Mirante

O que aprendemos com João?

TEXTO Débora Nascimento

08 de Julho de 2019

João Gilberto, na praia de Ipanema, em 1959

João Gilberto, na praia de Ipanema, em 1959

Foto Divulgação

Ao sair de casa, num dia ensolarado em Juazeiro, o filho de Seu Juveniano e Dona Patu recebeu uma recomendação da mãe: “Joãozinho, não vá perder os sapatos novos”. – Sim, respondeu o menino aluado que vivia perdendo cadernos, lápis, canetas, coisas e observando o mundo… Aficionado por futebol, no meio do caminho, não resistiu ao convite dos garotos da rua para jogar uma pelada em um campinho próximo. Lembrando do aviso da mãe, achou por bem tirar os sapatos e enterrá-los. Corre para um lado, corre para o outro, ao final da partida, já não sabia mais onde havia “guardado” os sapatos. Voltou para casa descalço, à espera de uma reprimenda. Esse menino não aprende nunca!

O episódio integra o folclore joãogilbertiano, que reúne inúmeras histórias curiosas, engraçadas e até bizarras do pai da Bossa Nova. Esses causos, como o do gato que teria se suicidado pulando da janela do apartamento em Nova York, ao ouvir pela milésima vez o dono cantar/exercitar O pato, compõem o imaginário em torno do artista que, por vezes, até desviou a atenção de sua arte, reduzindo-o à categoria de excêntrico. Mas o episódio da perda dos sapatos simboliza especificamente aquilo que João Gilberto sempre foi: um desapegado das coisas materiais. Um homem solto/livre no mundo, apenas preso a um propósito: a perfeição na arte de tocar violão e cantar. “Cantar é minha razão de viver”.

Apaixonado por canções desde cedo, ele ouvia, nos alto-falantes públicos em Juazeiro, standards internacionais e intérpretes brasileiros, em especial, Orlando Silva, o cantor das multidões. Ainda era um garoto, quando demonstrou que tinha um dom especial: percebeu uma nota musical errada, extraída por uma organista em meio a um coro na igreja. Aos 14 anos, ao ganhar seu primeiro violão, Joãozinho passou a tocar e a cantar, muitas vezes embaixo do maior Tamarineiro da cidade, o repertório que ouvia. Integrou grupos vocais, mas não gostava da forma como os demais integrantes interpretavam as canções, com o vibrato que estendiiiia as leeeetras, e resolveu partir em carreira solo.

“Sentia que aquele prolongamento de som que os cantores davam prejudicava o balanço natural da música", afirmou João. E aqui cabe lembrar que, em meados da década de 1950, Jackson do Pandeiro quebrou a divisão rítmica de uma interpretação. "Eu podia mexer com toda a estrutura da música sem precisar alterar nada da música. Encurtando o som das frases, a letra cabia certa dentro dos compassos e ficava flutuando”. A ideia era pronunciar as palavras como se estivesse conversando. Então podia adiantar a frase e fazer com que coubessem duas ou mais num compasso fixo. Dentre as músicas que tocava e cantava obsessivamente, também em meados dos anos 1950, no banheiro da casa da irmã em Diamantina (Minas Gerais), em estudo que resultou na Bossa Nova, estavam as de Dorival Caymmi. Em especial, Rosa Morena.

Com ela, no seu trabalho de “recompositor” (como conceituou Luiz Tatit), o artista descobriu a importância dos espaços vazios. Algo que Caymmi criou intuitivamente vinte anos antes, mas não teve o estalo de explorar: “João Gilberto é um ourives nessa coisa de espaço vazio. (…) O João não tem ouvidos nem orelhas, ele tem outros aparelhos. Agora que estou me tocando, sou um boboca. Porque eu fiz e não achei. Quando eu fiz a joia, apagou a luz, caiu no chão, e o João acha no escuro. Olha que o João Gilberto foi descobrir que nessas zonas vazias estava a coisa”. Caymmi confessou, mais tarde, que gostaria de ter gravado suas composições como João Gilberto fez. Para ele, ninguém cantou tão bem suas crias quanto o pai da Bossa Nova. Ao ouvir, em primeira mão, o compacto Chega de saudade/Bim Bom, lançado em julho de 1958, Caymmi profetizou a Aloysio de Oliveira, então diretor artístico da Odeon: “Você descobriu uma mina de ouro!”.

