Curtas

O escândalo do século

Livro reúne 50 textos de Gabriel García Márquez para jornais e revistas

TEXTO Adriana Dória Matos

02 de Setembro de 2020

Gabriel García Márquez

Gabriel García Márquez

Foto Divulgação

[conteúdo na íntegra | ed. 237 | setembro de 2020]

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Assim como em sua obra literária, um fenômeno ocorre na obra jornalística do colombiano Gabriel García Márquez (1927-2014): abundância. Claro, dezenas de adjetivos favoráveis poderiam acompanhar seu legado textual, mas, por enquanto, fiquemos com esse substantivo. Gabo foi um escritor profícuo e isso se torna um privilégio para seus leitores e fãs, que podem conviver com ele em muitos momentos. O livro O escândalo do século, lançado recentemente pela Record (350 p.), surge como uma palinha da produção jornalística do autor de Cem anos de solidão, um volume que serve de introdução ao material farto que ele produziu para jornais e revistas.

Quando dizemos que é um volume introdutório, não se trata de eufemismo, visto que sua obra jornalística foi compilada originalmente em cinco volumes por Jacques Gilard e, em edição brasileira (também pela Record), recebeu tradução e títulos que a subdividem em Textos caribenhos, Textos andinos, Da Europa e da América, Reportagens políticas e Crônicas. Em O escândalo do século, estão reunidos 50 textos de sua autoria, publicados entre os anos 1950 e 1984, dispostos cronologicamente e sempre com a referência de onde e quando foram publicados, ao final de cada um deles.

Quem fez essa seleção foi o editor Cristóbal Pera, que explica suas escolhas assim: “O critério de seleção foi pessoal e tentou evitar qualquer categorização acadêmica, estilística ou histórica. Como leitor e editor de García Márquez, escolhi textos em que se mostre latente essa tensão narrativa entre jornalismo e literatura, em que as costuras da realidade se estendam por seu incontrolável impulso narrativo, oferecendo aos leitores a possibilidade de desfrutar uma vez mais do ‘contador de histórias’ que foi García Márquez”.

Tendo essa premissa como verdadeira e aferível, o leitor identificará nos textos deste volume nuances narrativas que os aproximam, estilisticamente, do artigo, da crônica, da reportagem e do colunismo. Mas essa distinção de gêneros, nem sempre evidente ou necessária à fruição dos textos, não significa uma mudança de voz narrativa, porque a visão de mundo de Gabo – irônica, lírica e sensível ao absurdo e fantástico da realidade – prevalece em todos eles.


Coletânea compila textos escritos pelo colombiano entre 1950 e 1984.
Imagem: Divulgação

Uma ação também interessante nesta leitura é acompanhar a evolução da história latino-americana e europeia, no recorte temporal estabelecido para o livro, junto ao amadurecimento do autor. Na sua nota introdutória, Pera comenta sobre isso: “O leitor encontrará textos juvenis de imprensa, nos quais o narrador principiante tenta achar um motivo que lhe permita cruzar a linha em direção ao literário, (...) bem como muitos dos apaixonantes artigos escritos para a ‘tribuna’ de El País, em sua última e prolífica fase de 1980”.

Cada escolha de textos preferidos é arbitrária e válida para cada um de nós leitoras e leitores, mas certamente o texto que intitula este livro é incrivelmente bom, comprovem depois de lerem. O escândalo do século – morta, Wilma Montesi passeia pelo mundo é um relato que foi enviado de Roma e publicado em setembro de 1955, em 13 episódios, no jornal El Espectador, de Bogotá. Nele, Gabo manipula de modo exemplar as informações em torno do desaparecimento e morte de uma jovem italiana anônima, imitando o formato burocrático de boletins policiais e apontamentos investigativos. A partir dessa mimese, ele vai oferecendo ao leitor o desenvolvimento do caso, como ele ganha lances sensacionalistas nas notícias de imprensa, enquanto expõe a complexa teia social que envolve diferentes camadas sociais e a elite italiana, seus privilégios e corrupção. Uma maravilha de narrativa.

Há vários outros exemplos saborosos desta leitura, em que nos deleitamos com a sensibilidade do escritor e a sua habitual capacidade de enredar o prosaico e o fantástico.

Faz um tempo, viralizou na internet um texto em que García Márquez declarava seu amor incondicional ao jornalismo, “a melhor profissão do mundo”. Agora, quando enfrentamos tantos questionamentos e descrenças em relação à profissão, ler textos como estes serve de sopro e estímulo, afora o ensinamento, não só para jornalistas, mas sobre o jornalismo e a literatura, que estão longe de serem atividades passatempos ou desimportantes. A obra cheia de bons adjetivos de Gabo é prova disso.

ADRIANA DÓRIA MATOS, editora da revista Continente e professora do curso de Jornalismo da Universidade Católica de Pernambuco.

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