Outdoor em Taubaté, no interior de São Paulo
FOTO Reprodução
Fazia muito tempo que eu não via uma edição do BBB. Só acompanhei as duas primeiras. Não vi, inclusive, aquela que nos revelou Jean Wyllys – provavelmente o melhor legado do programa ao Brasil. Quando o professor e jornalista baiano venceu a competição em 2005, Jair Bolsonaro, deputado federal do Rio Janeiro, ainda era um completo desconhecido para o resto do país. Bons tempos. Para ele e para nós. O sujeito tirava aquele cochilo gostoso no plenário do Congresso Nacional e apenas saía de sua inércia para discursar em prol de militares ou milicianos, como Adriano da Nóbrega, preso naquele mesmo ano por acusação de homicídio. Apesar de fanfarrão, parecia ser uma presença inócua, pois era o mais típico representante do chamado baixo clero, absolutamente irrelevante – como continua a ser, com a diferença que hoje, pouco mais de 15 anos depois, ocupa a cadeira de presidente da República e realiza ações deliberadamente negligentes na pandemia do novo coronavírus, que contribuíram para ceifar, até agora, 250 mil vidas, só para citar o mais gritante dano de seu mandato.
Neste contexto surreal e angustiante, chega a 21a temporada do BBB, um programa cuja ideia é reunir pessoas desconhecidas em um longo confinamento dentro de um mesmo ambiente – assemelhando-se à nossa realidade aqui fora – “aqui fora” é apenas modo de dizer, pois quem pode quarentenar e tem consciência, permanece em casa o máximo de tempo possível. Essa edição do reality show vem sendo uma das bem-sucedidas. A produção obtém um ótimo retorno de audiência – na última noite de terça-feira (23), dia da eliminação de um participante, alcançou pico de 43 pontos, índice da final da Copa do Mundo de 2018, para se ter uma ideia do feito. O sucesso deve-se ao somatório de ingredientes perfeitos: uma imensa plateia confinada em casa, repercussão maciça nas redes sociais e na imprensa, desavenças infinitas entre os participantes e uma jogadora chamada Karol Conká, a esperada eliminada do tal dia.
Retomando a primeira frase deste texto: fazia muito tempo que eu não via o BBB. Mas quando o Festival Rec-Beat, em 2 de fevereiro, anunciou o cancelamento da participação de Karol Conká no evento online, por conta de seu mau comportamento no programa, resolvi procurar saber o que estava acontecendo. No YouTube e nas redes sociais, encontrei alguns vídeos da cantora na "casa". Sim, eram várias demonstrações de bullying, xenofobia, machismo e arrogância. Ver alguns desses vídeos, em que ela arremeda o sotaque da advogada paraibana Juliette Freire e humilha o ator e poeta Lucas Penteado, só para citar dois exemplos, provoca revolta e, sobretudo, decepção, para os que gostavam dela como artista e apresentadora do GNT, sempre bem-humorada e gentil – sem contar com o fato de que sua presença na TV era um contraponto aos muitos apresentadores brancos do canal.
A última vez que tinha visto Karol Conká na TV foi antes do kancelamento com k, em uma participação como convidada do Papo de Segunda (GNT), no ano passado, no contexto da pandemia. Ela estava, como sempre, à vontade, articulada, divertida, uma pessoa admirável – bem diferente de sua performance no BBB. Emicida, um dos integrantes do programa, inclusive, postou no Twitter, no começo de fevereiro deste ano: “Meu deus, Karol…”. O tuíte reacendeu outra treta, desta vez com a rapper Flora Matos, que chamou o compositor de cínico, pois, segundo ela, o rapper saberia quem era a verdadeira Karol Conká, mesmo antes do BBB.
Independentemente dos imbróglios do rap nacional, o que se dizia nas redes sociais é que Jaque Patombá (“já que é pra tombar”, do seu hit Tombei), o apelido que ganhou dos telespectadores, conseguiu unir o país: ricos e pobres, indies e sertanejos, brancos e negros, o sertão e o litoral, comunistas e neoliberais. O Brasil polarizado deu as mãos num só propósito: #forakarol Com 100%, se possível. Foi 99,17% (mais de 280 milhões de votos), quase. Todos queriam sua eliminação, menos Boninho – afinal, a cantora vinha alavancando a audiência por capitanear a maior parte das tretas do programa, que reúne anônimos, influencers e artistas. Inclusive essa mistura vai contra a ideia original do reality show, que antes só apresentava desconhecidos do grande público. Agora o BBB juntou o seu próprio formato ao de A Fazenda e mais a fama das celebridades de redes sociais.