Não demorou muito para que a família Caymmi e João Gilberto ficassem próximos. Tão próximos que ele até começou um namorico com Nana, logo interrompido pela ex-futura sogra, a ex-cantora mineira Stella Maris, casada com Dorival. “Basta um baiano em casa!”, ela advertiu. Os Caymmi integravam o rol dos sorteados por João para receber suas inconvenientes ligações de madrugada, em conversas sem fim. Stella era uma das pessoas com as quais ele, inclusive, buscava conselhos: Stella, eu tenho um show no Tijuca Tênis Clube, mas eu não vou. – João, você assinou contrato com eles? – Assinei. – Eles vão te pagar? – Vão. – Então, João, você tem que ir, meu filho. Você assinou contrato, eles vão te pagar, você não pode fazer uma coisa dessas, João. Não está certo. – Você acha mesmo, Stella? – Acho.

Segundo Roberto Menescal, João Gilberto tinha o dom de envolver todos os amigos e conhecidos nos seus problemas, nas suas questões. Os dois músicos se conheceram no dia de um aniversário de casamento dos pais de Menescal. João Gilberto chegou no lugar sem conhecer absolutamente ninguém e conseguiu convencer Menescal, filho dos anfitriões, a abandonar a festa dos pais e só voltar três dias depois. Menescal saiu numa jornada, apresentando o baiano a várias pessoas no Rio de Janeiro.

Começou ali uma intensa e breve amizade. Ficaram amigos inseparáveis. Todo dia João ligava para saber o que iam fazer. Sem dinheiro, pedia coisas emprestadas e não as devolvia. A camisa usada na capa de Chega de Saudade era de Menescal. Um dia, em 1962, essa relação sufocante teve fim. Menescal disse que precisava conversar, que precisava de um tempo pra si, como se estivesse terminando um namoro. Absolutamente desatento às regras sociais, João não entendeu o porquê e ficou chateado porque o ex-amigo não queria atender suas ligações no meio da noite. Menescal me contou isso numa entrevista, publicada em agosto de 2017 na Continente, e completou: “Se bobear, a gente fica até de noite conversando sobre João Gilberto”.

“Cuidado com João Gilberto”, alertou o músico ao jornalista alemão Marc Fischer, que escreveu um cativante livro sobre a tentativa de entrevistar o cantor ou de simplesmente ouvi-lo tocar seu violão. A busca virou Ho-ba-la-lá – À procura de João Gilberto. Após finalizado, o repórter se matou em abril de 2011 e não pode presenciar a ótima recepção ao seu trabalho, lançado em dezembro daquele ano e que originou o documentário Onde está você, João Gilberto? (2018), em que o diretor franco-suíço Georges Gachot reproduz os passos de Fischer – um dos diversos profissionais da área musical aficionados pelo baiano.

A “mina de ouro”, à qual se referiu Dorival Caymmi, renderia o movimento musical que modificou a música brasileira, revelando ou sedimentando diversos nomes, como Tom Jobim, Vinicius de Moraes, Nara Leão, Roberto Menescal, Ronaldo Bôscoli, Carlinhos Lyra, Sérgio Mendes... Além de influenciar vários outros artistas da próxima leva da música brasileira, como Caetano Veloso, Chico Buarque, Gal Costa, Gilberto Gil, João Bosco, Edu Lobo, Francis Hime, Milton Nascimento, Marcos Valle, Jorge Ben, Roberto Carlos, que, na sequência, também influenciaram outros, dando continuidade ao que Caetano chamou, em 1971, de “linha evolutiva da música popular brasileira”.

