Mirante

Não há Batman na vida real. Mas Arthur Fleck, sim.

TEXTO Débora Nascimento

17 de Outubro de 2019

FOTO Divulgação

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Psicopata. Sociopata. Essas palavras vêm sendo bastante usadas ultimamente. São especialmente direcionadas a políticos, que, na menor das simplificações, não sabem interpretar seus papéis de governantes. Essas palavras quase conseguiram aposentar um adjetivo comumente dirigido a políticos que nos envergonham: “Palhaço!” Os palhaços estão em alta. O Brasil que o diga. Mas não os nobres artistas maquiados e de roupas coloridas que sobrevivem de alegrar as pessoas. Representações de palhaços protagonizam duas produções cinematográficas bem-sucedidas nas bilheterias e que abordam clowns assassinos: It – Capítulo dois e Joker. A primeira foi baseada na obra de Stephen King (inspirada em história real); a segunda, no famoso vilão da saga de Batman.

Ao contrário das pirotecnias que costumam disfarçar o raso roteiro dos filmes de heróis de HQs que infestam maciçamente os cinemas, ocupando a maioria das salas de exibição ao redor do mundo, Joker leva o vilão ao “divã”. Não é um filme de ação, mas um drama que problematiza a origem da vilania do personagem. Se o surgimento mais difundido do Coringa afirma que sua loucura deriva do fato de ele ter desfigurado sua aparência ao cair em um tanque com produtos químicos, em Joker seu despontar deve-se aos problemas familiares e à inadequação a uma sociedade egoísta, violenta, desigual e caótica. A ambientação ocorre na fictícia Gotham City, mas poderia ser a Nova York dos anos 1970 (a fotografia dá esse tom retrô), retratada em filmes como Taxi Driver (1976) e Embalos de sábado à noite (1977).

Em um ambiente desolador de pobreza, desemprego e desamparo, Arthur Fleck alimenta o sonho de ser um comediante de stand-up. Enquanto não consegue sua grande chance, ele tenta se virar nos bicos como palhaço, trabalha divulgando promoções de pequenas lojas e anima crianças internadas em hospitais. E sempre se dá mal. A situação política, econômica e social de Gotham City é angustiante e pode representar bem a realidade de diversas cidades, onde índices de desemprego fazem com que cidadãos tentem garantir o mínimo de dignidade em subempregos.

Ao retratar o sonho de Arthur e seu fascínio pelo apresentador Murray Franklin (Roberto De Niro), Joker faz uma conexão transversal com O Rei da Comédia (Martin Scorsese, 1982), no qual De Niro interpretou um psicopata aspirante a humorista, obcecado por um apresentador de TV, interpretado por Jerry Lewis.

O cineasta Todd Phillips, experiente na direção de comédias, dentre elas o megassucesso Se beber não case (2009), demonstrou talento para orquestrar esse trabalho que está longe de ser uma obra de humor, embora tenha os seus momentos cômicos. O grande trunfo de seu filme, vencedor do Leão de Ouro do Festival de Veneza em setembro, além do roteiro original, é a atuação de Joaquin Phoenix.

De irmão mais novo de River Phoenix (1970-1993), o astro mirim porto-riquenho, radicado nos Estados Unidos, se transformou em um respeitável ator de método, de entrega total aos papéis, como a interpretação de Johnny Cash em Walk the line (2005) ou as atuações em O Gladiador (2000), O Mestre (2012) e Ela (2013). Considerado um “ator difícil”, daqueles cheios de idiossincrasias, suas histórias de bastidores, somadas ao documentário controverso Eu ainda estou aqui (2010), tendem a se tornar lendárias à medida que ele vai galgando mais degraus em Hollywood.

A propósito, os degraus em Joker são como uma metáfora para a vida de Arthur Fleck. O esforço físico para subir a escadaria que leva até o seu prédio decadente expressa o esforço mental para manter-se são e partícipe da sociedade. No momento em que ele desiste de tudo e planeja um suicídio ao vivo na TV, em frente à plateia de Murray Franklin, sua descida na escadaria, agora vestido como o Coringa, representa a ida ao fundo do poço. Mas Arthur demonstra alegria. Porque parece que finalmente vai se livrar do estorvo que é sua vida. Phoenix, em câmera lenta, desce os degraus dançando, em imagem que remete ao amigo Heath Ledger (1979-2008) cantando e dançando Can’t take my eyes off you, na famosa cena da comédia romântica 10 coisas que eu odeio em você (1999).

Dez anos depois, em 2009, Ledger ganhou o Oscar póstumo de Melhor Ator Coadjuvante por sua interpretação do Coringa de Batman – O Cavaleiro das Trevas, no qual ofuscou o ator principal, Christian Bale. Agora o personagem novamente promete render outro Oscar. Dessa vez, o de Melhor Ator a Phoenix – que já havia concorrido à estatueta em 2006, por Walk the Line (o vencedor foi Philip Seymour Hoffman, por Capote) e em 2013, por O Mestre (venceu Daniel Day-Lewis, por Lincoln).

No programa de auditório de Murray Franklin, Arthur Fleck desiste de dar cabo em sua vida e tira a do apresentador, com tiros do revólver que ganhou de um colega do subemprego – este também foi assassinado como vingança por ter traído Arthur. Ao escapar do carro da polícia, em meio a uma convulsão social nas ruas, se vê surpreendentemente reconhecido por uma multidão que enxerga nele um herói, após ter confessado, no programa, o assassinado de três arrogantes jovens ricaços num metrô.