O programa, cujo objetivo para os jogadores é ganhar R$ 1,5 milhão, costuma mexer com a ambição e o espírito competitivo destes e, com isso, revelar comportamentos surpreendentes, como os reprováveis de Karol Conká, ou a rumorosa e nobre saída de Lucas Penteado, que desistiu de lutar pelo prêmio, para manter sua sanidade mental, abalada com a perseguição promovida pela dupla Lumena e Karol, sendo a gota d'água o questionamento do beijo que ele e o concorrente pernambucano Gilberto Nogueira deram em uma das festas realizadas no programa.
Apesar de algumas pessoas do lado de fora, como sua ex-produtora, terem dito que Karol Conká já seria uma pessoa de caráter duvidoso antes mesmo de sua participação no programa, é preciso ter em mente que o lugar de confinamento tende a criar conflitos, seja ele uma cela de penitenciária, uma casa de BBB ou uma residência. Não é à toa que neste período de quarentena vêm sendo notificados muitos casos de violência doméstica e divórcios em diversas cidades brasileiras. O BBB reproduz essa tese: coloque pessoas elegantes e corteses em um jantar e não as deixe sair por muito tempo. Elas começarão a perder os modos e cairão as máscaras da civilidade. Como no roteiro de O Anjo Exterminador, de Luis Buñuel.
Colocar pessoas diferentes juntas em um mesmo lugar e, sobretudo, numa situação de competição em que está em jogo R$ 1,5 milhão, vai fatalmente gerar atrito. As puxadas de tapete dos companheiros vistas na disputa do BBB21 também lembram a narrativa do filme O tesouro de Sierra Madre (1948), obra-prima de John Huston, que reúne três homens que se não se conhecem, num lugar inóspito, em busca de um tesouro escondido. À medida que fazem a procura, o comportamento deles vai se modificando. Sem contar que, no caso do programa, vários aspectos da produção (iluminação, decoração, dinâmica, cotidiano, alimentação, muita bebida alcoólica e provas) são planejados para provocar desconfortos e desavenças.
Claro que todos estavam sob o mesmo teto e mesma pressão. Mas cada um reage de forma diferente a uma situação específica. Karol deu muitas amostras de grosserias, pequenas maldades e prepotência. Outros não. Parece que a ambição dela foi potencializada pelo fato de ser uma liderança natural na competição – e uma forte candidata a vencê-la. Talvez a consciência disso tenha se tornado a sua ruína, na medida em que sua resposta a erros de participantes, como Lucas Penteado e Juliette Freire, se transformou em over reacting, bullying e tentativa de cancelamento. Pode-se até afirmar que fazia parte do jogo, mas um jogo sujo, de qualquer forma. E, diante da lista de vencedores anteriores, o público já demonstrou que não vê com bons olhos os competidores sem fair play. Já bastam os vilões da vida real. Os ganhadores costumam ser pessoas agradáveis e comedidas, como Jean Wyllys (2005), Gleici Damasceno (2018) e Thelma Assis (2020).
Em entrevista após a eliminação recorde de 99,17%, comemorada com gritos nas janelas Brasil afora, como se a seleção brasileira tivesse vencido a Copa do Mundo, ela afirmou que tiveram muita influência nos seus atos a bebida e os traumas. Disse que vai procurar ajuda profissional para tratar sua animosidade. Melhor pra ela que tenha reconhecido os erros e pedido desculpas, pela TV, aos envolvidos e seus familiares – a família de Lucas Penteado estava cogitando processá-la por tortura psicológica.
O saldo da presença de Karol Conká nesse programa significa realmente um baque, ou um tombo, para ela e, com consequências possíveis para o meio artístico, o movimento negro e feminista. Para os anônimos que saíram da casa com altos índices de rejeição do público, o impacto não é tão grande quanto para um artista, principalmente sendo mulher e negra. Karol teve que batalhar duplamente para conquistar o sucesso que tinha até entrar para o time do BBB21. Fica a pergunta: tudo o que ela alcançou na carreira será perdido por conta de um mês em um programa de TV? Naquele mesmo dia do seu cancelamento no Rec-Beat, o GNT também havia cancelado toda a exibição do televisivo Prazer, feminino, apresentado por ela e a ex-BBB Marcela McGowan.
