Curtas

A força do cinema feito por mulheres

Festivas de Veneza e Toronto, realizados neste mês, apresentaram número recorde de diretoras, com 'Nomadland' vencendo, respectivamente, o Leão de Ouro e o prêmio do público

TEXTO Mariane Morisawa

24 de Setembro de 2020

Frances McDormand protagoniza 'Nomadland', dirigido pela chinesa radicada nos Estados Unidos Chloé Zhao

Frances McDormand protagoniza 'Nomadland', dirigido pela chinesa radicada nos Estados Unidos Chloé Zhao

Foto Divulgação

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Em 2020, os festivais de
cinema são uma das faces mais visíveis do impacto da pandemia de Covid-19 na arte, nos últimos seis meses. Alguns acabaram cancelados, como Cannes, que aconteceria em maio, e Telluride, em setembro. Outros optaram por versões híbridas, como Toronto, encerrado no domingo (20), com algumas sessões ao vivo para o público local e o resto, inclusive as exibições para imprensa, virtual.

Veneza, que aconteceu entre 2 e 12 de setembro, foi o primeiro a arriscar uma volta presencial, tomando uma série de medidas de segurança e reduzindo o número de credenciados. Tanto Veneza quanto Toronto precisaram diminuir o número de filmes. A boa notícia foi a participação feminina. Dos 18 longas disputando o Leão de Ouro, sete foram dirigidos por mulheres, e um codirigido por uma mulher – um recorde. No ano passado, apenas dois da competição eram de diretoras. Toronto também teve um recorde, aproximando-se da paridade com 46% dos filmes dirigidos por mulheres.

E é dirigido por uma mulher, a chinesa radicada nos Estados Unidos Chloé Zhao, o filme que, pela primeira vez na história, ganhou tanto o Leão de Ouro quanto o prêmio de público de Toronto, ambos considerados bons termômetros para a temporada hollywoodiana de premiações que culmina no Oscar. A coincidência poderia ter se dado devido ao menor número de produções disponíveis em cada um dos eventos, claro. Mas Nomadland, estrelado por Frances McDormand, não foi premiado porque não havia coisa melhor. O filme é perfeito para o momento de desesperança que acontece não somente por causa da pandemia, mas também da inevitável crise econômica, da desigualdade, do mergulho no autoritarismo e do ambiente saturado de informações, boa parte mentirosas. Nomadland vai em busca do que é mais humano e reestabelece uma certa confiança de que o ser humano tem jeito.

Zhao segue mais ou menos o mesmo método de seus dois longas anteriores, Songs my brothers taught me (2015) e Domando o destino (2017), uma tradução pouco feliz de The rider. No primeiro, um irmão fica dividido entre sair da reserva indígena onde mora em busca de uma outra vida, ou ficar ao lado da irmã que adora. No segundo, um caubói de uma reserva indígena precisa encontrar novos caminhos depois de sofrer um acidente grave num rodeio. Em ambos, ela se instalou no lugar onde se passam e usou pessoas de lá como atores, contando versões de suas próprias histórias. Em Nomadland, a diferença está no uso de atores profissionais – McDormand e David Strathairn – pela primeira vez. Ainda assim, todos os outros personagens são interpretados por pessoas reais.

O filme se centra na grande comunidade nômade que existe nos Estados Unidos – mais especificamente, aquela descrita por Jessica Bruder em seu livro-reportagem de mesmo nome, formada por baby boomers brancos. Muitos caíram na estrada por causa da crise de 2008. Como Fern, vivida por Frances McDormand, que morava em Empire, no estado de Nevada, transformada em cidade-fantasma apagada do mapa pelo fechamento de uma mina. Ela perdeu o marido, o emprego e a cidade ao mesmo tempo e caiu na estrada, morando numa van e sobrevivendo com trabalhos temporários, como, por exemplo, empacotando encomendas de Natal para a Amazon.

Nomadland, porém, está longe de ser um manifesto contra a economia de bicos, como é o caso de Você não estava aqui, de Ken Loach. Primeiro, porque nem todos estão ali por necessidade. Há escolhas também. Zhao é uma diretora que apresenta a realidade e espera que tenhamos empatia pelos personagens, nos emocionemos com eles e cheguemos a nossas conclusões. Tudo é feito com sutileza. Ela lembra, de certa forma, o documentarista brasileiro Eduardo Coutinho, que postava a câmera na frente das pessoas para captar toda a sua humanidade. Não há vilões nem mocinhos. Nem trama exatamente. O longa é uma experiência, uma ponte de aproximação com gente provavelmente diferente de você, tendo a vasta paisagem do Oeste norte-americano como cenário e horizonte. Não existem divisões políticas nem religiosas à vista. Há solidariedade, amor, possibilidade e dor.

