Entrevista

“Ações compensatórias podem evitar uma convulsão social”

O sociólogo José Luiz Ratton, pesquisador de políticas de segurança pública, analisa tanto o aumento quanto a diminuição de diversos tipos de violência durante o período de pandemia da Covid

TEXTO Débora Nascimento

26 de Junho de 2020

O sociólogo e pesquisador José Luiz Ratton

O sociólogo e pesquisador José Luiz Ratton

Foto Divulgação

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Em entrevista
para a reportagem de capa deste mês, Como será o amanhã?, o sociólogo José Luiz Ratton, professor e pesquisador do Departamento de Sociologia e do Programa de Pós-Graduação em Sociologia (PPGS) da UFPE, e coordenador do NEPS/UFPE (Núcleo de Estudos e Pesquisas em Políticas Públicas de Segurança da UFPE), faz uma análise dos mais diversos tipos de violência dentro do contexto da pandemia do novo coronavírus.

CONTINENTE Durante a pandemia, enquanto alguns estados registram um número menor de violência urbana, outros, como o Ceará, aumentam o número de homicídios. Como explicar isso?
JOSÉ LUIZ RATTON É importante lembrar que, desde setembro de 2019, os homicídios vêm crescendo em 20 dos 27 entes federados brasileiros. Pernambuco, Ceará, São Paulo, Distrito Federal, Bahia, Espírito Santo e Santa Catarina são algumas das unidades da federação que já vinham observando aumento das mortes violentas antes da pandemia. Para compreender as mudanças e permanências nas relações entre pandemia e crime, precisamos ser capazes de identificar e compreender um conjunto de padrões e mecanismos causais que atuam de forma concomitante neste momento.

No Rio de Janeiro, por exemplo, as taxas de homicídio caíram em bairros onde havia operações policiais sistemáticas e/ou onde a polícia historicamente matava mais. Nas áreas sem operações policiais (ou com menos mortalidade decorrente da ação policial), houve aumento dos homicídios. Em Pernambuco, no Ceará, no Distrito Federal e em São Paulo houve elevação das taxas de homicídio. Nestes estados e no DF, os homicídios estão relacionados ao funcionamento dos mercados ilegais. Tais tipos de assassinato têm uma lógica “local”, incrustada no território, com alta proximidade entre residência do autor, da vítima e o lugar de ocorrência do crime.

É sensato pensar que tais lógicas criminais foram pouco afetadas pelo eventual isolamento social, em consequência da pandemia, se é que ela ocorreu de forma relevante nos territórios de grande vulnerabilidade social onde tais homicídios são mais prevalentes. Nestes casos e em tais espaços, predominam vinganças, acertos de contas e disputas territoriais vinculadas a mercados ilegais disfuncionais, cuja governança conflitiva pode ser potencializada em tempos de pandemia, elevando as taxas de homicídio. Se considerarmos, adicionalmente, que a presença estatal escasseia ainda mais neste momento, a equação política, social e econômica do aumento dos homicídios pode ser demonstrada.

Uma questão da maior importância é a violência doméstica, especialmente contra as mulheres, que aumentou no Brasil e em todos os países nos quais há acesso à informação pública. A explicação mais provável é que o aumento do tempo de convivência próxima dos casais, em contextos patriarcais, de baixa intervenção estatal e de naturalização social da violência contra a mulher, elevou ainda mais a vulnerabilidade das mulheres à violência masculina. Finalmente, os crimes contra o patrimônio, que caíram em quase todos os estados do país. Com o fechamento de parte expressiva do comércio e a diminuição de circulação de pessoas, mercadorias e dinheiro nas grandes e médias cidades, era esperado que furtos e roubos diminuíssem e assim aconteceu. Com menos alvos em circulação, o crime patrimonial diminuiu durante a pandemia, o que ocorreu em todo o planeta.

CONTINENTE É possível que haja uma explosão ou onda de violência urbana, com a intensificação da pobreza durante esse período de quarentena e no pós-pandemia?
JOSÉ LUIZ RATTON É necessário separar a interpretação dos determinantes da possível elevação de saques em contexto de pandemia da discussão usual sobre as causas da criminalidade urbana. São fenômenos distintos, com causas, em sua boa parte, distintas. A eventual ocorrência de saques pode ser considerada uma forma de ação coletiva provável em reação a um contexto extremo de escassez e de limitação crescente das formas usuais de sobrevivência (mesmo que precárias) de setores expressivos da população. Me parece, contudo, que um aumento expressivo de saques urbanos ou rurais só ocorrerá em situações em que a redução do acesso de setores das camadas populares à alimentação e a padrões aceitáveis de sustento familiar atinja uma situação-limite, que pode não estar distante. Se houver alguma fagulha de organização local ou supra-local, que permita o surgimento de coletivos que percebam a inexistência de outras alternativas de garantia da sobrevivência que não sejam os saques e tenham capacidade de liderança, os saques tornam-se bastante prováveis. Mas isso nada tem a ver com a retórica ilusionista do nível central do governo federal que tem se utilizado da possibilidade de saques, para ligá-los casualmente, e de forma desonesta, às necessárias decisões de isolamento social durante a pandemia, recomendadas pelas autoridades sanitárias e postas em prática por boa parte dos governadores.

