Entremez

Ainda viro este mundo

TEXTO Ronaldo Correia de Brito

05 de Julho de 2019

Quadrilha Junina 'Traque de Massa'

Quadrilha Junina 'Traque de Massa'

Foto Andréa Rêgo Barros/PCR

Juro que apesar de anunciarem o tema “Sobre Rodas” eu não acreditava que os cavalheiros da Junina Traque de Massa entrariam no arraial do Sítio da Trindade montados em bicicletas. Acompanho as mudanças ocorridas nas quadrilhas, a cada ano, mas as ousadias sempre me surpreendem. Procuro referências, não consigo ler o que se revela aos meus olhos sem buscar comparações. O marcador apresenta a quadrilha como espetáculo e promete quebrar todos os modelos. Nenhum francês que tivesse visto uma “quadrille”, dança de salão composta por quatro casais, surgida em Paris no século XVIII, suporia que no Brasil ela se transformaria numa das expressões dramáticas mais poderosas, envolvendo dezenas de milhares de pessoas, principalmente na região Nordeste.

Onde vi algo parecido ao que assisto agora? – me pergunto, inquieto. Sem dúvida nos musicais de Hollywood, que se iniciaram na década de 1920, tiveram seu apogeu logo após a Segunda Guerra Mundial, e chegaram à década de 1960, quando começaram a entrar em declínio. Sim, não resta dúvida, mesmo que os coreógrafos e diretores artísticos da Junina Traque de Massa não tenham pesquisado, os musicais de Hollywood chegaram até eles por vias indiretas, como acontece nos processos de formação do conhecimento.

As bicicletas ganham plasticidade e poesia, tornam-se leves e airosas. Servem de transporte, de girândolas e até de passarela para um número de equilibrismo. Competem com as damas e quase as superam em feminilidade. Um caso de perversão erótica? Todos os absurdos da criatividade se tornam quadrilha. O resultado é sempre dança, canto, alegria, numa apropriação feita pelas classes mais pobres e periféricas da “quadrille” das elites europeias, que chegou ao Brasil durante o período da Regência, por volta de 1830, tornando-se febre no ambiente aristocrático. E da corte carioca acabou caindo no gosto do povo.

Muitos torcem o nariz para as quadrilhas contemporâneas. Uma pena, não sabem o que perdem. Conheço famílias ricas e de classe média, que já viajaram noves vezes a Gramado, na Serra Gaúcha, para viverem o “Natal Luz” com os filhos, netos, parentes e amigos, e nunca tiveram a curiosidade de chegar à Praça do Marco Zero e assistir ao Baile do Menino Deus, um espetáculo de matriz popular nordestina. Esses também não sabem o que perdem.

No ano de 2019, as quadrilhas de Pernambuco deram uma ênfase ainda maior à cultura do Nordeste, tanto nos aspectos formais da representação, quanto no discurso dos personagens e marcadores. A Raio de Sol criou uma dramaturgia de casamento baseada nas xilogravuras. A narrativa, ou tema, versava sobre a impressão das xilos. Por azar, um balde de tinta se derrama e as formas talhadas se imprimem sozinhas, ganham vida e poder de ação. O acidente obriga a Noiva a vencer sete provas, para poder casar-se, sendo a última delas enfrentar o Diabo. Ela não vence o ordálio e morre. Felizmente, trata-se de uma representação. No teatro existem saídas para tudo. O mestre xilogravador imprime a imagem da noiva morta e assim ela volta a viver, graças ao engenho do artista, um ser eleito, que a tudo resiste. Destaca-se o protagonismo feminino, a busca da heroína pelo seu amor, como na história clássica de Eros e Psique.

Os figurinos da Raio de Sol, inspirados nas gravuras, eram ricos em traços que lembram o artista Gilvan Samico, e chamavam atenção pela beleza e minimalismo, contrastando com o over comum à estética junina.

A Renascer homenageou o artesanato de barro. Três artesãos modelavam figuras durante o espetáculo e modelos vivos representavam os santos dos festejos: Antônio, João e Pedro. Vinda de Araçoiaba, um município pobre e com muitos problemas sociais, o tema da quadrilha – Feito com as mãos – também apostava no poder transformador da arte. As coreografias visitavam giros, passeios, cruzamentos e evoluções das antigas danças, sendo um destaque do grupo.

Revendo balés clássicos russos, reparei na interpretação gestual dos bailarinos, recurso usado por conta da ausência de falas. Essas mímicas convencionais se mantiveram como códigos, sem mudanças, ao longo dos anos. No entremez dramático do casamento junino, os atores e atrizes, mesmo fazendo uso da palavra, também ilustram as falas com gestos de dedos, mãos, braços e lábios. Todo o corpo se expressa, exageradamente, como no teatro de commedia dell’arte. Essa técnica popular singela, que remete aos esquetes musicais trazidos pelos colonizadores, me parece uma linguagem sofisticada, que tende à depuração e ao aprimoramento com o passar dos anos.

As pessoas ricas e de classe média não costumam ir às apresentações das quadrilhas. Elas também não sobem morros, nem descem córregos para assistir aos maracatus, caboclinhos e troças. Precisam sempre que a cultura popular seja recodificada, como fez o Movimento Armorial, para conseguir degustá-la. Os artistas populares, felizmente, não sofrem autointerdições, são antropofágicos, não imobilistas, vivem num contínuo comer, ruminar e criar. O Armorial, que vestiu o popular de erudito, retorna a eles, por direito. Surpreendi-me com a forte presença da estética desse Movimento, tanto na música como nos figurinos.

Torço por qualquer grupo, para mim são todos campeões. Nunca aceitaria o lugar de jurado nos concursos. As quadrilhas juninas me alimentam e me enchem de esperança. Elas se tornaram um celeiro de figurinistas, aderecistas, costureiras, músicos, compositores, atores e atrizes, dançarinos e dançarinas, coreógrafos, diretores de cena, cenógrafos, cabeleireiros, maquiadores, etc. Alguns grupos já trazem criações musicais próprias, inseridas dentro da trilha sonora, que é sempre eclética. Neste ano, surpreendeu-me a originalidade e o alto grau de sofisticação dos figurinos e adereços da Dona Matuta. Precisei ver de perto para acreditar.

“Imagine o Brasil ser dividido e o Nordeste ficar independente”. Esse tema candente, levantado por muitos, desde os revolucionários de 1817 e da Confederação do Equador, transformado em poesia e música por Bráulio Tavares e Ivanildo Vila Nova, ateou fogo na Dona Matuta, que se apresentou com o discurso mais explicitamente politizado. A galera aplaudia e se levantava a cada minuto, bastava o padre mencionar o nome do noivo, Luiz Inácio, o Lula.

Em meio à mistura de discurso político e festa, facas e rifles, xaxados e valentões, me pergunto quando todo esse furor ganhará as ruas, a arte se converterá em força de enfrentamento, em consciência e ação para reverter o que nos oprime e nos torna desiguais há quinhentos anos.

Ou será que ficaremos apenas na música de Gilberto Gil, cantada por um dos grupos?

Sou viramundo virado
Pelo mundo do sertão
Mas ainda viro este mundo
Em festa, trabalho e pão

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*As opiniões expressas pelos autores não representam
necessariamente a opinião da revista Continente.

 

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