Mirante

“Nem tudo na vida pode ser likes”

TEXTO Débora Nascimento

11 de Outubro de 2018

Foto Reprodução

Chamada do Uol: “Pupillo deixa as baquetas da Nação Zumbi e entra Tom Rocha em seu lugar”.

Comentário do leitor (ipsis litteris): “Grande coisa! Nenhum artista que mama nas tetas da lei que dá milhões pra quem já é rico vai apoiar Bxxxxx. Quando o mito assumir essa mamata irá acabar”.

Detalhe: nenhum trecho da matéria falava em eleição.

Esse é apenas um dos incontáveis exemplos da deturpação de ideias e da intolerância com o outro que tomou conta do país nos últimos meses. Nesse período, vimos crescer a campanha #elenão, liderada por mulheres contra o candidato a presidente que vem demonstrando não respeitar mulheres, negros, índios, gays. Em vídeos, há registros de xingamentos chulos. Suas falas contém graves amostras de preconceito, intolerância e incitação à violência. Em suas ações políticas, o perigo de retrocessos, como a proibição do atendimento no SUS às vítimas de violência sexual e a redução da licença maternidade, além da não defesa dos salários iguais entre gêneros.

Com tudo isso, é natural a adesão de artistas de todos os gêneros à campanha #elenao. Como resposta, os que vêm se pronunciando recebem uma enxurrada de impropérios e até ameaças de agressão física. Aconteceu isso com Marília Mendonça. Após ter gravado e postado um vídeo no qual afirmou que não votará no candidato, passou a ser alvo da fúria desses eleitores. A cantora não resistiu à pressão e apagou a postagem, prometendo nunca mais se posicionar politicamente.

Como resposta, postou uma foto com a família e escreveu: “Deixo aqui o meu pedido de desculpas a todas as mulheres que acreditei estar defendendo naquele momento. Deixo aqui o meu pedido de desculpas a todos os homens, por, em um instante de loucura, acreditar que uma opinião não feriria já vocês. Minha mãe tem recebido ataques tanto quanto o restante da minha família que nem compartilham da mesma opinião que a minha. Deixo aqui essa mensagem, e o meu profundo silêncio em qualquer questão que seja política”.

O que mais impressiona nesse episódio não é apenas Marília Mendonça ter apagado o post, mas ter pedido desculpas pela intenção de defender as mulheres e por supostamente ter provocado ameaças. A distorção grotesca da realidade é uma das características dos tempos atuais. Isso já acontece em muitos casos de violência sexual, nos quais a sociedade acaba impelindo a vítima a se sentir responsável pela agressão que sofreu. A mensagem da cantora sertaneja reforça essa ideia do “ela provocou” – não é à toa que no vídeo em que esse mesmo candidato xinga uma repórter, o título seja “Jornalista provoca Bxxxx e depois se faz de vítima”.

O que Marília Mendonça também confundiu, nesse episódio, é que esse posicionamento político não se refere à política partidária, mas à defesa de algo maior, aquilo que nos une independente de nacionalidade, sexo, cor de pele, classe social: os direitos humanos, cuja declaração pela Organização das Nações Unidas completa 70 anos em dezembro.

O documento da ONU foi lançado para que não se repetissem os horrores ocorridos na Segunda Guerra, o massacre de 6 milhões de pessoas motivado por preconceito étnico e religioso, numa busca insana da ideia de superioridade e imposição da vontade de uma maioria. O candidato alvo do #elenão repete, em suas falas, o discurso de que a maioria deve se sobrepor às minorias – o mundo já ouviu isso antes e não deu em coisa boa.

Nesse caso, “maioria” não significa apenas a numérica, aquela que elege um político, mas ao perfil dos que detêm o poder no país: homem branco hétero. Quem não for “contemplado” com essas três características supostamente deveria se submeter às ideias e decisões da “maioria”. No entanto, quando direitos das minorias não são garantidos, forma-se um ambiente de opressão à vida dessas “minorias” e, como consequência, gera-se um desequilíbrio na sociedade, a afetando como um todo.

A intolerância, palavra e comportamento tão repetidos nos últimos meses, escolhe a dedo seu alvo: aquele que é diferente e ousa não silenciar. Não somente Marília Mendonça foi alvo de ataques, muitos outros artistas. No domingo, dia 7 de outubro, Moa do Katendê, integrante do Badauê e mestre de capoeira da Bahia, foi morto com 12 facadas nas costas por um eleitor do candidato. O assassinato bárbaro e tantas outras violências praticadas nas ruas nesta eleição são reflexos de um país que não está preparado para discutir ideias e propostas.

No dia 26 de setembro, o Papa Francisco postou no Twitter: “Rezemos para que no mundo prevaleçam os programas de desenvolvimento e não aqueles para os armamentos”. Isso foi o suficiente para que eleitores do candidato da extrema direita se achassem no direito de entrar na conta do Vaticano para agredir o representante máximo da Igreja Católica: “Burro”, “Fala com o ânus”, “Papa comunista do caralho”.

