadas”, explica Naná Sodré, do grupo O Poste Soluções Luminosas.

IDENTIDADES PLURAIS
Para a atriz Mônica Santana, que apresenta, na mostra, o solo Isto não é uma mulata (BA), a ação do coletivo pernambucano se insere em um contexto de mudança de cenário em relação às criações de artistas afro-brasileiros em nível nacional. Ela identifica ainda que há uma urgência na discussão das questões identitárias que faz com que o tema não seja facilmente ignorado pelos grandes festivais, como era há algumas décadas – apesar de ressaltar a desigualdade da balança quando se entra em questões raciais. “Não dá mais para ignorar a produção artística de pessoas negras – embora o número significativo de festivais ainda tenha um pequeno número de obras de criadores negros. A mostra (Luz Negra) escancara uma produção que existe, é propositiva e investiga outras linguagens e estratégias. Acredito que abrir campo para reflexões sobre a produção artística do negro nas artes cênicas em um estado onde a produção cultural é referência e influencia não somente o Nordeste, mas o conjunto do país, é uma urgência”, argumenta Mônica. “Espaços autônomos onde possamos pensar sobre estética e suas características é algo fundamental – sem esquecer que essa estética propõe discursos, caminhos, uma agenda –, mas é, antes de tudo, produção artística e que sim, pode desencadear transformações”, segue a artista, que trata, em seu solo, de questões como a invisibilidade e a hipersexualização da mulher negra pela sociedade misógina e racista.

O ator pernambucano Marconi Bispo concorda com esse pensamento e pontua ainda que é preciso lançar luz sobre as obras criadas por artistas negros sem reducionismos. Para ele, é essencial abranger as diferentes vivências dos afrodescendentes. Seu solo Luzir é negro, por exemplo, foi criado a partir de sua biografia e revela sua experiência como homem negro, gay, nordestino e praticante do candomblé.

“Uma ação como esta pode nos fazer refletir que não existe uma identidade negra, mas muitas identidades negras: interseccionalizadas, fluidas, fortalecidas, fragilizadas, em trânsito, em crise, em construção. Em estado de se empoderar. Contudo, ainda que ante tanta multiplicidade, polifonia, polissemia, somos, todas e todos, atravessados pelo racismo. Uma ação como esta é um enfrentamento a este sistema que tenta nos calar. Esta ação é mais uma possibilidade de sermos ouvidos, vistos, compreendidos, provocados; amplifica o debate sobre o ser negro e negra ao propor um caleidoscópio com tantos artistas negros(as) reunidos(as)”, enfatiza.


Agrinez interpreta Histórias bordadas em mim. Foto: Lucas Hero/Divulgação

A pluralidade de identidades contidas nas vivências das pessoas negras, como apontou Marconi, pode ser vista ainda em obras como A receita, solo de Naná Sodré sobre uma mulher vítima de violência doméstica; Histórias bordadas em mim, interpretada e criada por Agrinez Melo, cuja biografia é mote para tratar de questões como maternidade e ser uma artista no Brasil contemporâneo.

Na mostra, a busca pelas raízes africanas aparece de maneira enfática no poético Ombela, de O Poste. O texto é adaptado do livro do angolano Manuel Rui e é encenado em português e umbundo, uma das línguas tradicionais mais faladas na Angola. O dançarino moçambicano Manuel Castomo, residente em Pernambuco há cinco anos, trará também um olhar que transita entre diferentes polos da vivência enquanto negro. Segundo ele, o cenário aqui não é encorajador, mas há uma grande pulsão criativa. “Penso que na dimensão sociopolítica da nossa atualidade, os artistas têm um papel crucial não apenas de relevar seu mundo estético ou fazer apenas entretenimento, mas também de iluminar uma nação através da representatividade, que, na verdade, é uma posição. As artes têm o poder de iluminar, mas só se pode ver a luz consciente de que se está na sombra, ou seja, na escuridão, para sair dela”, aponta.


A receita, solo de Naná Sodré. Foto: Thais Lima/Divulgação

Para Naná Sodré e Samuel Santos, a mostra é um primeiro passo para um projeto maior, de criação e fortalecimento de redes criativas capazes de colocar Pernambuco em sintonia com as transformações que vêm ocorrendo (ainda que lentamente) em outros estados. “O impacto que o projeto trará a comunidade negra é de fundamental importância, pois o projeto tem ações plenas, ricas e variadas, fazendo com que o público e o artista negro se reconheçam nas atrações do projeto. [Nosso objetivo é] Pertencer, representar, sedimentar uma identidade, demarcar territórios; dar visibilidade ao artista negro, colocando Pernambuco na rede de discussões de visibilidade em relação a esse artista, espaço de ações afirmativas, discussões, encontros, memória e fortalecimento”, reforçam.

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