FOTOS E VÍDEO CAMILLA SANTOS DIAS
06 de Janeiro de 2020
Elizeu Braga tem dois livros publicados: 'Cantigas' (2015) e 'Mormaço' (2017)
Foto Camilla Santos Dias
[conteúdo exclusivo Continente Online]
é o rio que corta a cidade
ou é a cidade que enforca o rio
(Elizeu Braga, poema sem título, do livro Mormaço, 2017)
Em viagem de barco, a cinco horas de Porto Velho (RO), localiza-se a vila ribeirinha Itacuã. Costurada pelo Rio Madeira, a região tem sua origem vinculada ao ciclo da borracha, período de maior extração do látex no Norte, quando gente de todo canto do mundo ia parar lá. Foi nesse lugar que, em 1985, nasceu Elizeu Braga, filho caçula de uma família de sete irmãos. Durante quase toda sua infância, não havia luz elétrica, os moradores viviam da pesca, caça e troca de mantimentos para suas subsistências – inclusive seus pais, Maria e Raimundo. Enquanto o Brasil experimentava um direcionamento cada vez maior ao que muitos entendem como “progresso”, afastando-se de seus saberes antigos, o garoto cresceu imerso nos conhecimentos de quem é capaz de ler a floresta e seus jeitos.
Diariamente, escutava histórias e cantigas que são parte das comunidades beiradeiras – como dizem os que vivem à beira d'água – há muitas e muitas gerações. Quando Elizeu ainda morava entre Itacuã e Cujubim, outra vila à beira do rio, uma das marcantes histórias contadas por dona Raimunda, sua avó materna, era a de uma criança que nasceu e já sabia falar com poucos dias de vida. “Nossa! Como isso aconteceu? Como uma criança nasce e, de repente, já sabe o nome das coisas?”, questionou Elizeu, durante nossa conversa, em sua vinda recente ao Recife, cidade escolhida por ele para trabalhar em seu terceiro livro. Pelo visto, Elizeu teve a quem puxar a habilidade de envolver ouvintes enquanto narra...
Na história relatada por dona Raimunda, a tal criança, além de falar, com algumas noites também caminhava e poderia se transformar em muitas coisas. No entanto, acabou acreditando que sabia de tudo e adentrou a floresta sem respeitá-la. Só que os espíritos da mata se uniram e separaram sua cabeça do corpo. Um pouco desesperada, a cabeça resolveu voltar à aldeia dos Kaxinawás, povo indígena do Norte, mas ninguém queria mais conversar com ela, “porque ninguém conversa com uma cabeça sem o corpo”, complementava Elizeu. A mãe a pegou no colo e disse que se ela quisesse ficar por ali, teria que se transformar em algo que ainda não existe. Precisou, então, se afastar para pensar. “Pensou, pensou, pensou” e chegou à conclusão de que não existia nem arco-íris, nem lua. Pegou sete fios coloridos e os atirou em direção ao céu. Por esse caminho, a cabeça subiu, mas antes de desaparecer na imensidão, disse: “Quem me vir lá de cima e não me reconhecer, será castigado”. Assim nos contou a sua versão para a origem da lua.
Histórias como essa servem de base para trabalhos artísticos do poeta e ator Elizeu Braga. Mas são também para onde aponta sua maneira de enxergar o mundo. “Há algumas coisas que acompanham a gente. Vivo praticamente escutando essas histórias o tempo inteiro na minha cabeça, para tentar não cair nas artimanhas das outras histórias que são contadas. O mundo é feito de narrativas e você escolhe em quais acredita. O que te faz ficar em comunhão com a natureza? O que te leva para perto dos seus antepassados? O que te faz ficar em paz consigo mesmo?”, provoca. Quando adulto, pesquisando sobre a origem dessas histórias, ele descobriu que esses contos estão no imaginário indígena Kaxinawá e Tenharim, que possivelmente compõem sua ancestralidade.
Entre 10 e 11 anos, por conta de um triste acontecimento em sua família, um caso de violência doméstica, Elizeu foi viver com a tia-avó Joana, em Porto Velho. Como ela também colecionava histórias, trazidas do tempo em que viveu na comunidade de Bom Jardim, tornou-se outra referência para o artista. Na varanda de sua casa, havia o hábito diário de leitura. Muitas vezes, ele só saía para jogar bola com os amigos, depois que ela terminava de ler para ele. “Me incentivou a ler, a pegar livros e escutar o mundo.”