Chloé Zhao não foi a única cineasta do sexo feminino a ter destaque nos festivais. A atriz Regina King, que acabou de ganhar seu quarto Emmy, por Watchmen, estreia na direção de longas com One night in Miami, que ficou em segundo no Prêmio do Público em Toronto, depois de passar fora de competição em Veneza. Com base na peça de Kemp Powers, também autor do roteiro, ela imagina como foi o encontro – real – entre Cassius Clay (Eli Goree), o ativista e líder religioso Malcolm X (Kingsley Ben-Adir), o cantor e compositor Sam Cooke (Leslie Odom Jr., do musical Hamilton) e o jogador da NFL Jim Brown (Aldis Hodge) na noite da vitória-surpresa do boxeador, depois conhecido como Muhammad Ali, sobre Sonny Liston, em 25 de fevereiro de 1964.


Cena do filme One night in Miami, de Regina King. Imagem: Divulgação

Clay se tornou campeão mundial dos pesos-pesados, e eles comemoraram num pequeno motel em Miami. Os quatro eram – são – modelos para homens e mulheres negros que lutam contra o racismo, o preconceito e a falta de oportunidades. O grande trunfo do filme, uma sólida estreia de King, é mostrar, com a ajuda de quatro performances estupendas, a amizade e as desavenças, além dos debates sobre como ser um homem negro no mundo, ainda mais naquele mundo onde as leis de Jim Crow ainda vigoravam. Não que as coisas tenham mudado tanto assim. Por isso é bom, importante e forte ver quatro homens negros bem-sucedidos falando de suas dúvidas, medos, mostrando concordâncias e discordâncias.

O terceiro lugar no prêmio de público em Toronto também é dirigido por uma mulher, a canadense de ascendência indígena Tracey Deer. A diretora se inspirou num episódio que marcou sua infância, a crise Oka, em que a expansão de um campo de golfe invadiria uma terra indígena sagrada no Canadá. Beans mostra algo raro de ver na tela, uma família pertencente a um povo tradicional, no caso os Mohawks, que luta por seus direitos, mas que também é uma história de crescimento da menina apelidada Beans, pois os brancos são incapazes de pronunciar seu nome, Tekehentahkhwa. O filme nem sempre flui, mas tem um ponto de vista único e sincero sobre o que é ser indígena em tempos modernos e o racismo enfrentado pelos donos originais da terra.

Wildfire, da irlandesa Cathy Brady, explora como o trauma passa de uma geração a outra. No caso, os chamados Troubles, o conflito político-nacionalista-religioso de três décadas na Irlanda do Norte, que destroça a família de Kelly (Nika McGuigar) e Lauren (Nora-Jane Noone). Depois de anos ausente, Kelly volta, provocando uma reviravolta na vida da sua irmã. O filme é intenso, com a relação entre irmãs sendo mostrada cheia de nuances.


Wildfire, da irlandesa Cathy Brady. Imagem: Still de Divulgação/Tempesta Films

Um relacionamento entre duas mulheres também é o tema de The world to come, da norueguesa baseada nos Estados Unidos Mona Fastvold. Nos Estados Unidos do século XIX, Abigail (Katherine Waterston) tenta sobreviver ao luto da perda da filha. A vida na fazenda não a anima – ela tinha sonhos maiores. O marido, interpretado por Casey Affleck, também não. A chegada de uma nova vizinha, Tallie (Vanessa Kirby, que ganhou a Coppa Volpi de atriz em Veneza por seu outro filme, Pieces of a woman, de Kornél Mundruczó), muda tudo. Abigail volta a querer viver. O filme é elegante e retrata com fidelidade a interioridade feminina, além de ter duas performances poderosas das atrizes principais.

A safra dos dois festivais mostra que as mulheres estão ocupando mais espaços, e que é possível fazer um bom festival com vários filmes de diretoras – é só querer. Que não seja apenas resultado de um ano atípico.

MARIANE MORISAWA, jornalista apaixonada por cinema. Vive a duas quadras do Chinese Theater, em Hollywood, e cobre festivais.

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