A bossa nova dividiu a música nacional em antes e depois. João pegou o samba e revolucionou a música no país. Antes, o gênero musical que predominava era o samba-canção. A bossa nova trouxe uma renovação estilística. Não estava mais em destaque a letra deprê da dor-de-cotovelo, mas um chega de saudade. Era o gênero do amor, da alegria, do encontro, da satisfação, da praia, do mar. Virou a trilha sonora para os anos prósperos e otimistas de Juscelino Kubitschek. Transformou-se na música da juventude urbana de um Rio de Janeiro pleno de beleza e boa vibração, uma cidade referência para todo o país, o símbolo do Brasil. A fama da bossa nova passou a ganhar o mundo, mas o seu ápice e declínio foi o show no Carnegie Hall, naquele 1962 do final da amizade entre João e Menescal.

“O concerto no Carnegie Hall marcou também o fim da até então engajadíssima comunidade de bossa-novistas que, no Rio, escrevia canções e fazia música todo santo dia. João e Astrud se mudaram para Nova York e logo se separaram. Sérgio Mendes e Carlos Lyra foram para Los Angeles. Jobim gravou com Sinatra. No Brasil, mandavam os militares. Na prática, o grupo se dissolveu em um único dia”, analisa Marc Fischer, em Ho-ba-la-lá. Segundo o jornalista, que entrevistou o amigo de João, Otávio Terceiro, o pai da bossa nova não perdoou Tom Jobim, por este não tê-lo convidado para participar do disco com Sinatra, o cantor mais famoso do mundo. “João era quem sabia cantar e tocar violão! O violão de Jobim era uma piada! Mas ele só quis saber de ficar famoso no mundo inteiro e traiu seu inventor com Sinatra”. Fischer retruca: “Sinatra era um mafioso; João um perfeccionista. João teria obrigado Sinatra a ensaiar centenas de vezes, antes de cantar cada nota. Os dois teriam se matado”.

Em 1962, após o desorganizado show da bossa nova no Carnegie Hall, que quase destruía a reputação do gênero musical no exterior, João Gilberto não voltou a morar no Brasil. Foi colher os bons frutos de sua performance, que teve na plateia Miles Davis, Frank Sinatra, Ella Fitzgerald, Dizzy Gillespie, Tony Bennett, Stan Getz. Com este gravou, em 1963, o disco Getz / Gilberto, álbum que, por pouco, não termina nos porões da gravadora Verve, mas que, ao ser lançado, virou um fenômeno nos Estados Unidos.

A gravação de The Girl from Ipanema, com interpretação da doce voz da primeira esposa de João, Astrud Gilberto, ganhou fama internacional e virou um standard. O disco recebeu quatro grammys, dentre eles, o principal, Álbum do Ano – até hoje, a maior façanha de um artista brasileiro na premiação. João levou a categoria Melhor Cantor. A estatueta, ele não sabia onde estava. O casamento com Astrud durou pouco, logo ele se apaixonou por Miúcha, irmã de um dos seus fãs, Chico Buarque. Com ela, teve a filha Bebel Gilberto, que, assim como Miúcha e Astrud, também se tornou cantora por influência dele.

Coincidência ou não, o cantor da trilha sonora dos anos dourados de JK só retornaria de vez ao Brasil em 1979, ano que marcaria a reabertura democrática, com a assinatura da Lei da Anistia, em agosto. Naquele ano, em que parte do Brasil se rendia às pistas das discotecas, foi marcado um show da volta do cantor no Canecão. O espetáculo, que já havia vendido todos os ingressos, foi cancelado pelo artista. Ele não estava satisfeito com o equipamento de som. “João é a síntese do violão brasileiro. É um pouco nervosinho, é verdade, mas a gente tem mais é que aguentar, pois isso é coisa mesmo de gênio”, defendeu outro gênio, Hermeto Pascoal. Mas boa parte da imprensa não perdoou. João também cancelou outro show, em 1988, porque estava gripado. Tendo que levantar o dinheiro para pagar a multa do contrato, ele, que não bebia, aceitou fazer o comercial da Brahma Chopp, dirigido por Walter Salles no Teatro Municipal, com fotografia de Affonso Beato.

E, assim como aconteceu com o samba-canção, que perdeu espaço para a bossa nova, a bossa nova perdeu o seu lugar de destaque no Brasil para o Tropicalismo, para as composições dos festivais da canção, que estabeleceram de vez o gênero MPB.

