Depoimento

A faca, o queijo e a pandemia — Diário do isolamento

TEXTO: CLEYTON CABRAL
COLAGENS: AUGUSTO TENÓRIO

28 de Setembro de 2020

Colagem Augusto Tenório

[Conteúdo exclusivo Continente Online]

Bolo, brownie e lacinhos

Abril de 2020, um pequeno panorama.

Cartazes no elevador: cartaz um, queridos vizinhos, diante dessa situação que estamos passando, resolvi reunir alguns contatos que estão fazendo entrega; água mineral, padarias, farmácias, hortifruti, supermercado; cartaz dois, dicas de cuidados e higiene como “Deixe uma caixa de papelão na porta e deposite as roupas da rua ali mesmo”, me imaginando nu no corredor e as vizinhas gritando “pega o tarado!”, último cartaz, tabela para os condôminos listarem os produtos e serviços que têm a oferecer e seus respectivos contatos, a do 703 vende lacinhos e tiaras, o do 504 vende material de limpeza, a do 804 aceita encomendas de bolo e brownie, pensei em escrever sou escritor independente e tenho livros para vender, mas não sei se andam querendo ler. Afinal, tem bolo, brownie e lacinhos, né?

 

O vírus e a casa

Março de 2020

Estamos diante de um inimigo invisível, a quem o presidente chamou de “uma gripezinha”. Um prédio, treze andares, quatro por andar, apartamento 601, duas gatas, Laura e Gal. Estou desempregado, meu namorado está de home office, muitos não podem fazer quarentena, e como ficam os que estão condenados à miséria nas ruas? Penso nos subempregos, nos entregadores de comida. Água e sabão, água e sabão, água e sabão, álcool está em falta, água e sabão são eficientes, repetem. Máscaras cairão automaticamente.

 

Primeiro aniversário sem abraços

Quinta-feira, 19 de março

O abraço do meu parceiro valeu por um trilhão de abraços, foi um bálsamo, ui, que clichê, o amor é clichê, meu bem. Na primeira semana de quarentena, tive uma sensação de aperto no peito, doía para engolir sólidos e líquidos. Meu amigo da saúde: emocional, baby, tensão, angústia. Libido em baixa, ansiedade em alta. Só faço comer. Exercícios físicos em casa? Levantamento de prato, agachamento para abrir o forno, três séries de dez garfadas por minuto. Cebola, alho e mix de pimentas não podem faltar, cerveja e vinho, também, vinho branco, Recife tá um inferno. Pensei nos meus privilégios. O isolamento é um lugar seguro? Pensei nos amigos que moram sozinhos.

 

Léxico dos primeiros dias

Sexta-feira, 20 de março

Mortes, doenças, UTIs, crise econômica, conflitos.

 

Lista do que fazer

Falar com os amigos, ligar pra mainha, quando isso vai acabar?, não sei, mainha, vamos aguardar as recomendações da OMS. Escrever narrativas de confinamento, eventos banais e profundos. Passar pano na casa, nunca usei tanta água sanitária na vida. Nossas sandálias do lado de fora, aqui dentro: estranho.

 

Flores de hibisco

Domingo, 22 de março

Portas sempre abertas para circular o ar, a nossa e a da vizinha do 604. Será só pra ventilar ou também para não nos sentirmos tão sozinhos? Ando fazendo bolos, sempre damos um pedaço para a vizinha do 604 e sua amiga. Olha, encontramos álcool em gel, esse é pra vocês, uma delas nos presenteou. Desci para comprar umas coisas no supermercado e uma senhora de máscara se afastou num rompante quando passei ao seu lado, ri e pensei ‘pega a doida’, depois entendi seu medo. A amiga da literatura perguntou se queríamos torta de abobrinha, claro, peguei na portaria, ela faz parte do grupo de estudos em literatura do qual participo e também do grupo de risco para o Covid-19. Me ofereci para fazer suas compras no supermercado. Na volta, ela me deu um potinho de vidro com flores de hibisco. Fiz um chá.