Se a estratégia pública correta para garantir a vida é o isolamento social, cabe ao governo federal apresentar alternativas efetivas que assegurem aos mais pobres e àqueles que não tem mais trabalho remunerado, acesso a água,  comida e saúde durante a pandemia. Para tal, é fundamental a adoção de um conjunto de medidas de proteção social através do aumento do gasto público, como vem sendo feito por diferentes países, com governos de diferentes orientações políticas: a extensão, até o final da pandemia, dos auxílios emergenciais já concedidos; o aumento da eficiência no pagamento de tais auxílios (milhares de pessoas não conseguiram recebê-lo); a concessão de empréstimos para pequenos e médios empresários, nas cidades e na zona rural; tolerância com a inadimplência de pagamento de aluguel, luz, água, gás etc. Estas e outras ações compensatórias podem evitar uma convulsão social motivada pela fome, pelo desabastecimento e pela insensibilidade social da atual gestão do governo federal. A proliferação de saques, ademais, pode produzir efeitos perversos absolutamente indesejáveis: a escalada da resposta repressiva das polícias e dos vigilantes privados ligados ao comércio, aumentando a ocorrência de mortes violentas, nos espaços sociais historicamente vulneráveis a ela.

CONTINENTE Já é possível avaliar o quanto a quarentena atingiu o tráfico de drogas?
JOSÉ LUIZ RATTON A capacidade de adaptação dos mercados de drogas ilícitas é muito grande e está ocorrendo de forma maciça em tempos de pandemia. Alguns exemplos: as práticas de compra e venda de drogas através das redes sociais e de delivery, que já eram comuns há alguns anos nos grandes centros urbanos estão em franco processo de aprimoramento e disseminação durante a pandemia, especialmente nos mercados de cocaína e de maconha cultivada em espaços fechados. Estas modalidades de transação comercial são típicas dos espaços de consumo de substâncias ilícitas das camadas médias e altas das grandes e médias cidades brasileiras.

Por outro lado, as formas de compra e venda nos bairros pobres das grandes cidades, baseadas em pontos de venda, bocas, localizadas nos territórios não foi muito afetada. A razão mais provável é que ali a intensidade do isolamento social é muito menor e as vendas não foram afetadas pela pandemia. Um ponto digno de nota diz respeito à oferta de cada substância. Parece não haver alteração significativa no mercado de cocaína nas grandes cidades. No entanto, é nítida, mesmo antes da pandemia, a elevação da apreensão de grandes carregamentos de maconha em vários pontos do território nacional. A permanência da escassez de maconha durante a pandemia traz como consequências o aumento do preço, a redução provisória do consumo e/ou a substituição temporária da maconha por outras drogas, lícitas ou ilícitas.

Houve aumento do montante de apreensões de drogas nas estradas, segundo informações da Polícia Rodoviária Estadual. As rotas terrestres e aéreas de distribuição de substâncias ilícitas foram perturbadas pela pandemia. Isto ocorre em razão da diminuição do volume do tráfego rodoviário e aéreo, o que facilita a fiscalização de pessoas e eleva a chance de apreensão. Contudo, as rotas marítimas de distribuição parecem ter aumentado, o que reduziria o impacto sobre o consumo em mercados das grandes regiões metropolitanas litorâneas. Há vários relatos de aumento do uso dos correios públicos e privados como estratégia de compensação das dificuldades de distribuição de drogas. O transporte de carga aumentou e o transporte de passageiros diminuiu. Há mais chance de fiscalização e apreensão de pessoas que transportam drogas, pois há menos veículos nas estradas e menos pessoas tomando aviões. Mas há menos chance de fiscalização e apreensão de remessas de drogas despachadas de forma anônima pelos correios, pois o aumento do volume de unidades deste tipo de transação diminui a chance de fiscalização e de apreensão.

Um último ponto diz respeito às relações entre governança de territórios submetidos a grupos criminosos. Não deixa de ser curioso observar que, no Rio de Janeiro, em muitos territórios dominados por facções, a regra determinada pelos grupos ligados aos mercados de drogas é diminuir a circulação de pessoas, mesmo quando autoridades estatais não implementam o isolamento social recomendado por cientistas e profissionais de saúde. E há ameaça do uso da força pelas facções, em caso de desobediência. Parece que estes grupos entenderam que seus lucros devem ficar em segundo plano para que os padrões de mortalidade pela Covid-19, em áreas tão sensíveis, sejam controlados, garantindo o funcionamento do negócio no futuro. Em áreas dominadas por milícias, a interrupção dos ganhos relacionados ao controle das vendas de bebidas alcoólicas, gás de cozinha, água, que resultou do fechamento do comércio, tem levado os chefes milicianos a pressionarem os comerciantes a reabrirem seus estabelecimentos para que os mecanismos de extorsão, típicos das organizações milicianas, possam prosseguir.

DÉBORA NASCIMENTO, repórter especial da revista Continente e colunista da Continente Online.

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