No início dos anos 1970, João foi fundamental para uma das bandas mais criativas do país, os Novos Baianos. Partiu dele a ideia de o grupo tocar compositores brasileiros e não rock, como no primeiro disco, É ferro na boneca (1970). Brasil pandeiro, a faixa de abertura do álbum Acabou chorare (1972), foi sugerida por ele. E o título do álbum veio de uma frase de Bebel Gilberto quando era criança. Ela misturava o português e o espanhol, da época em que os pais moraram no México.

Em 27 de dezembro de 2018, Bebel perdeu a mãe, a cantora Miúcha, aos 81 anos, e no sábado, 6 de julho, o pai, João Gilberto, aos 88 anos. O casal havia se separado em meados da década de 1970 ("Não lembro a data em que dissemos assim, vamos nos separar", contou Miúcha). Mas continuaram amigos desde então. Ela era uma das raras pessoas que tinham acesso a ele. Quando a cantora estava internada, João pediu que alguém colocasse o celular no ouvido da ex-esposa e falou: “Sem você, Heloisinha, com quem eu vou cantar? Você é o amor da minha vida”. Para se despedir dela, fez uma concessão. Saiu de casa e foi até o Hospital Samarita, sem ser reconhecido.

Ele, que sempre foi introspectivo, do tipo de artista que mal fala com a plateia, não fazia mais shows desde 2008 e vivia trancado no seu apartamento, onde não entravam nem médicos para fazer consultas, se orgulhava de nunca ter sido internado. Mas a saúde foi piorando, somada aos problemas decorrentes da falência financeira, numa história complexa, que tem a ver com a sua completa falta de traquejo com burocracia, coisas da vida real. A gestora de sua carreira era Claudia Faissol, com quem teve a filha Luisa, de 15 anos.

Em 1996, João assinou um processo contra a EMI por esta ter lançado, sem sua permissão, em formato de coletânea e em CD, seus três primeiros discos seminais, Chega de saudade (1959), O amor, o sorriso e a flor (1960) e João Gilberto (1961) e com uma remasterização repleta de reverb. O caso se arrastava até que Claudia Faissol fez um acordo com o banco Opportunity, que adiantaria 10 milhões para o artista em duas parcelas e ficaria com 50% da indenização a ser paga pela gravadora e 60% do valor de futuras ações. A indenização, estimada em R$ 2 milhões, saltou para R$ 179 milhões. Mesmo com esse adiantamento, quatro anos depois, João ainda tinha 1,5 milhão em dívidas.

A interdição, pedida por Bebel Gilberto em 2017, era para que o pai não mais assinasse papéis aos quais ele simplesmente não lia. Havia uma dívida de um contrato de shows que ele não cumpriu, pois não estava em condições físicas. O cachê havia sido adiantado. Mas ninguém sabe onde está esse dinheiro. Havia também dívidas de condomínios não pagas. O que se sabe é que João Gilberto, desapegado ao consumo e à ostentação, não comprava nada. Vivia apenas para tocar seu violão. A casa era uma bagunça. Enquanto isso, fora da órbita de seu universo particular, seu nome circulava na imprensa não apenas como o gênio da música brasileira, mas como o homem que devia milhões.

Em 2011, bem antes desse escândalo estourar na imprensa no final de 2017, o professor Jon Hendricks, da Universidade de Toledo, em Ohio, observou o comportamento do baiano de forma perfeita, quase ao modo de Antonio Maria: “O João Gilberto é uma pessoa que precisa se proteger das coisas pequenas da vida. Ele não pode ficar perdendo tempo com as coisas mesquinhas. Tanto nos seus shows quanto no estúdio, ele vai direto ao ponto. É um sujeito especial, que jamais conta vantagem. Muito pelo contrário, ele nunca fala de si mesmo, de seus feitos. Ele não tem ego e não faz nenhum tipo de concessão”. Maria escrevera em 1959: “João Gilberto é aquele violeiro do cais, que Jorge Amado inventou em Jubiabá e Capitães de areia. Baiano, como ele. Suave e descansado como devem ser todos os violeiros do cais da Bahia”.