 

Super distraídos no supermercado

Quarta-feira, 25 de março

A moça do caixa passou uma vasilha vermelha sem computar o código de barras achando que era brinde da Coca-Cola: desculpa, estava distraída, relaxa, estamos todos assim, meio atordoados.

 

Mande notícias

Sons que invadem a sala: pássaros, solavancos do caminhão do lixo, um ou outro transeunte gritando, a vizinha do 604. O presidente acha que a quarentena é contra o governo dele, não entendeu que a quarentena é contra o vírus, não contra vermes. O presidente do Brasil é um verme e se alimenta de fake news. Nossa caçarola empenou do tanto que batemos, logo a que resistiu anos, viu cebolas e alhos dourarem, fazendo macarrão, corações, amolecer.

 

Saudades, Amsterdã

Sexta-feira, 27 de março

Em maio, iríamos fazer uma Eurotrip. Viagem cancelada. Fui demitido da empresa em que trabalhava em janeiro. “A sala de escritório é passagem, não a morada de um artista”, disse a amiga japa. Não vá trabalhar hoje, desligue os alarmes. Nunca mais usei calças, a peça de roupa que mais tenho usado é samba-canção.

 

As plantas do apartamento

Sábado, 28 de março

Jiboia branca

Maranta maui queen

Peperômia obtusifolia e tricolor

Dinheiro-em-penca (só no minijardim mesmo)

Mãe de mil, cacto dedo-de-dama

Jade

Espada-de-São-Jorge, saravá.

A planta confete definhou, a jiboia branca, que atende por Hilda, está linda e frondosa.

 

Viver de literatura

Estou relendo “Pequenas epifanias”, de Caio Fernando Abreu, relendo também Ana Cristina Cesar. Tirei o “Cartas a um jovem poeta” da estante para reler. É incrível a maneira com que Rilke repassa seus ensinamentos para Kappus, colocando nas mãos do jovem poeta a importância em se aproximar da natureza para entender o que é o mistério humano, mais do que isso, Rilke faz com que o jovem mergulhe em si para entrar em contato com sua essência. Ligar as antenas para o mundo, dos pequenos acontecimentos às grandes catástrofes, é essencial para quem deseja se dizer poeta. Estou terminando “Pai, pai”, de João Silvério Trevisan e “Reinvenção da intimidade”, de Christian Dunker.

 

O dinossauro invadiu a rodovia

Terça-feira, 7 de abril

Na casa em que cresci não tinha Van Gogh ou Picasso. Na parede da sala, um quadro imenso com a gravura de um dinossauro invadindo uma rodovia. Todo dia nascia uma história diferente: era uma vez um dinossauro nascido do cruzamento de uma cobra com elefante diante de um carro desgovernado com um bebê dentro e meu pai cortando os demais carros para chegarmos a tempo na casa de vovó, fim. Descobri depois que este quadro estava espalhado por todo país e, agora, o braquiossauro gigante invade a minha perna esquerda, como tatuagem.

 

A gata poeta

Quarta-feira, 8 de abril

Laurinha subiu na mesa e invadiu minha tela, passando por cima do teclado do notebook enquanto escrevia. O registro de suas patas:

çççççççççççççççççççççççççççççççççççççççççççççççççççççççççççççççççççççççççççççççççççççççççççççççlççççççççççççççççççççççççççççççççççççççççççççççççççççççççççççççççççççççççççççççççççççççççççççççç[´~~~~~~~~~~~~~~~~~~~~~~~~~~~~~~~~~~~~~~~~~~~~~~~~~~~~~~~~~Ã\\\\\\\\\\\\\\\\\\\\\Ã\\\\\\\\\\\\\\\\\\\\\Ã\\\\ \\\\\\\\\\\\\\\\Ã\\\\\\\\\\\\\\\\\\\\\Ã\\\\\\\\\\\\\\\\\\\\ Ã\\\\\\\\\\\\\\\\\\\\\Ã\\\\\\\\\\\\\\\\\\\\\Ã\\\\\\\\\\\\\\\\\\\\\Ã\\\\\\\\\\\\\\\\\\\\\Ã\\\\\\\\\\\\\\\\\\\\\Ã\\\\\\\\\\\\\\\\\\\\\Ã\\\\\\\\\\\\\\\\\\\\\Ã\\\\\\\\\\\\\\\\\\\\\Ã\\\\\\\\\\\\\\\\\\\\\Ã\\\\\\\\\\\\\\\\\\\\\Ã\\\\\\\\\\\\\\\\\\\\\Ã\\\\\\\\\\\\\\\\\\\\\Ã\\\\\\\\\\\\\\\\\\\\\Ã\\\\\\\\\\\\\\\\\\\\\Ã\\\\\\\\\\\\\\\\\\\\\Ã\\\\\\\\\\\\\\\\\\\\\Ã\\\\\\\\\\\\\\\\\\\\\Ã\\\\\\\\\\\\\\\\\\\\\Ã\\\\\\\\\\\\\\\\\\\\\Ã\\\\\\\\\\\\\\\\\\\\\Ã\\\\\\\\\\\\\\\\\\\\\Ã\\\\\\\\\\\\\\\\\\\\\Ã\\\\\\\\\\\\\\\\\\\\\Ã\\\\\\\\\\\\\\\\\\\\\Ã\\\\\\\\\\\\\\\\\\\\\Ã\\\\\\\\\\\\\\\\\\\\\Ã\\\\\\\\\\\\\\\\\\\\\Ã\\\\\\\\\\\\\\\\\\\\\Ã\\\\\\\\\\\\\\\\\\\\\Ã\\\\\\\\\\\\\\\\\\\\\Ã\\\\\\\\\\\\\\\\\\\\\Ã\\\\\\\\\\\\\\\\\\\\\Ã\\\\\\\\\\\\\\\\\\\\\Ã\\\\\\\\\\\\\\\\\\\\\Ã\\\\\\\\\\\\\\\\\\\\\Ã\\\\\\\\\\\\\\\\\\\\\Ã\\\\\\\\\\\\\\\\\\\\\Ã\\\\\\\\\\\\\\\\\\\\\Ã\\\\\\\\\\\\\\\\\\\\\Ã\\\\\\\\\\\\\\\\\\\\\Ã\\\\\\\\\\\\\\\\\\\\\Ã\\\\\\\\\\\\\\\\\\\\\Ã\\\\\\\\\\\\\\\\\\\\\Ã\\\\\\\\\\\\\\\\\\\\\Ã\\\\\\\\\\\\\\\\\\\\\Ã\\\\\\\\\\\\\\\\\\\\\Ã\\\\\\\\\\\\\\\\\\\\\Ã\\\\\\\\\\\\\\\\\\\\\

 

O padrão gráfico chamou minha atenção: três linhas tomadas por cê-cedilha: o silvo de uma serpente?, uma carreira de sinal “til” (~) em duas linhas: um mar azul e calmo?, 11 linhas com a letra A acompanhada do sinal “til” (Ã), separadas por carreiras de barras invertidas (\): uma espécie de mantra? Estou ocupando o lugar de fala da gata, ops, lugar de miado? Fiz um poema:

 

o silvo da serpente

no novelo do gato

é um ronronar calmo

mar azul

uma espécie de mantra

 

Eu sou a Björk

When she does it, she means to Moth delivers her message Unexplained on your collar / Crawling in silence A simple excuse”

Vêm aparecendo borboletas aqui em casa, dessas escuras, da noite. Meu amigo do teatro disse que apareceram várias dessas no seu quarto. Ele começou a falar com elas: gente, vão embora! Pegou um pote e tentou enxotá-las pra fora, ele empurrava pra fora e elas voltavam, atraídas pela luz. Não tive dúvida, coloquei uma música e fiz uma coreografia no meio delas, parecia que eu estava dentro de um filme, eu era a Björk, rodando com os braços pra cima e as borboletas, todas, se movimentando ao meu redor. Depois elas sumiram, mas acho que de noite elas voltam pra ficar comigo. Não é que voltaram?