Dois dias depois, foi a vez de Madonna. Ao postar #elenão no Stories do Instagram, recebeu uma horda raivosa a xingando em inglês e português. Um eleitor comentou que ela estava em busca de “5 minutos de fama”. Além de subtrair 10 minutos da teoria de Andy Warhol, a de que, no futuro, todos teriam seus 15 minutos de fama, o internauta ainda ignorou o fato de Madonna ser a artista feminina mais bem-sucedida da história da música pop e a celebridade mais fotografada do Planeta.

A grita das mulheres é legítima. Pois seus corpos e direitos estão sendo usados como moeda de troca num país em galopante retrocesso comportamental. Na ficção, Offred, a protagonista do livro O conto da Aia, que deu origem à série The handmaid's tale, alerta: “Quando aniquilaram o Congresso, não acordamos. Quando culparam terroristas e suspenderam a Constituição, também não acordamos. Disseram que seria temporário. Nada muda instantaneamente”. Na trama ficcional, as mulheres perdem todos os direitos conquistados e vivem sob um novo regime totalitário e religioso surgido após um golpe e em meio a uma crise ambiental que provocou um deficit populacional. Na vida real, a história nos mostra que a luta pelos direitos civis precisa ser permanente.

Um exemplo: antes de 1979, as mulheres no Irã viviam como as ocidentais, usavam biquínis nas praias, iam a festas, cinemas, vestiam minissaias, calças jeans, podiam escolher livremente suas profissões. Depois que os aiatolás tomaram o poder, perderam direitos e ganharam castigos terríveis, como a morte por apedrejamento.

A foto do início deste texto mostra as iranianas antes da tomada do poder pelo aiatolá Khomeini. A foto abaixo registra a manifestação do dia 8 de março de 1979 no Teerã, Dia Internacional da Mulher, quando mais de 100 mil mulheres protestaram na capital iraniana contra as mudanças impostas pelo novo governo. Desde então, dentre outras imposições, elas passaram a ser obrigadas a usar véus pretos (xador) cobrindo a cabeça e boa parte do corpo. Até hoje.

No último dia 9, Roger Waters fez, em São Paulo, o primeiro dos sete shows que realiza no Brasil neste mês. O ex-baixista do Pink Floyd é um dos nomes do rock que mais se posicionam politicamente. E seu alvo principal é o fascismo, por conta da morte de seu pai durante a Segunda Guerra Mundial. Portanto, era mais provável que Waters não tocasse Another brick in the wall do que não abraçar a campanha #elenao. Ao ser exibida a hashtag no telão, o músico ficou surpreso ao ser vaiado por boa parte de sua plateia.

No segundo dia da turnê brasileira, ainda em São Paulo, para evitar os conflitos entre fãs como os ocorridos no dia anterior, preferiu usar a ironia como recurso. Por sobre o nome do candidato na lista de fascistas, ele colocou a frase “ponto de vista político censurado” e depois, em outro momento, a expressão “nem fodendo”, o que provocou risadas de muitos fãs.

Ao contrário de Marília Mendonça, que se retirou do conflito, o músico inglês preferiu manter-se firme no posicionamento e explicá-lo: “No show de ontem, não só no estádio, mas na saída, houve algumas coisas tristes. Mas o que sugiro é isso. É do interesse de nós, como comunidade de seres humanos, criar um futuro para nossos filhos e futuras gerações. Teremos de achar um jeito de usar nossa luta, para combater os porcos”, disse ele. Alguns fãs gritaram “Ele Não”. E ele respondeu: “Eu não faço ideia do que vocês estão gritando. Eu estou excluído dessa conversa. Mas ouçam: eu sinto o amor neste lugar e queremos que este futuro seja com o reconhecimento de que os direitos individuais são importantes. E todas as etnias, religião e nacionalidades merecem ter o básico dos direitos humanos”.

Roger Waters, assim como Madonna e o Papa, foi alvo da fúria dos eleitores do candidato. A atriz Maria Ribeiro também. E dela, num post no Instagram, veio uma ponderação simples e direta: “Nessa última semana, perdi uns mil seguidores por dia. Agora devo perder outros tantos. Mas coloco na balança. Eu gosto de ser amada, gosto dessa loucura aqui, e fico triste, e com pena, e às vezes sofro com as ofensas, mas, ao mesmo tempo, me sinto inteira falando o que eu penso. E gosto de dormir bem. Eu sou isso aqui. E gosto de me comunicar. E de me expressar. E de me sentir livre. Nem tudo na vida pode ser comércio, likes e popularidade”.

Perigoso é o mundo em que políticos e artistas vivem em busca da aprovação de uma maioria, a qualquer custo.



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*As opiniões expressas pelos autores não representam
necessariamente a opinião da revista Continente.

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