“Matilde Campilhonasceu em Lisboa, em 1982. O seu primeiro livro, Jóquei, saiu em 2014, pela Tinta-da-China, e foi entretanto editado no Brasil e em Espanha”. As informações dispostas na orelha de Flecha, lançado pela poeta e escritora portuguesa em julho, estão corretas e, embora um tanto sintéticas, haveriam de caber para apresentá-la. Ou talvez apenas com o intuito de conjurar uma breve introdução, pois ela não é apenas uma seleta de notas biográficas. Ela pode ser a força da natureza nas “pétalas num ramo negro, molhado”, como a epígrafe pinçada de Ezra Pound em Jóquei; ou o mistério das narrativas que, ao nascer, afugentam noções de autoria ou driblam a inexorabilidade da morte... Afinal, “importa o fôlego que é comum ao vento, ao fogo, à garganta humana: o sussurro das histórias é permanente e liga tudo. A unir os pontos e a atravessá-los está, desde o princípio, a flecha”.
Flecha (Tinta-da-China, 2020) é, pois, “um livro de histórias”, garante a própria Matilde Campilho na apresentação do volume. É prosa, em enigma e assombro, na qual os personagens viajam do mítico imperador romano na iminência da sua mais célebre travessia – “De súbito, sem saber se aquilo era já o devaneio da febre ou o auxílio celeste, o líder militar sente a voz de alguma deusa lamber-lhe o ouvido direito. Levanta então a cabeça na direção da água, faz um sinal às tropas, e segreda assim às suas sandálias: Alea jacta est. Constipado e mais ou menos confuso, César atravessa o Rubicão” – a animais e objetos em diferentes condições perante o mundo. “Um bezerro fita os seus quatro irmãos de leite e cruza a cerca farpada para o lado de lá”, é a única oração de uma das 239 histórias. “Um cachecol branco de caxemira está enrolado num cabide há pelo menos oito meses”, diz uma outra.
Leonardo Da Vinci na apreensão da forma da água, Telémaco, assim na grafia lusa, uma menina com o raio de David Bowie, “mais espantado ainda, Jonas repara que a caverna era afinal o bicho, um que nada agora para sempre para longe dele”, Beethoven a perceber um “zumbido incómodo no seu ouvido direito” ou um melro que “pousa as duas patas no galho mais forte de um plátano, e canta”... Pessoas e bichos se fundem em uma urdidura dramática de cadência próxima ao versos livres de Jóquei: “Poderia escrever teu nome 70 vezes seguidas mas isso não espantaria a saudade que sinto de dizer o teu nome entre sal e dentes”, abre Dia de São Tomé na compilação de poemas de seis anos atrás, mas se encaixaria entre as setas de Flecha. Partilham, afinal, o mesmo DNA. “Certas formas nos pertencem muito para além da memória”, descerra a poeta ao término de A volta no cadillac de Billy J, também do seu livro inaugural.
Em Matilde Campilho, tudo parece estar interligado: no que ela escreve, no que fala como um cântico de acento luso, no que ela escolhe tocar no Pingue Pongue, o programa de rádio que divide com Tomás Cunha Ferreira na Rádio e Televisão Pública de Portugal – RTP, e no que ela cria para além dos livros e se transforma em conteúdo difundido, analisado e reverenciado em vídeos postados nas redes sociais – vide Fevereiro, aquele que se alastrou como um frevo no país do Carnaval ao começar com “Escute só, isto é muito sério, anda, escuta que isso é sério! O mundo está tremendamente esquisito. Há dez anos, o Leon me disse que existe uma rachadura em tudo e que é assim que a luz entra, não sei se entendi. Você percebe alguma coisa da mistura entre falhas e iluminação?”.
É dessa mescla entre “falhas e iluminação” que se impõe, também, a escrita dela, contudo não como uma obra antitética, em que existiriam os personagens históricos, as invenções de sua fértil mente, as referências literárias e as feras como os felinos de grande porte, ora a pantera negra de Flecha, ora o tigre de Jóquei, compartimentados como se uns fenecessem ante a visão do outro. Mas como um conjunto em que toda a vida e a matéria de que ela é feita (memória, desejo, as paisagens do Rio de Janeiro onde Matilde morou, as canções de Leonard Cohen, Gal Costa, Bob Dylan, Maria Bethânia que ela ouve) erigem-se, lado a lado, em contiguidade. Nunca a exclusão. Apartar-se de frui-las, e do processo de esculpir suas frases e o próprio tempo, não é algo que apetece a autora. Mas, sim, o oposto diametral: ela sorve as histórias, e as regurgita em sua caligrafia própria, firme, envolvente, como quem se deleita. “São histórias no fundo”, ouve-se a sua voz a discorrer em Semear e estar aberto, episódio de setembro último do Pingue Pongue.
“Uma rosa albardeira desponta ao sol” é o fim das mais de duas centenas de narrativas de Flecha. Matilde Campilho, então, desvela o post scriptum Dardo ou flecha despedida, uma investigação ensaística em que nos conduz por cotejos e apontamentos, com presenças díspares como Ismael, o narrador de Moby Dick, Charlie M. Schulz, o criador de Peanuts, descobertas arqueológicas e a Ilíada de Homero, Dante, Salomé e Anna Akhmatova. “A flecha há de cair na terra, para semear a Terra de Terra de vez”, ela sinaliza. Não há necessidade de explicação. “Podemos passar a vida inteira a tentar decifrá-la, podemos desviar-nos dela ou segurá-la com unhas e dentes tentando exercer sobre ela algum controlo. Nalguns dias há sucesso. Noutros, seja num minuto de desatenção ou até de tristeza, arriscamo-nos mesmo a levar com ela no olho”, reforça.
O fato é que Matilde Campilho, com sua eloquência sucinta para forjar seu corpo poético e agora de prosa com tanta vastidão nas palavras, mas extrema coesão nos títulos, faz de Flecha algo tão distinto de, porém sanguineamente aparentado e fiel a, Jóquei. E nesse segundo livro, ainda sem previsão para o Brasil (a Editora 34, que publicou Jóquei, não se pronunciou e a Tinta-da-China informou que não possui “os direitos de publicação da obra de Matilde no Brasil”), ela continua sua cativante fabulação semântica e sonora, não sem enveredar por uma cosmogonia muito sua.
“A flecha que atravessa o mundo nunca desaparece, não desiste, não fecha a porta na cara de ninguém. Ela apenas existe, assobia, plana sobre tudo sem ceder a pressões humanas. Milhões de feitiços, não isentos de medo, esperam sempre por nós. Que bom que é poder deixá-los à cabeceira, enrolados no cabo ou na flecha, e apontar os sonhos ao dia seguinte. Entre o sono e a vida, um dia de cada vez, caminhando sobre a caruma, vamos escutando e contando as histórias. Uns aos outros, a nós mesmos, e àqueles que vêm depois de nós.”
LUCIANA VERAS é repórter especial da Continente e crítica de cinema.