Rodei, rodei, rodei, dancei, dancei, dancei, me aproximei da janela, fechei-a e peguei o Raid. Espalhei inseticida pelo quarto, que ficou tomado por uma fumaça branca. Fiquei um tempo parado, em silêncio: algumas asas batendo, dezenas de voos adiados. Me senti nauseado, abri a janela e vomitei. Algumas borboletas conseguiram fugir.

Nature is ancient But surprises us all

A parte do Raid é ficção. Tem aparecido borboletas na casa de mais pessoas. Será a natureza respondendo? A diminuição do monóxido de carbono na atmosfera com menos carros circulando na rua?

 

Exercício de morte

Sexta-feira, 10 de abril

Tenho cada vez mais medo de sofrer uma parada cardíaca. Primeiro pensamento: para onde vão todos os meus livros? Não caberiam no caixão, também não quero enterro. O que vou deixar para o mundo? Filhos? Só tenho os nomes: Beatriz (tem atriz dentro do nome). Se for menino, Caio (de peraltice). Se já plantei uma árvore? Quando eu era pequeno, coloquei um feijão no algodão molhado dentro de um potinho de margarina e germinou. Eu achava que podia chegar a um lugar acima das nuvens, como João e o pé de feijão. Livros? Dá pra contar nos dedos de uma mão. Sigo inventando histórias. Eu nasci no tempo das cartas, envelope, tinta azul, não existia iPhone, iPad, LED Smart TV, Facebook, WhatsApp, internet mais veloz que o tempo que a gente já não tem. Meu testamento: os livros vão para meu sobrinho. Se ele não quiser ser traça, que os doe para alguma biblioteca. O que tiver na previdência, é só falar com meu primo que trabalha na Caixa Econômica Federal, tá tudo combinado. No meu e-mail tem a pasta ‘livros’ com originais inéditos, caso tenham interesse em publicar. As coisas de casa ficam com meu namorado, principalmente a vitrola azul-turquesa e os discos. Possíveis frases para a lápide: a) Morreu engasgado com palavras; b) Morreu de rir; c) Foi um grande homem, media 1,93m.

 

Acabou Chorare

Segunda-feira, 13 de abril

Acordei às 10h, passei um café e abri o notebook, morre Moraes Moreira, fui pra varanda com um caderninho: pássaros, prédios, a academia de musculação fechada, os campanários da paróquia azul, silenciosos, na garagem do meu prédio, quatro carros estacionados, um vermelho, um preto e um prata, na rua transversal, guardadores de carros que perambulam pelo quarteirão conversam, um deles vezemquando olha em minha direção, o porteiro do prédio da frente está de máscara, regando o jardim, o auxiliar de serviços gerais, de máscara, desliza uma imensa lixeira contêiner com rodinhas até a calçada, varre, varre, varre, enquanto conversa com uma mulher sem máscara, um homem com máscara passeia com um cachorro de pelos marrons, no quinto andar do prédio à minha direita, um bebê chora nos braços de uma mulher, na janela do décimo andar, uma bandeira do Brasil, a mulher que me vaiou enquanto eu batia panela contra o presidente aparece na varanda do prédio da frente, varrendo, varrendo, varrendo, será que ela está jogando a dignidade para debaixo do tapete

 

Onde fica o botão?

Terça-feira, 14 de abril

Ontem fiquei paralisado, de que modo posso explicar? Como se eu tivesse botões espalhados pelo corpo e um deles ficou frouxo, querendo saltar, mas eu não sabia qual botão apertar, eu estava no sofá; meu parceiro, no quarto ou no banheiro, não lembro, eu só queria sair dali, do sofá, daquela sensação acelerada sem sair do lugar, levantar, dizer: amor, estou tendo uma crise, meu cérebro: não, não precisa. Não conseguimos transar.