No dia em que Karol escapou de seu primeiro paredão, antes de dormir, entrei naquela área geral de busca do Instagram e apareceu um vídeo de um homem fazendo de conta que batia com a cabeça na parede e na legenda dizia algo como o “Brasil está revoltado por Karol não ir para o paredão”. Parecia engraçado. No outro dia, fui rever o vídeo, mas desta vez com o áudio. E o homem dizia, em tom de suposta brincadeira para alguém que o filmava: “Não acredito que aquela nega não vai para o paredão”. Ele poderia ter dito “aquela mulher”, mas o destaque “nega” aciona um alerta de que essa raiva pela postura lamentável da artista no programa cai como uma luva nos racistas e fascistas. Imagine esse Brasilzão que votou em Jair Bolsonaro vendo uma mulher negra, bissexual, esquerdista, “feminazi”, cometendo erros gritantes em rede nacional…
Mais do que a vergonha por suas falas e posturas agressivas, Karol já disse estar arrependida até mesmo de ter entrado no Big Brother. Sua sorte talvez seja o fato de estarmos, “aqui fora”, confinados. A queda no número de contratos para shows e demais convites pode não ser tão sentida neste momento. Mas é provável que poucos eventos arrisquem contratá-la, para não serem, eles próprios, cancelados por tabela. Alguns poucos corajosos, como Roberta Martinelli, do Cultura Livre, mesmo antes da eliminação da cantora, havia antecipado, em post no Instagram, que não vai descartá-la do seu programa.
Nesse ponto, cabe um questionamento, que não se trata de “passar pano” ou trazer a recorrente discussão “separar o artista da obra” (bem mais difícil no caso de Karol, porque ambas, obra e discurso da artista, se fundem), mas, quantos dos nossos ídolos escapariam ilesos a um confinamento na casa do BBB? Uma passada rápida na biografia de nomes de peso do universo cultural já é o bastante para nos trazer histórias arrepiantes. No último ano de sua vida, John Lennon revelou, arrependido, que, na juventude, bateu em namoradas; Roman Polanski estuprou uma menina de 13 anos; Johnny Depp foi acusado de violência doméstica; Charlie Chaplin casou-se com três mulheres menores de idade; Alfred Hitchcock assediou e acabou com a carreira da atriz Tippi Hedren. A lista é grande...
Após algum tempo – tempo que não sabemos ainda qual –, talvez haja um mercado e um público dispostos a perdoá-la e tê-la de volta. Na nossa sociedade, leva-se praticamente uma vida inteira para construir uma reputação e pouquíssimo tempo para vê-la destruída. Reconstruí-la é tarefa árdua – esse prêmio pode ser até mais difícil do que conseguir ganhar R$ 1,5 milhão no reality show.
Muito se fala da futilidade do BBB e que o Brasil deveria estar mais preocupado com a pandemia. Concordo. E que Bolsonaro era quem deveria estar no “paredão” e ser “cancelado”. Concordo. Estamos em uma segunda onda descontrolada, sem vacinas para todos, com hospitais lotados, filas de espera por UTI, duas variantes mais transmissíveis circulando pelo país e uma população que insiste em não usar máscaras e aglomerar. Em meio a uma situação de extrema incerteza e sem perspectiva de saída, as pessoas estão ansiosas e depressivas. Por isso, qualquer escapismo que lhes tire um pouco do estado de angústia e ansiedade deve ser compreendido.
Não acredito totalmente na tese da maldade dos que votaram no ocupante da cadeira de presidente da República. O índice de reprovação dele é bem menor do que o de Karol Conká talvez porque muitos brasileiros estão desinformados sobre o que ele anda, de fato, aprontado nesse dois anos de mandato. Nem todo mundo tem acesso à informação de qualidade e confiável e à internet. Na terça (23), o Brasil já conseguiu o seu #forakarol. Por enquanto, a única vingança que a nação #forabolsonaro pode contar veio, em 2016, da saliva de um ex-BBB. Obrigada, Jean.
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