Curtas

A febre está entre nós

'A febre' (2019), dirigido por Maya Da-Rin, é lançado no circuito aberto após adiamentos por causa da pandemia do novo coronavírus

TEXTO Augusto Tenório

11 de Novembro de 2020

Imagem Divulgação

[Conteúdo exclusivo Continente Online]

A febre está entre nós. Absorva dessa frase duas informações: a primeira é que o filme A febre (2019), dirigido por Maya Da-Rin, será lançado no circuito aberto neste mês de novembro após cancelamento por causa da pandemia do novo coronavírus; outra, de que há, entre nós, uma doença. Enfermidade essa que não se parece com um vírus, mas que, ora chamada de decadência pelos filósofos modernos ou desequilíbrio e conflito pelos ambientalistas e sociólogos, assume o formato de uma febre misteriosa no longa considerado o grande vencedor da última edição do Festival de Brasília.

A trama é estrelada pelo xamã Regis Myrupu, que dá vida à Justino, um indígena desano que vive em Manaus junto com sua filha, Vanessa (Rosa Peixoto), que é enfermeira em um posto de saúde. Para sobreviver na cidade, ele trabalha como segurança no porto de cargas. Espremido entre o vaivém de contêineres e o racismo que perpassa sua rotina, ele sobrevive junto com suas tradições originais no microcosmo familiar construído na sua casa (onde fala sua língua materna, tukano), localizada na periferia da capital amazonense. Sua rotina é interrompida quando é acometido por uma febre que surge no mesmo período no qual um animal misterioso ataca o centro urbano.

“A ideia de fazer o filme surgiu enquanto eu gravava dois documentarios na fronteira da amazônia com o Peru, onde conheci uma família e, me aproximando deles, surgiu o desejo de fazer um filme de ficção sobre uma família que estivesse em migração. Essa coisa geracional surgiu desde o começo, por uma série de questões. As novas gerações tiveram outras possibilidades, como a Vanessa, como a chance de trabalhar em diversas funções na sociedade, algo que a geração de Justino não teve acesso. Isso, claro, num Brasil anterior às últimas eleições (2018). Me interessa também essas relações de afeto, pertencimento e como os movimentos da vida podem nos levar a outras direções e as separações se fazem necessárias. É sobre raiz e pertencimento ligado a um sentido de comunidade que parte de um núcleo familiar às vezes mais estendido”, comenta Maya Da-Rin em entrevista à Continente.


Justino (Regis Myrupu) e Vanessa (Rosa Peixoto). Imagem: Divulgação

Junto com a doença e o animal misterioso, chegam a Justino também os sonhos, que, principalmente para os povos originários da região do alto do Rio Negro, são objetos de interpretação sobre nossa realidade. Vanessa até tenta tratar a enfermidade do pai, que insiste em dizer que ela é resultado da “comida de supermercado”, que nos deixaria fracos. 

O filme se destaca pela delicadeza e assertividade de explorar, sutilmente, os conflitos que fazem parte de Manaus e de Justino. Na cidade, percebe-se o desequilíbrio entre o avanço da periferia e a natureza, ou mesmo entre o barulho dos motores e o da mata, que, inclusive, parece cantar como quem chama o protagonista. No personagem, o desequilíbrio está na vontade de se alimentar do que vem da terra e da obrigação de comprar “comida de supermercado” e, também, na busca por manter suas tradições vivas transmitindo histórias para seu neto, enquanto seu outro filho, que vive na cidade, parece não mais se interessar pela relação com sua cultura ancestral. Ou seja, é o conflito de quem se encontra dividido entre duas realidades.

“Existe um olhar que coloca os indígenas em um tempo passado, como culturas que só restam acabar porque já pertencem ao passado. Esse entendimento é de um racismo muito grande. Muitas pessoas, quando chegam na cidade, têm de lidar com essas dificuldades de encontrar um lugar e com esse conflito de, no centro urbano, ser visto como indígena de modo pejorativo. Enquanto isso, muitas vezes, na sua comunidade, ele não é mais considerado um indígena ‘original’. Isso produz dificuldades de encontrar um espaço de pertencimento. Apesar do filme ser atravessado por essa problemática, o filme não se constrói sobre isso”, frisa a diretora.

Justino caminha pela periferia de Manaus em A Febre. Imagem: Divulgação

Além da sutileza em explorar essas problemáticas, outro destaque de A febre é a sua banda sonora, elemento responsável por construir um clima quase que onírico no universo do longa, palco sobre o qual são construídos os sonhos e conflitos que atravessam Justino. Sobre a técnica, a diretora explica: “O som pra mim é bem importante na narrativa. Quando faço um projeto, pesquiso bastante. Fui pra Manaus, fiquei temporadas pesquisando locações, encontrando pessoas, ainda sem saber como seria o filme. A partir dessas experiências fui escrevendo. Passei um tempo no porto de cargas, passamos uma semana acompanhando o cotidiano do posto de saúde e das comunidades indígenas na periferia. Fui escrevendo o filme na medida em que essas temporadas iam acontecendo. Felippe Schultz (som) foi comigo numa dessas pesquisas e visitamos com o ouvido muito atento. Percebemos relações de timbres, de insetos que tinham sons parecidos com os de máquinas do porto. Pensamos sobre como, através do som, poderíamos escutar como Justino, que é atravessado por essa cidade na qual a indústria está muito perto da floresta. Esses espaços se avizinham sonoramente”.

É por isso que vim falar para vocês
Vivam com força e coragem,
Com força e coragem

Os versos acima são cantados por Rosa Peixoto ao final do filme. Ela, que junto com Regis Myrupu, teve papel também central na construção do longa. É que Maya passou meses em algumas comunidades até encontrar os atores que dariam vida a pai e filha. Ele, que foi escolhido melhor ator pelo Festival de Locarno, nunca tinha atuado. Ela tinha experiência apenas como figurante. Como o filme é falado em duas línguas, os atores tiveram participação no roteiro, deixando nele suas visões e opiniões: “O Regis e a Rosa tiveram participação ativa, pois eles tinham que estar sempre trabalhando esse roteiro. A cada dia de filmagem eles entravam mais em relação e acabamos sem exatamente um roteiro fixo, mas com uma base muito forte. Foi um processo muito surpreendente, de muita imersão e muitas horas de ensaio junto com um trabalho corporal muito forte. Foi muito importante, tanto a disponibilidade deles e a transformação das cenas. Existia uma atenção muito grande, que vem também de elementos culturais: são povos de cultura oral forte, de contação de histórias e atenção. Aprender um texto, para eles, é algo muito natural, assim como comunicar e dialogar. A gente se impressionou muito, foi um processo de grande aprendizado”, finaliza a diretora.

O longa estreia neste dia 12, simultaneamente nos cinemas e nas plataformas Net Now, Vivo Play e Oi Play.

AUGUSTO TENÓRIO, jornalista e, por vezes, cronista.

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