Entrevista

"A narrativa tinha que ser uma imersão sensorial"

Inspirado em dois contos de Hilda Hilst, realizador Eduardo Nunes faz em "Unicórnio" uma bela investigação pictórica sobre a intensa e contraditória relação entre mãe e filha

TEXTO Luciana Veras

27 de Agosto de 2018

Em seu primeiro trabalho como atriz, Barbara Luz equilibra força e poesia

Em seu primeiro trabalho como atriz, Barbara Luz equilibra força e poesia

FOTO Edson Lima/Divulgação

Em 2018, Hilda Hilst está em todo lugar. A escritora e poeta falecida em 2004, aos 73 anos, tem sido uma figura recorrente neste ano que já se encaminha para o final. Primeiro, foi homenageada em julho na Festa Literária Internacional de Paraty – Flip, sob curadoria da jornalista Josélia Aguiar, que em entrevista ao Suplemento Pernambuco radiografou o interesse ascendente por ela e por sua obra: “Hilda Hilst tem leitores cada vez em maior número, que pertencem às novas gerações e que também são mais especializados: gente que a estuda na universidade e gente das artes, sobretudo da literatura e do teatro”. Segundo, chegou ao cinema em Hilda Hilst pede contato, documentário de Gabriela Greeb que propunha uma experiência sensorial para chegar a uma literatura-mergulho em questões de pele, sexo, amor, religião e obscenidades telúricas ou oníricas. Foi exibido no Recife e segue em cartaz em outras capitais brasileiras. 

Em cartaz está, também, um outro filme que ratifica a onipresença de Hilda Hilst: Unicórnio (Brasil, 2017), uma construção poética e fictícia do realizador carioca Eduardo Nunes a partir de duas matrizes literárias - os contos Matamoros e O unicórnio. No enredo, Maria (Barbara Luz) mora apenas com a mãe (Patrícia Pillar) em uma casa isolada das montanhas enquanto espera o retorno do pai (Zécarlos Machado). A intensa relação entre mãe e filha se desequilibra com a chegada de um outro homem (Lee Taylor). A partir dali, Maria, que a cada dia precisava inventar seu mundo, terá que lidar com sentimentos contraditórios e conflitantes.

A Continente viu Unicórnio durante a 68ª Berlinale, em uma exibição de sala lotada e tela gigante, ideal para transmitir a ideia de "imersão" e "intensidade" defendida tanto por Eduardo Nunes como por sua protagonista, um primor de talento chamado Barbara Luz. Decerto há de contar o componente familiar na escolha de Barbara em se decidir por começar a atuar a partir de um texto de Hilda e no cinema: ela é filha de Inês Peixoto e Eduardo Moreira, fundadores do grupo Galpão, de Belo Horizonte, uma das mais prolíficas trupes teatrais em atividade no Brasil. "Fui lá em Minas Gerais para conversar com ela, para lermos o roteiro juntos e irmos tentando entender cada detalhe da história, que eu já sabia que não poderia narrar de uma maneira tradicional, e sim como uma imersão, com algo sensorial, fora do plano racional", conta Nunes.

Em cena, Barbara irradia a gama de sensações que explodem, no corpo e na mente, de uma adolescente. Fora de cena, compreende bem os meandros daquela relação com a mãe que, mesmo no extracampo, é essencial para tudo que transborda na ela. "A menina só tinha a mãe, ela não tinha nenhuma outra pessoa para sentir alguma coisa. Então, tudo que ela sentia pela mãe era muito intenso: quando sentia raiva da mãe, era muita raiva. Quando sentia amor, era muito amor. As duas tinham aquela relação umbilical forte", observa.

Unicórnio foi filmado em dezembro de 2016 na região serrana do Rio de Janeiro. Nove meses depois, quase como uma travessia pós-parto, estreou no Festival do Rio; em fevereiro, foi exibido na mostra Generation, da Berlinale, e de lá percorreu o mundo com sua mescla de sensorialidade, da pulsão pela vida que caracterizava a obra de Hilda Hilst e da delicadeza em arquitetar narrativas cinematográficas partilhada por Eduardo Nunes: foi selecionado para festivais em Portugal, Suíça, Bélgica e Uruguai. Agora, roda o Brasil via Vitrine Filmes. 

Foi ainda na capital alemã, contudo, que o diretor conversou com a Continente sobre a sua fábula para a qual não se aplicam rasas tentativas de catalogação e que ele descreve como "um convite para a obra de Hilda e tudo que dela pode ser percebido e sentido". 

O diretor Eduardo Nunes (à direita) orienta o ator Lee Taylor no set ambientado na região serrana do Rio de Janeiro. Foto: Zeca Miranda/Divulgação 


CONTINENTE
De onde vem o filme, tanto em termos poéticos como na composição imagética?
EDUARDO NUNES O começo mesmo, a ideia inicial, são dois contos da Hilda Hilst, O unicórnio e Matamoros. Essa é a base: dois contos muito difíceis de adaptar. Unicórnio, por exemplo, é o primeiro trabalho de ficção dela e traz muito da poesia da Hilda. Essa dificuldade vem porque o texto não descreve uma ação, e sim um estado emocional. Aliás, só me lembro de um curta adaptado da obra dela, O caderno rosa de Lori Lamby e, mais recentemente, do documentário Hilda Hilst pede contato, que tem partes encenadas. Ou seja, essa coisa de adaptar a obra dela é muito recente, o que eu acho ótimo, pois percebo a Hilda rivalizando com a Clarice Lispector em importância literária. Elas eram contemporâneas, mas a Clarice era muito mais conhecida. Talvez tenha aí uma coisa de redescoberta… Essa homenagem na Flip ajuda muito também.

