Matéria Corrida

Reynaldo Fonseca (Recife, 1925-2019)

TEXTO José Cláudio

05 de Dezembro de 2019

'Retrato de José Cláudio', lápis 'conté' sobre papel de açougue, 1952 ('Memória do Atelier Coletivo', 1958)

'Retrato de José Cláudio', lápis 'conté' sobre papel de açougue, 1952 ('Memória do Atelier Coletivo', 1958)

Desenho Reynaldo Fonseca

Algumas pessoas eu não queria que morressem nunca. E de fato não morrem porque primeiro temos motivos de lembrar e segundo, mas aí não podemos controlar, preferindo que morram depois de nós. Recentemente, na mesma UTI, duas dessas pessoas. Uma saiu e era como se eu próprio tivesse saído. A outra era Reynaldo. Desde 1952, quando o conheci no Atelier Coletivo, a vida de Reynaldo Fonseca é um hino à paz. Dele, somente uma notícia: a de que estava pintando. Tivesse ou não notícias dele, sabia que estava pintando. Aqui no Recife ou no Rio de Janeiro, onde morasse, era a única novidade. E sua pintura nos dá conta dessa regularidade. Embora cada quadro uma aventura, no caso dele tratava-se de uma depuração infinita que seus recursos inesgotáveis podiam manter quase imperceptível. Mas eu que sempre te segui os passos sei o teu suspiro como foi profundo.

Sabe o que mais me encanta, amigo Reynaldo meu mestre? É ver um iniciante, ou nem tão iniciante assim, que iniciantes somos todos nós, iniciante às vezes até entrado na vida, tendo assumido alguma profissão para sobreviver, alimentar os filhos, vê-lo acanhadamente, com vergonha de sonhar em público, plantar o singelo cavalete num fundo de quintal, botar um quadrinho, pegar os tubos de tinta comprados quem sabe com sacrifício e arriscar uma paisagem sem nem saber por onde começar, como acontece com todos nós, desamparados diante da tela em branco. Como tenho vontade de dar um abraço, de encorajá-lo! De saber que nossa vida continua. Estar, sem que ele próprio saiba, renascendo ali. Quem sabe um novo Reynaldo.

Acima digo “iniciantes somos todos nós”: sim, mesmo você. Amanhã alguém, você reencarnado em outro, tomará sua obra, onde você deixou, como ponto de partida.

Há dias andei redigindo alguma coisa para escrever mas inconscientemente perdia o papel sabendo de antemão da insuficiência do que pudesse dizer. Reynaldo em 1952 já era um pintor consumado. Quem visse um quadro seu àquela data constatava que ele nada tinha mais a aprender. Um retrato meu a carvão comprova essa afirmação. Ali me vejo não simplesmente como retratado mas um flagrante da grande admiração que me causou.

Nessa nossa longa vida a distância, sem nunca ter ido na casa um do outro, ele sempre ficou sendo um porto seguro, sendo eu obrigado a me manter digno de havê-lo conhecido.

Com intervalo de quase setenta anos, pronunciou-se duas vezes e de maneira espontânea sobre trabalhos meus. Um primeiro quadro pintado ainda no Atelier Coletivo em que tentava representar uma camponesa. “Essa mulher está completamente desequilibrada. Amanhã quando você chegar aqui vai encontrá-la caída no chão”. E fez um gesto da parede onde o quadro estava pendurado para o piso da casa do Atelier. O outro foi o retrato de uma menina exposto recentemente no Espaço Brennand quando me disse: “Parabéns pelo retrato de Simone”.

Agora, morte de Reynaldo Fonseca, sinto que minha vida periclita. Parte-se. Tanto no sentido de ir-se como de quebrar-se e cair aos pedaços. Gosto de pensar que não sou romântico, que na minha educação ou concepção masculina ou machista de vida não há lugar para sentimentalismos. De se ficar pensando no que foi embora. Não há lugar para lamentos. Sofrer com perdas é admitir despreparo, imprevidência, incompetência, chôro. Homem não chora.

É. Essas mortes, uma atrás da outra, vêm me abalando. Wellington, Ionaldo, Ivan, Corbiniano, Maria Carmen, Abelardo, Samico, Guita, desde esses com quem tive mais intimidade até os grandes que só conhecemos de longe mas nos lembram que é chegada a hora, o sino bate para todos nós, Picasso, Matisse, Cícero Dias que conheci e disse uma frase importantíssima: “Cada um se engaja consigo próprio”. Saturno devorando os filhos. É o sentimento trágico da vida, causado pela descoberta da morte, que nos é tão difícil conceber mesmo que dela ninguém escape. Só vivemos porque continuamos como os bichos, que não sabem que morrem. E por mais que eu escreva sobre a morte, como sobre a de Darel há pouco, duas coisas: nem morremos nem eles morrem. Eu não morro. Ninguém morre.

Cada um se engaja consigo próprio. Sim. Mas até se descobrir, saber quem é, saber o que quer e que rumo tomar, exige a duração da vida e nem sempre essas perguntas serão respondidas, não passando do mito de Sísifo. Carregando a pedra ou a cruz, de ladeira acima do seu calvário, para vir buscá-la de novo cá embaixo e recomeçar a lida, sem saber por que, com que finalidade. A não ser de manter-se vivo. Para nada.

“Yo pongo el alma mía donde quiero” (eu ponho minha alma onde quero), lembrei desse verso de Neruda. Reynaldo tinha esse dom desde o início como demonstram os seus trabalhos. Suas revoluções ocorreram dentro dele sem que pudessem burlar a perfeita vigilância, somente vindo a público através de seus quadros, quando absolutamente apaziguadas, como num reino de milênios. E isso se dando no século 20 em que transfromações radicais viraram rotina, passando a ser o âmago da doutrina estética, se faz algum sentido a locução. Lembram do Ismos de Ramón Gómez de la Sierna?

Naturalmente Reynaldo é um pintor do século 20, que só poderia existir no século 20. Até essa sua busca do atemporal é do século 20. Sua pintura viu o cubismo, o surrealismo e todos os ismos, do expressionismo de sua primeira época, como o quadro do Museu do Estado, até o abstracionismo geométrico, um purismo quem sabe inspirado em Vicente do Rego Monteiro, mas nada virou sua cabeça. Também nenhum ingrediente lhe é estranho. Não sei da chamada pintura engajada ou participante: ele era engajado com ele mesmo. Mas o fato de não praticar pintura participante ou engajada já se constitui uma forma de participação ou engajamento. O fato é que Reynaldo é Reynaldo em todas as horas.


Mãe e filha com máscara e espelho, óleo sobre tela, 101 x 82 cm. 
Pintura: Reynaldo Fonseca, 1997

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*As opiniões expressas pelos autores não representam
necessariamente a opinião da revista Continente.

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