 

Plantando sonhos

Quarta-feira, 15 de abril

Perdemos Rubem Fonseca. Repetindo: perdemos Rubem Fonseca. Ganhei algumas plantas do amigo da literatura (flor do deserto, orquídea, espada-de-São-Jorge e clorofito), um pedaço de bolo (ontem foi seu aniversário) e limões do quintal da sua casa. Ontem foi seu aniversário e nem pude dar um abraço. Ele colocou as caixas de plantas na entrada do prédio e acenou de longe. Sério, isso é muito Black mirror. Ontem, a vizinha do 604 nos deu um vasinho com babosa. Estou amando ter uma minisselva no apartamento. E, agora, dei pra conversar com as plantas. Lembrei de uma vizinha da casa onde cresci, um dia ela soltou: a pessoa vai ficando velha e dá pra falar com gato, cachorro e planta. Um sonho de agora: sair na rua abraçando todo mundo. Um sonho de amanhã: ter saúde mental para continuar escrevendo. Um sonho grandioso: publicar por uma editora expressiva e ter meus livros nas livrarias de todo o país. Um sonho simples: publicar novo livro.

 

Cadê a Regina Duarte?

Quinta-feira, 16 de abril

Nesses três últimos dias, o Brasil perdeu dois artistas de importância inquestionável e a atual Secretária de Cultura, Regina Duarte, não emitiu nenhuma nota de pesar. São 17h e está rolando um panelaço pesado porque Bolsonaro demitiu o Ministro da Saúde, Mandetta, em meio à pandemia, por seguir as recomendações da OMS.

 

Saquinhos de tinta que explodem vermelhos

Sexta-feira, 17 de abril

Conheci hoje a artista francesa Niki de Saint Phalle. Num de seus trabalhos, ela atira nos quadros e saquinhos de tintas explodem pintando a tela. Niki levou a obra para as ruas, para as pessoas também atirarem. Protesto? A performance me provocou: estaríamos matando a obra, a arte, o artista?

 

Travessia

Segunda-feira, 20 de abril

Ontem no Fantástico: o que os solteiros estão fazendo pra paquerar na quarentena? Uma mulher se aproximou de um rapaz no supermercado, até já sabia o que ele botava no carrinho. Fui ao supermercado quase agora só pra pescar alguma história. Nada. Sai com uma faca, um pedaço de queijo e um vinho branco. Tentei perceber os sinais. O vinho chama-se Travessia.

 

A Rosa Púrpura do Cairo

Terça-feira, 21 de abril

Fomos dar uma volta de bike. Vamos passar pelo cinema São Luiz? Olha os letreiros dos filmes: ‘Cuidem-se, em breve estaremos juntos’. Passou um filme na minha cabeça: a primeira vez que fui ao cinema, foi ali, para assistir Lua de Cristal. Eu subi na escadinha que dá na tela de projeção, todo mundo gritando desce daí, ei, sai daí. Queria entrar na tela. Seria eu um personagem de Woody Allen? Fugindo da realidade para entrar na fantasia? Fotografei ruas, avenidas, não-movimentos. Na volta, compramos cerveja e assistimos a live de Raça Negra.

 

Arear palavras

Quarta-feira, 22 de abril

Utensílios é uma palavra bonita.

 

O Moro vazou

Sexta-feira, 24 de abril

Ex-juiz Sergio Moro pede demissão do Ministério da Justiça e deixa governo Bolsonaro. Fiz uma massa de espinafre com molho de quatro queijos e camarões, abri um vinho.

 

Passeio nº 1

Sábado, 25 de abril

O primeiro lugar que quero ir é a uma livraria, me demorar entre gôndolas e estantes, ser fisgado por títulos e capas, ler a primeira frase, essa minha mania, folhear. Eu sei que morrerei sem ler todos os livros, já estou convencido, mas o prazer de poder levar pra casa aquela autora, aquele autor, tê-los na biblioteca, por perto, ter pra quem olhar. Os livros jamais nos abandonam.

 

Zona contaminada

Segunda-feira, 27 de abril

Lá se foram mais de 30 garrafas de vinho, lá se foi meu fígado. Nunca mais usei perfume nem me arrumei, o cabelo está sem corte, os mullets já se acumulam na nuca, tufos cobrem as orelhas, os grisalhos aceleraram, vou mantê-los, acho tão bonito a neve pousando nos cabelos, mas não vejo a hora de cortar a juba, saudades, salão, as espinhas gritando, mas sei que sairei tão diferente de quando entrei na quarentena, as relações mudarão, o que realmente importa? Pensei na morte, no futuro, no futuro da minha profissão, na minha relação afetiva, a convivência harmônica, apesar de algumas vezes meu humor estar alterado, nos cuidados e carinhos, as ações mais bobas do dia a dia, amor, peço Coca-Cola? Penso o quanto estive próximo dos livros, lesmando os dias, diante da página em branco, pensando, escrevendo, reescrevendo, mergulhando nas águas caudalosas da vida e da literatura. Será que já peguei a porra desse vírus e não sei? Ainda estamos em quarentena. Até quando? Restará vida para escrever?