CONTINENTE Não conheço os dois contos. Em qual deles há o personagem da menina, por exemplo? Qual deles lida com essa questão do desabrochar
EDUARDO NUNES Os personagens da mãe e da filha vêm do Matamoros; O unicórnio é praticamente um diálogo entre duas pessoas que você fica tentando identificar quem são. O que fiz foi transformar esse diálogo que existe em Unicórnio em uma conversa entre a menina e o pai e aí trouxe também uma questão biográfica da Hilda, pois ela tinha uma relação muito forte com o pai, que era esquizofrênico e havia sido institucionalizado. Ela foi conhecê-lo, de fato, quando tinha 13, 14 anos. Eu fui na Casa do Sol, onde ela morou em Campinas, conheci a Olga, amiga dela, procurei me aprofundar nessa questão da relação dela com o pai, que era muito forte. Então, preferi trazer o diálogo do conto O unicórnio, com todas as questões sobre Deus e a natureza, e lá coloquei o pai e a menina. De Matamoros, vem a história da mãe e da filha e do homem que chega. Cada conto é um ambiente do filme e tentei criar um diálogo colocando o personagem da menina como um ponto de comunhão entre eles.

CONTINENTE E como foi a composição pictórica? Pergunto porque considero o filme uma pintura, me lembrando até telas de Van Gogh, como Wheatfield with crows.
EDUARDO NUNES Para mim, a poesia vinha da transposição pelas imagens e pelos sons, então era muito importante trabalhar essa junção para o filme se tornar uma questão sensorial. Queria que não passasse só pela parte racional, sabe? Os elementos da natureza, o barulho dos pássaros, dos animais, e juntando a imagem nesse pacote, tudo para criar um ambiente de imersão, como uma fábula. Eu, particularmente, enxergo a história que acontece no campo como uma narrativa que a menina conta para o pai e, aí, você permite tudo, já que é uma história inventada.

CONTINENTE Um aspecto que me deixou intrigada foi justamente esse componente de fábula, ora parecendo estar ambientado nas montanhas do Marrocos, com o personagem do homem que chega se assemelhando aos berberes, ora no interior do Brasil. Algo como uma paisagem idealizada, meio kitsch até.
EDUARDO NUNES A questão da fábula permite isso. Nossa intenção era misturar diferentes elementos de culturas distintas, para ter uma coisa árabe e persa nos tecidos e aquelas montanhas que poderiam ser de qualquer lugar. Teve gente em Berlim e acho que era na Suíça, pois aquelas montanhas não poderia existir no Brasil. Essa questão surge às vezes, como se o filme perdesse uma certa identidade brasileira, mas não acho que passe por aí. A identidade brasileira não está restrita a um estereótipo. Estamos filmando a partir dos escritos de uma autora brasileira e, nesse sentido, a fábula extrapola uma ideia de identidade nacional.

CONTINENTE Mas o que é uma identidade, não é? Será que um filme só poderia ser do Brasil se tivesse uma favela? Aproveito para perguntar sobre as cores, que são expressivas, cativantes, envolventes. É como se estivéssemos em uma viagem lisérgica.
EDUARDO NUNES Quanto à questão da identidade, acho natural que isso aconteça pelas expectativas. Mas me diverti em Berlim quando um rapaz perguntou, não de forma agressiva, mas de curiosidade mesmo, se o Brasil tinha aquelas cores (risos). A ideia era trabalhar esse tom de exagero, de fábula. Sudoeste, o primeiro filme que fiz, é em preto e branco, no mesmo formato scope, mas ali eu sentia que não precisava carregar nas cores. Em Unicórnio, isso vem junto à presença da natureza. A menina está ali sozinha. Tudo que existe ao redor é o universo dela. Então ela tem uma relação com a árvore, com os animais, com aquele campo… Fizemos em digital o filme e depois tivemos uma pós muito demorada. Fomos criando várias camadas, movendo elementos, carregando nas montanhas, nas árvores, pintando com uma ferramenta, quase como se estivéssemos pintando à mão com um pincel mesmo, sabe? Então, se existe esse aspecto de pintura, é porque foi pintado mesmo. Pode até parecer um luxo, mas era necessário para o filme. O visual era muito importante.

CONTINENTE O visual também ajuda a contar a história daquela menina...
EDUARDO NUNES Sim, e o que eu queria era um aspecto que ratificasse aquilo, o fato de ser uma fábula, através do ir e vir da menina: ela sai de um ambiente branco, chapadão, com o pai e vai para aquele ambiente colorido com a mãe. Uma coisa vai contaminando a outra, assim como aquelas conversas com o pai contaminam a relação da Maria com a mãe. Acho que existe uma coisa entre mãe e filha que não existe, por exemplo, entre mãe e filho. E no filme construímos essa questão de uma competição da filha com a mãe a partir da chegada daquele elemento, que está entre as duas na questão da idade. A primeira cena do conto é quando a menina vai mostrar a árvore ao homem e ele tira a mão dela de cima da dele. Ele pode ir para um lado, o da menina, ou para o outro, o da mãe dela. E é a primeira presença masculina além do pai dela. Ou seja, traz algo para de uma certa forma transformar aquele ambiente.

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