Nem só de boas lembranças, no entanto, foi esse período de chegada à capital, pois enfrentou o preconceito contra os que, como ele, vêm da beira do rio. A saída que Elizeu encontrou foi tentar negar tudo isso. De seus traços à própria maneira de falar, visto que o lugar de onde vinha era percebido, muitas vezes, como de não-existência. Para alguns, toda a potência dessas vozes e ensinamentos que trazia consigo não serviam de nada. Felizmente, através da relação com a poesia, ele percebeu que os que pensavam assim estavam totalmente equivocados.
“Para a narrativa da cidade, os indígenas são vistos sempre como inferiores. Aquilo foi uma confusão na minha cabeça. Eu jogava fora a tapioca que minha tia me dava para eu lanchar. Eu me perdi da minha alma nesse período. Tinha que me tornar uma outra coisa, querer ter outra cor, ter outros olhos, falar de outro jeito... É terrível a colonização”, declarou na entrevista à Continente.
Através de um poema de Cecília Meireles, intitulado A chácara do Chico Bolacha, foi que ele se reencontrou consigo. “Mesmo nos instantes em que me neguei, nunca me desprendi de mim. A arte me fez sair”, afirma. Elizeu abraçou a leitura como uma espécie de refúgio. “Gostava muito de ler alguns poemas escritos nos livros por uma identificação com a oralidade dos meus avós e avôs”, relembra.
Diante da violência simbólica que experimentou nos primeiros anos na cidade, Elizeu aprimorou, ainda mais, seu ofício de contador de histórias. Nos anos 2000, em Rondônia – um dos centros do agronegócio no país –, o Movimento Beradeiro ganhou força. Assim, as produções artísticas oriundas dessa busca pela identidade ribeirinha receberam, cada vez, mais o reconhecimento e o respeito que sempre mereceram. Em 2013, junto a outros artistas do estado rondonense, ele fundou a Arigóca, um espaço cultural acolhedor, em Porto Velho, destinado a encontros artísticos, lançamentos de livros, saraus, oficinas. Tudo isso acabou suscitando um sentimento de orgulho para Elizeu.
O poeta tem dois livros publicados: Cantigas (2015) e Mormaço (2017), ambos lançados de modo independente, a partir de um trabalho coletivo de publicações cartoneiras (feitas, principalmente, através do reaproveitamento de papelão). No primeiro, com capa elaborada por Edison Arcanjo, ele explora a palavra cantada, vinculada à tradição de seu lugar de origem, o Madeira. Em Mormaço, por sua vez, é a palavra falada que dá o tom aos poemas.
Na busca por entender sua forma de declamar, destaque nos diversos eventos de literatura que participa pelo Brasil, Elizeu percebeu que, no Norte do país, os cantos indígenas perpassam a maneira como o poema chega à voz. Diferente de outras regiões do Brasil, como o Nordeste, cujos traços do trovadorismo prevalecem nas declamações. Portanto, são as evocações xamânicas e dos curandeiros que lhe servem de influências. “O canto, para mim, vem muito de acessar esse lugar do invisível.”
Desde novembro, Elizeu trabalha no novo livro, cuja narrativa será mais longa, possivelmente um romance. Dedica-se diariamente à escrita, mas também tem participado de eventos artísticos na capital pernambucana. O título ainda não está definido, mas oscila entre Itacuã ou História da mulher que aparou com as mãos o próprio sangue. À medida que suas ideias vão tomando as páginas, essa decisão chega. Mas uma coisa é certa: o poeta pretende lançá-lo ainda neste semestre, em Porto Velho. Imerso entre tantas histórias, ele mesmo costuma dizer: “O mundo é feito de narrativas”. E nos cabe, portanto, buscá-las e contá-las o quanto antes, para que não o façam por nós.
Fechamos escolas
Abrimos prisões
Desprezamos livros
Cultuamos armas
A vingança é a nossa melhor compaixão
Ninguém é mais bobo de acreditar no outro
Estraçalho de bala a cara do menor fodido que me ataca
Choro as lágrimas da mãe da vítima que lamenta
E beijo a mão do deputado que me representa
Tá com pena leva pra casa
Dá licença que vou pra igreja
Jesus me proteja no caminho
(Toada de um cidadão de bem, do livro Cantigas, 2015)
Em tempo: Os livros Cantigas e Mormaço estão à venda no valor de R$ 25 (cada) + frete para todo o Brasil. Os pedidos podem ser realizados através do e-mail casadepoemas@gmail.com e também a partir do Facebook de Elizeu Braga. Até o final de janeiro, o poeta está no Recife e as encomendas na cidade poderão ser entregues em mãos.
ERIKA MUNIZ é jornalista e bacharel em Letras.