“Meu trabalho foi sempre com a música brasileira. Com o samba, nossa música infinita. Aquilo que as pessoas chamam de bossa nova e que eu chamo de samba, de música brasileira – ampla, rica, infinita, sobre a qual o artista pode criar o seu fraseado pessoal. Fazer essa música lá fora é fácil: eles nos respeitam. Vêm e vão gerações, e o amor e a admiração aumentam pela nossa música. Muito mais do que aqui no Brasil. Esta é a verdade: o respeito maior é deles e não nosso. O Brasil ainda não se apercebeu da importância que lhe é dada lá fora, em termos de música. É por isso que eu não penso em bossa nova. Penso em samba. Música brasileira”, dissera João Gilberto, que, no começo dos anos 2000 finalmente foi ao Japão, onde foi ovacionado. Ao final do primeiro show, recebeu 25 minutos de aplausos. “A bossa nova no mundo é um negócio infiltrado. Graças a isso, o Brasil não é um país calado como Honduras. Tem uma música achada, exportada, decididamente aprovada”.

João Gilberto negava a influência do jazz na bossa nova, como também negou Tom Jobim nesse comentário: “Quando esse pessoal dizia que a harmonia da bossa nova era americana, eu achava engraçado, porque essa mesma harmonia já estava em Debussy. Não era americana coisa nenhuma. Chamar o acorde de nona invenção americana é um absurdo. Esses acordes de décima primeira, décima terceira, alterada com tensões, com adendos, com notas acrescentadas, isso aí você não pode chamar de americano. (…) O norte-americano pegou a bossa nova porque achou interessante. Se fosse cópia do jazz, não interessaria. Cópia do jazz eles estão cansados de conhecer. Tem jazz sueco, jazz francês, jazz alemão”. Em 1966, a conceituada revista Downbeat ressaltou: “Há quarenta anos ninguém influenciara a música americana como o faz João Gilberto”.

“Acredito que o fato de João Gilberto cantar em português não influenciou a sua popularidade. Mesmo que cantasse em inglês, ele não seria popular no sentido de que ele não estaria disposto a fazer concessões musicais, como estrelar grandes turnês, montar um repertório banal ou gravar um disco atrás do outro”, analisou o compositor, maestro e arranjador norte-americano Johnny Mandel.

Em novembro de 1959, o título de uma entrevista do cantor à revista Radiolândia atesta a correção da tese de Mandel: “João Gilberto, nova personalidade da música popular, explica que não é fácil vencer”. O que seria vencer para João Gilberto? Ser famoso? Receber elogios? Ficar rico? O artista explica: “Cantar com simplicidade exige horas de estudo”. Apenas isso.

A sua busca sempre foi pela perfeição. Não gravava uma música sem antes ensaiá-la centenas de vezes. Por isso, em 60 anos de carreira fonográfica, lançou apenas 12 álbuns de estúdio. Quem assistiu a um show de João Gilberto, como tive a sorte assistir, na reinauguração do Teatro Santa Isabel, em 2000, testemunhou não somente o perfeccionismo, mas essa perfeição alcançada e demonstrada ao vivo. A plateia, em silêncio absoluto, quase não respirava. O ar condicionado desligado, para não desafinar as cordas do violão, era um detalhe irrelevante diante do acontecimento raro. Impressionante ver e ouvir a maneira como ele brincava com a interpretação, com as palavras, atrasando ou adiantando o fraseado com relação ao violão sem perder a precisão rítmica, e a harmonia a envolver tudo isso.

“Apenas procuro cantar sem prejudicar o sentido poético e musical das composições. É assim como tirar os excessos, seguir o curso natural das coisas. Dar as notas de um tal jeito que não prejudique o sentido da poesia, frisar aquelas palavras que têm a força poética. Tudo isso de modo a não deixar o ouvinte desinteressar-se pelo sentido daquilo que se canta... Procuro que a voz saía idêntica à nota musical, brandamente, com naturalidade, sem esforço artificial... Procuro casar as palavras com os acordes. A voz faz também a vez do instrumento, caminhando junto com ele”, definiu a sua mágica.