Sua redenção é o aplauso da população que usa máscaras de palhaço, em efeito semelhante à rebelião nas ruas em V de Vingança (2005), outro caso raro de obra baseada em HQ que conseguiu escapar à superficialidade dos filmes do gênero. Apenas como vilão, Arthur deixou de ser alguém invisível numa sociedade corrompida. E não consegue esconder sua felicidade ao ser finalmente reconhecido. A multidão enfurecida com os poderosos da cidade passa a ovacionar um gesto de violência gratuita, que é entendido como uma resposta política ao desamparo que o povo enfrenta. Qualquer semelhança com a realidade pode não ser mera coincidência. Lembram das imagens das comemorações no Oriente Médio à queda das Torres Gêmeas, em 2001?

Arthur Fleck não tinha intenção política ao assassinar os três yuppies ou o apresentador de TV. O primeiro assassinato foi uma reação à violência sofrida. O outro, uma resposta à humilhação que sofreu no programa de TV. Mais uma vítima de Arthur foi a própria mãe, após ele ter descoberto que era filho adotivo e que seus problemas mentais foram resultados da violência que sofreu do padrasto, negligenciada pela mãe. Arthur sofre de uma doença que o faz perder o controle do riso, que pode estourar a qualquer momento. Na medicina, esses casos são denominados de epilepsia gelástica ou afeto pseudobulbar, desenvolvido após AVC ou traumatismo craniano – no filme, é dito que ele, quando criança, recebeu muitas pancadas na cabeça.

Sim, o filme é pesado, deprimente, mas, de certa forma, assim como Bacurau, consegue captar o zeitgeist. Joker condensa o sentimento contemporâneo de insegurança, injustiça, caos e desesperança de diversas cidades. O taxista Travis Bricke, de Taxi Driver, era também esse sujeito pobre, solitário, subempregado e despercebido, mas que resolveu limpar a cidade da sujeira moral, fazendo justiça com as próprias mãos armadas. Assim como Travis, Arthur não consegue manter uma relação amorosa. E assim como Tony Manero, de Embalos de sábado à noite, ele dança, como único protagonismo possível. Ao contrário de Manero, para Arthur, é uma inconsciente forma de libertação solitária. Ele dança quando está minimamente feliz e conectado com o mundo. Suas desconexões, seus lapsos de razão, são como as falhas das luzes florescentes por onde ele passa.

Arthur Fleck é um personagem que pouco lembra as características clássicas do Coringa: agente do caos, absolutamente amoral, sarcástico e muito à vontade com sua perversão. Isto está presente no Coringa interpretado por Heath Ledger e Jack Nicholson, em Batman (1989), de Tim Burton – longa-metragem que deu início à maior saga do Homem-Morcego no cinema e à onda de filmes de heróis de HQs. O Joker, de Joaquin Phoenix, é um atormentado. Basta trocar o J e o K do joker para que vire “loser” – a cruel expressão utilizada nos Estados Unidos para insultar aqueles que não “venceram na vida”: os subempregados, os feios, os malvestidos, os que não conquistaram uma esposa troféu, os que não podem dar carteiradas, os que não devem burlar as leis.

Arthur Fleck é praticamente digno de pena. Não impõe medo pela insanidade altiva, como faz o Coringa dos quadrinhos. No final do filme, ele aparece todo vestido de branco, de mãos atadas dentro do manicômio de Arkham, onde tenta fugir de um lado para o outro, em câmera lenta, dos funcionários da instituição, lembrando uma cena de comédia-pastelão. Isso dá a entender que, a partir dali, pode acontecer uma transição que transformará aquele pobre coitado em um vilão cômico e talvez digno de enfrentar o Batman. Phoenix já disse estar disposto a encarar uma sequência.

Há uma teoria de que essa cena final pode indicar que todos os acontecimentos da narrativa não passam de um delírio da mente de Arthur Fleck, que vive rabiscando em um diário. Essas anotações do personagem foram uma homenagem de Joaquin Phoenix a seu amigo Heath Ledger, que manteve um diário sinistro de seu Coringa durante as filmagens de Batman – O Cavaleiro das Trevas (2009). O diretor Todd Phillips, durante uma entrevista, deu a entender que Arthur Fleck poderia não ser exatamente o vilão de Batman, mas alguém que inspirou o verdadeiro vilão do Homem-Morcego. A propósito, uma das melhores cenas de Joker é o encontro entre Arthur Fleck e o garoto Bruce Wayne.

O enredo de Joker vem dividindo a plateia no clichê dos filmes polêmicos: “ame ou odeie”. Os mais críticos reclamam que é um perigoso equívoco a violência do personagem ser explicada como reação a todos os abusos e traumas que sofreu e também pela doença mental. O filme funcionaria como uma justificativa para os homens brancos incels (celibatários involuntários) que costumam promover atentados. É possível. No entanto, esse argumento também pode ser aplicado a Taxi Driver e tantos outros filmes. Segundo Nelson Rodrigues, as coisas devem acontecer na arte para que não aconteçam na vida real. Um bom começo seria não permitir que as nossas cidades sejam (ou virem) uma Gotham City. Não há Batman na vida real. Mas Arthur Fleck, sim.

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*As opiniões expressas pelos autores não representam
necessariamente a opinião da revista Continente.

 

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