Curtas

Manual de sobrevivência para dias mortos

Novo disco do cantor e compositor China recupera as suas origens punk e entra em combate contra os retrocessos políticos e sociais

TEXTO THAÍS SCHIO

05 de Agosto de 2019

Capa do novo disco de China, 'Manual de sobrevivência para dias mortos'

Capa do novo disco de China, 'Manual de sobrevivência para dias mortos'

Foto PAMELLA GACHIDO/DIVULGAÇÃO

[conteúdo na íntegra | ed. 224 | agosto de 2019]

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No Brasil pós-golpe ou das fake news, enquanto boa parte da população aponta culpados em suas redes sociais, a política de desmonte deixa mais fissuras além da provocada pela quebra da ordem democrática decorrente do impeachment de Dilma Rousseff. São milhares de pessoas afligidas pelo desemprego, corte de políticas sociais e as inúmeras violências, físicas e simbólicas, impossíveis de ignorar. É dentro desse território de distopias que surgiu Manual de sobrevivência para dias mortos, novo álbum de China.

Insatisfeito com o cenário de constantes violações, o artista resolve utilizar a palavra, a caneta e o papel, não somente para expressar os próprios (res)sentimentos, mas como arma de combate à sociedade de consumo e alienação cultural. Nesse sentido, o Manual coloca luz nos retrocessos e oferece reflexões para dias melhores, um diferencial em relação aos seus discos solos anteriores, mais voltados para as descobertas internas do eu lírico. “O compositor é um cronista da realidade. A gente vai captando o que vê e ouve, o que sai nos jornais, transformando isso nas canções. Esse álbum surgiu muito da palavra sobreviver e do que ela significa nos dias atuais”, explica o artista.

Herdeiro do punk e do manguebeat, último grande movimento desde a tropicália, o cantor natural de Olinda, que integrou a banda de hardcore Sheik Tosado, na década de 1990, recupera suas origens identitárias no quarto álbum. Entregando, nas onze faixas, o fervor de questionamentos afiados e precisos, evidenciados através da presença dos guitarristas Neilton, da banda punk e periférica Devotos, e Andreas Kisser, da heavy metal Sepultura. Além, é claro, da expressividade e força anunciadas pela percussão, que passeia entre o agogô, zabumba, surdo, entre outros instrumentos liderados pelo músico, também pernambucano, Lucas dos Prazeres.

Desde a primeira faixa Vivo?, é nítida a presença dos ritmos que habitam o imaginário nordestino e popular. A resistência do coco, maracatu e frevo ecoam na obra e recebem uma roupagem política e social. “A gente fala para mais pessoas quando fala do nosso interior, das coisas que temos, do nosso folclore, nossa cultura. Essa volta foi, sim, proposital, de olhar para esse lugar, de traçar uma nova trajetória a partir da minha origem, das coisas que fui aprendendo, das parcerias que fiz. Toda essa bagagem deságua nas canções desse disco”.

Para além das referências regionais, as melodias se misturam com o punk rock de bandas internacionais como The Stooges, Gang of Four e Sex Pistols, que, de tão pungentes, descartam o “virtuosismo dos solos de guitarra”, sendo ainda mais cruas. Segundo China, essa urgência teve influência direta de Yuri Queiroga, produtor do disco e amigo do compositor. “A gente trabalha juntos há 15 anos, ele me instigou em vários lugares que estavam adormecidos. Quando a gente se encontrou para pensar no disco, acabamos compondo as bases e as primeiras ideias do disco inteiro quase no mesmo dia”.

Outro destaque são as vozes femininas que perpassam o álbum, dando ainda mais impulso para as narrativas das faixas posteriores. Em Moinhos de tempo, por exemplo, a poesia sem arrodeios de Bell Puã, representante do Brasil na Copa do Mundo de Slam, em 2018, imprime a força de um gênero que arranca as grades colocadas por forças masculinas, “Fazem rebuliço só de pensar/ Que Jesus podia ser negro/ Que dirá uma preta contrariando estatística/ Falando poesia marginal/ Afrontando a literatura elitista”. Além dela, também participam a cantora Natália Matos, conferindo sutileza ao refrão de Mareação e Uyara Torrente (A banda mais bonita da cidade) que evoca “fontes inesgotáveis de esperança e fé” em Pó de Estrela.

Se toda a preocupação com a rigidez das narrativas do álbum já era evidente, quando China apresenta suas referências literárias, fica ainda mais óbvia. Na música O Selvagem, a teoria da evolução de Charles Darwin aparece como crítica: “Autoconsciência, seleção natural/ Predadores, parasitas da aldeia global/ A continuidade e a existência do ser/ O inimigo é necessário para me fortalecer”. Em Mareação, o cantor busca no olhar estrangeiro da poeta Elizabeth Bishop a compreensão da “insuportável alegria de viver”, tão presente nos brasileiros. O futurismo de escritores como Isaac Asimov e Philip K. Dick também foram peças importantes, além dos clássicos nacionais, Memórias do Cárcere de Graciliano Ramos e Grande Sertão: Veredas de João Guimarães Rosa.

Mas apesar da pluralidade de fontes, o teor de manual se mantém a partir de uma linguagem simples, extremamente importante dentro do contexto atual. “Precisamos conhecer nossa história, criar senso crítico e ler de tudo para entender e opinar sobre as manobras que são impostas todos os dias. Espero que esse disco instigue as pessoas, assim como quando ouvi as canções de Chico Science, O Rappa, Mundo Livre S/A, que abriram minha cabeça para tantos lugares”, relembra.

THAÍS SCHIO é estudante de jornalismo da Unicap e estagiária da Continente.

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