 

Os olhos começam a pesar

Quarta-feira, 29 de abril

Dormi mal esses últimos dias. Entreguei-me a um disquinho branco que vai baixando os pensamentos como a areia fina que escoa de um compartimento para outro na ampulheta: clonazepan 2mg.

 




1, 2, 3, 4, 5, 6, 7, 8, 9, 10

Terça-feira, 5 de maio

A elasticidade do tempo como teias de aranha devorando os dias. Quando puder sair de casa, vou abraçar o mundo (contar até dez na cabeça em cada abraço).

 

Abacate faz bem para o coração

Sexta-feira, 8 de maio

Dia desses, mainha me deu duas caçarolas, duas formas de bolo e dois abacates maduros.

 

Os peixes não têm pálpebras, mas isso não significa que não dormem.

Terça-feira, 12 de maio

Um conto para um futuro próximo (espero)

Desde o primeiro dia da quarentena entrou num sono profundo. Sonhou que escrevia uma história sobre alguém que troca um carrinho de bebê por um aquário com um peixe chamado Margot. Acordou no centésimo quinquagésimo sexto dia, lavou o rosto, tomou um café e – sem máscara – foi lá perto da Casa da Cultura, na beira do Rio Capibaribe. “Quanto tá?” “Um é cinco, três é dez”. Comprou todos aqueles peixinhos que vêm no saco amarrado com água. Com todo cuidado, abriu saquinho por saquinho e os devolveu ao rio. Despediu-se do último, aquele cor de casca de abóbora acesa: “Tchau, Margot, agora você vai contar essa história lá no fundo.”

 

Modelo vivo?

Domingo, 24 de maio

Hoje participei do projeto do amigo fotógrafo. Posei para ele no #fotosporvideochamada. Afastei a mesa de jantar, o centro, coloquei todos os livros de uma estante no sofá. Começamos com os retratos: O Processo, de Kafka; Um homem extraordinário e outras histórias, de Tchekhov e Tempo nublado no céu da boca, meu primeiro de contos. Os três, como máscaras de proteção. Depois, deitei no chão. Meu namorado foi colocando pilhas de livros na altura dos meus ombros, peito, livros e mais livros abertos nos braços, coxas, pernas e pés, cobrindo-me. No sexo, uma máquina de escrever. Ontem, o curador do Prêmio Jabuti, Pedro Almeida, criticou o isolamento social e disse que os brasileiros estavam sendo “enganados” sobre os casos de mortes da Covid-19. Neste mesmo sábado, o Brasil chegou à marca de 22 mil mortos em decorrência da Covid-19. Levantei da cama-cova de livros e fiquei entre aspas. 

 

E daí?2

Terça-feira, 31 de maio

As secretarias estaduais de Saúde confirmam no país 501.985 casos de coronavírus, com 28.872 mortes. Brasil passou a França em número de óbitos. Desci, de máscara, para pegar o almoço e o senhor de uns 70 anos está mais uma vez fazendo sala no sofá do hall. Outro dia, ele soltou um grunhido que não entendi e eu respondi: “Coloque uma máscara!” e subi. Hoje, nem boa tarde dei. Perguntei ao porteiro “o que faz aquele senhor irresponsável todos os dias no hall do prédio, sem máscara, colocando em risco a saúde de todos nós?”. O porteiro disse quem era, seu nome, o apartamento que mora, que o senhor se nega a usar máscara e diz que tudo isso é invenção de jornalistas.