O pesquisador Zuza Homem de Melo, em texto para o Estado de São Paulo, no último dia 7 de julho, destrinchou os truques do mágico: “Ouvir João Gilberto requer aprendizado. Requer concentração apuradíssima para se usufruir de tudo ao mesmo tempo: a precisão micrométrica do violão, a identificação das notas formando acordes, as sutis alterações harmônicas, o balanço rítmico irresistível, a destreza de seus dedos acertando as cordas do braço do violão, a posição da mão direita no jogo de vai e vem, a justeza equilibrada entre o volume do instrumento e da voz, a dicção impecável, a emissão na medida certa, a minúcia das quase imperceptíveis mudanças na divisão, as defasagens rítmicas e alterações melódicas, a argúcia dos silêncios, a supressão do supérfluo, a valorização dos esses, dos erres, das consoantes, das vogais, do sentido das palavras, das profundas notas graves, a capacidade de fazer vir à tona a intenção do verso, a delicadeza em mostrar a música como nunca se ouviu antes. É o requinte para a elevada depuração para o ouvido humano. Saber ouvir João Gilberto, eis a questão”. Eis a questão: a bossa nova, que já foi a música da juventude brasileira, conquistará novamente a atenção do jovem, hoje, em sua maioria, ouvinte disperso e apressado de Spotify e YouTube?

“Uma das experiências mais curiosas que já fiz com o violão foi tentar acompanhar João Gilberto. Não. Não foi com ele ao vivo. Na realidade foi acompanhar uma gravação do cantor. Do tipo passo a passo. Vamos imaginar você seguindo as pegadas de alguém na areia e colocando seus passos exatamente em cima dos passos da pessoa seguida”, escreveu o violonista Turíbio Santos no artigo João Gilberto, o caçador da MPB, em 3 de junho de 2001, no Jornal do Brasil. “Assim, primeiro descobri a harmonia do João. Precisa, impecável, com soluções indiscutíveis. Trabalho de ourives. Depois desvendei (ou tentei) desvendar o ritmo. Os problemas foram se complicando. A invenção do João é imbatível e o pior: sua execução de uma perfeição que beira as raias do impossível. Maior supresa ainda: ele extrai mensagens polifônicas (várias vozes, para os que não sabem) do seu violão, como se cada corda fosse tocada por um instrumentista diferente. É isso mesmo. Aquele blem-blem que as pessoas utilizam para tentar ridicularizar a bossa nova, no caso dele, é a soma de conhecimentos oriundos de uma prática, uma aplicação, um treinamento intenso. Coisa de João Gilberto”.

E o que seria coisa de João Gilberto? Passar horas treinando o violão, chegando ao limite da exaustão de suas mãos. Para sanar o problema que quase o impediu de continuar tocando em 1963, o médico sugeriu que jogasse pingue-pingue. E o que João fez com essa recomendação que salvaria a sua arte? Virou um mestre do pingue-pongue. Demonstrou, com sua paixão pela música, a força do comprometimento real com aquilo que se propõe a criar. Não pelo retorno financeiro, mas simplesmente pelo amor ao retorno, ao que chegava da forma procurada e esperada ao seu ouvido. “Somente a qualidade decide sobre a perenidade”, afirmou ao Libération, em 1989, complementando: “Aquilo que é bom não morre nunca”.

E é bastante simbólico que aquele menino aluado de Juazeiro parta, agora definitivamente, de um mundo cada vez mais disperso, que alimenta a cultura da celebridade, da superficialidade e do efêmero, em detrimento da qualidade artística, em uma época sombria, representada pela brutal violência de um Rio de Janeiro falido e corrupto, que significa o contrário do otimismo ensolarado de 60 anos atrás, quando a bossa nova nasceu e idealizou, a partir de ondas sonoras, um país (bim) bom de se viver e de se orgulhar.

“Ah, como era bom”, canta Caetano, em Saudosismo. “Mas chega de saudade. A realidade é que aprendemos com João. Pra sempre.”

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*As opiniões expressas pelos autores não representam
necessariamente a opinião da revista Continente.

 

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