Curtas

José mergulha para sempre na piscina azul

Eis o título do quarto livro de poesias de Marcelo Reis de Mello, lançado este ano pela Garupa

TEXTO Erika Muniz

02 de Setembro de 2020

Marcelo Reis de Mello é poeta curitibano radicado no Rio de Janeiro

Marcelo Reis de Mello é poeta curitibano radicado no Rio de Janeiro

Foto JULIANA TRAVASSOS/DIVULGAÇÃO

[conteúdo na íntegra | ed. 237 | setembro de 2020]

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Não vejo nenhuma diferença de princípio entre um aperto de mão e um poema.

(Paul Celan)

Rio de Janeiro, domingo, 5, e segunda-feira, 6 de março de 1972. Ano LXXXI, número 281. Classificados de emprego, achados & perdidos e anúncios emolduram algumas das manchetes daquela edição dupla do Jornal do Brasil. Dentre os destaques, alguns deles são: “Uruguai aumenta álcool e combustível em 100%”, “Estado recebe 750 mil alunos de volta às aulas” e “Briga envolve 50 posseiros e índios e fere 14”. Esta última, sobre uma disputa territorial entre posseiros e indígenas tapirapés, que lutavam pelo direito ao Parque Aripuanã, no Mato Grosso. Na mesma página, meio espremida na diagramação, uma notícia destoa da linguagem objetiva comum aos textos midiáticos, pelo modo sensível e poético com que apresenta o sujeito noticiado e pela delicadeza que narra o triste acontecimento em torno de José. Quase quatro décadas depois, a tal notícia José mergulha para sempre na piscina azul tornou-se o título do quarto livro de Marcelo Reis de Mello, lançado este ano pela Garupa.

Nascido em Curitiba (PR), em 1984, Marcelo viveu parte da infância e adolescência em Ponta Grossa, município do interior paranaense. Há 11 anos, escolheu o Rio como sua morada. Chegou à capital carioca para tentar a vida como escritor, sem planos acadêmicos. Poucos anos depois, no entanto, retomou os estudos com as letras e, desde 2016, leciona Literatura no Coart, centro cultural da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ). Entre a docência e a vida ligada à cena poética da cidade, ele publicou anteriormente Esculpir a luz (Cozinha Experimental, 2010), Violens (7Letras, coleção Megamíni, 2016) e Elefantes dentro de um sussurro (Cozinha Experimental/Azougue, 2017) e vem integrando alguns compilados e antologias. É, ainda, cofundador da editora carioca Cozinha Experimental, junto com Germano Weiss, e da Oficina Experimental de Poesia, ao lado de Heyk Pimenta.

Para os que já ouviram a respeito dessa chamada noticiosa do JB, evidencia-se o mistério em torno de sua autoria. Essa espécie de encantamento tocou Marcelo. “Talvez um dia a gente descubra [quem a escreveu], fiquei fascinado por ela”, afirma o poeta, em entrevista à Continente. Na notícia, a história de José Carlos Pinto, um operário nordestino que, num fulgor de epifania ou desespero, pulou o muro de uma mansão na Tijuca para experimentar um banho de piscina “que lhe deu um instante de prazer e a eternidade dura dos que nascem e morrem pobres”.

No período de sua publicação, vários nomes da literatura tinham colunas em jornais de grande circulação pelo país. Não há como garantir uma autoria, já que o texto não é assinado, mas, por exemplo, o poeta mineiro Carlos Drummond de Andrade pertencia ao quadro de cronistas do Jornal do Brasil naquele ano. Teria sido o autor do poema José responsável pelos dois sensíveis parágrafos na primeira página do jornal? Outro acaso – ou peripécia de algoritmo da rede social mesmo, como preferirem – fez com que o recorte de jornal com a notícia aparecesse na timeline do Facebook de Marcelo, entre 2016 e 2017. Logo que o visualizou e teve sua atenção fisgada, soube que aquele seria o título de seu próximo livro.


José mergulha para sempre na piscina azul é o quarto livro de Marcelo
Reis de Mello
. Foto: Juliana Travassos/Divulgação

Com 23 poemas produzidos entre 2017 e os meses finais de 2019, José mergulha para sempre na piscina azul é, de certa maneira, costurado por alguns acontecimentos (e tragédias) que marcaram o Brasil e o mundo nesse recorte temporal. O incêndio do Museu Nacional, a intensificação das queimadas na Amazônia, as catástrofes de Brumadinho e Mariana, todos estão relacionados à ascensão do neoliberalismo e da crescente desvalorização de nossos bens naturais, memórias e das vidas mesmo. Eles, em certa medida, respingam ao longo das páginas do livro, mesmo quando não aparecem literalmente.

Há, por vezes, qualquer coisa de melancolia, mas o fogo, enquanto elemento polissêmico, destaca-se como uma das chaves de leitura da publicação. Certas tensões ao longo da leitura também pairam através de imagens entre a água (“piscina de azulejo”, “mar absoluto”, “mergulho azul”) e o fogo (“incendiários”, “a vida segue morna”, “um instinto de pira”), ou mesmo entre frio e calor. Para exemplificar isso, esse tensionamento aparece já no início, através da capa azul escura com tipografia remetendo ao silêncio de uma piscina seguida pela calorosa epígrafe “Pôr fogo em tudo, inclusive em mim”, emprestada do poema A flor e a náusea, de Drummond. É constante também uma bruma que turva o que seria a voz dos poemas e a voz do poeta em diversos momentos do livro.

Com edição assinada por Juliana Travassos e Eduardo Coelho, a primeira tiragem de José mergulha para sempre na piscina azul foi produzida com técnica de serigrafia, a capa minimalista é criação de Luiza Aché. Integrando o conjunto de lançamentos previstos para este ano da Garupa, a publicação está disponível para venda no seu site, www.leiagarupa.com. Outros títulos que sairão pela editora carioca, ainda neste semestre, são Escoliose, de Ana Frango Elétrico, dois pontos pescoço x sobreviventes, de Carla Diacov e experiências sobre editar um corpo, de Letícia Feres.

ERIKA MUNIZ é jornalista e tem graduação em Letras.

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