 

Não tem carneirinho certo

Terça-feira, 2 de junho

É dia 2 de junho, uma terça-feira. Apertei o adiar do despertador várias vezes. Era melhor ter colocado meio-dia em vez de fatiar o sono assim, de dez em dez minutos, desde as 9h30. O cuco insistente gritando na tela. Nem dorme, nem sonha, nem levanta. A gata veio, subiu na cama, lambeu meu braço, língua de amolador na minha pele-faca. Persianas, sol, sede. Levantei, passei um café. E emendei assando peito de frango para o almoço. Demorei muito para dormir na noite anterior. Essas últimas noites têm sido de insônia. Saudades de mainha. Pensei que há tempos não nos encontramos. Pensei na sua idade avançada. Pensei na morte. E se não der tempo de nos despedirmos? Depois do almoço, comprei maçãs, peras, uvas e fui visitá-la. Já pode abraçar?, ela me perguntou. Tirei a camisa, passei álcool pelo corpo todo – já que fui de Uber – e demos um abraço desajeitado. Os dois de máscaras. Mainha chorou. Passei meia hora com ela e voltei pra casa desejando que esse vírus desapareça.

 

Acorda!

Terça-feira, 09 de junho

Hoje acordei com um telefonema do amigo da literatura: acorda, que eu tenho uma notícia boa para te dar: você foi selecionado no edital do Itaú, parabéns! Fui ver meu nome no site e pulei da cama. Meu miniconto foi selecionado entre 12.982 inscritos. Título do meu conto: “Os peixes não têm pálpebras, mas isso não significa que não dormem”. Fiquei feliz pelo reconhecimento e o dinheirinho vai dar pra segurar a onda um pouco. Abri um Casal Garcia, tinto, e brindei com meu companheiro. Agora, no fim da tarde, a amiga da publicidade perguntou se eu estava aceitando freela. Eu: oiiii, touuuuuu, manda, tou sem trampo, é o quê? A amiga da publicidade: “estou precisando desenvolver dois guias com os temas 1) como comprar um carro seminovo, 2) como vender um carro seminovo; no máximo 40 páginas, cada.” Eu: não, quero não, socorrorrrr. A amiga da publicidade: hahaha, eu imaginei, mas vai q. Eu: obrigado por lembrar de mim, mas 1) é sobre carro, 2) até 40 páginas cada guia. A amiga da publicidade: eu não tô podendo e mesmo se eu pudesse, ia querer n, escrever TCC sobre carro é foda, por mais que eu trabalhe pra seis concessionárias ao mesmo tempo agora, nada me paga isso, kkkkkk. Precisando de grana, os boletos não param de chegar, mas me dei o luxo de negar esse job.

 

Dia 108

Quarta-feira, 01 de julho

Já estou familiarizado com cada cômodo da casa.

Sei onde a poeira deita e dorme sorrateira.

O horário em que o sol fica mais forte quando invade a sala e esquenta minha perna esquerda.

O lugar preferido das gatas nas manhãs, tardes, noites e madrugadas.

Os livros pela metade.

Os livros que não param de chegar.

Os livros pedindo resgate para serem lidos.

As máscaras amontoadas na estante.

Como acordam os travesseiros, os vincos do lençol.

As embalagens de xampu disputando espaço no box.

As infiltrações (não só das paredes).

Os panos de chão abandonados no tanque.

A roupa suja empilhada no cesto.

O pão dormido em cima da geladeira criando bolor.

As bandejas de gelo fazendo iglu no congelador.

As plantas crescendo em direção ao elevador.

Nossos chinelos do lado de fora sentindo-se em casa, mas lembrando-se que não estão.

Manchete neste Dia do Trabalhador: Número de mortos pelo coronavírus no Brasil passa de 60 mil.

 

Não escreva “novo normal”

Sábado, 11 de julho

Meu namorado perguntou até quando vou escrever este diário. Até termos a vacina contra a Covid-19, até quando tudo voltar ao normal. Voltará?

CLEYTON CABRAL, escritor.

Publicidade

veja também

Gambiarra: por uma ruína que abrigue a palavra amor

A construção de um verbete

‘Agora’: quando o abismo se apresenta