Artigo

O fracasso de um beatle pra debaixo do tapete

Neste 2020 que marca os 50 anos do fim dos Beatles, episódio obscuro da carreira de George Harrison é resgatado

TEXTO José Teles

22 de Setembro de 2020

George Harrison na turnê de seu terceiro álbum solo, Dark Horse, que teve uma recepção negativa

George Harrison na turnê de seu terceiro álbum solo, Dark Horse, que teve uma recepção negativa

Foto Steve Morley

[Conteúdo exclusivo Continente Online]

Um dos capítulos que parece ter sido jogado para debaixo do tapete da história dos Beatles, o massacre sofrido por George Harrison em 1974, quando fez a primeira, e última, turnê americana. Foi talvez a estrela do rock que recebeu mais matérias negativas e impiedosas, tanto sobre o disco novo, quanto sobre os shows a turnê. Neste caso, ainda mais traumático para um músico que legou vários clássicos para a música popular do século 20, dois deles em Abbey Road, aclamado álbum final do grupo, Something e Here comes the sun. Logo em seguida à saída da banda, foi responsável pelo exuberante All things must pass que, mesmo sendo um álbum triplo, foi campeão de vendagens, e galgou os primeiros lugares das paradas internacionais, com elogios quase unânimes da imprensa.

Living in the material world, o disco seguinte, foi recebido com menos entusiasmo. Boa parte das canções era boa, mas a insistência na temática religiosa, na catequização Hare Krishna, não agradou. Não dava para comparar com All things must pass, no qual muito do repertório é composto de canções rejeitadas pelos Beatles (ou seja, John e Paul). Com o sucesso solo, George Harrison ganhou o epíteto de Dark Horse (em português, o cavalo azarão nas corridas). Dark Horse é o título do seu terceiro álbum, com que Harrison forneceu à crítica o momento pela qual ela tanto esperava. Cair de pau num beatle.

Já batiam forte em Paul McCartney, pelas tolas canções de amor dos Wings, mas em 1973, tiveram que concordar, Band on the run era uma obra-prima. John Lennon vinha de dois discos brilhantes, Plastic Ono Band (1970), e Imagine (1971). Até Ringo saíra-se com um disco irretocável, Ringo (1973), com uma nada pequena ajuda dos amigos. Foi o último álbum com participação dos quatro ex-beatles (embora não no mesmo estúdio).

Eis que chega George Harrison com Dark Horse, com um repertório anêmico, sem inspiração, para cumprir tabela. Ele estava tão envolvido com Ravi Shankar e músicos indianos, que deixou o próprio álbum em segundo plano, ao mesmo tempo em que produzia Shankar Family & Friends, um álbum mais acessível de música indiana com sotaque pop. Ravi e sua orquestra, composta de vinte músicos, ensaiavam num dos salões da mansão de Harrison, que estava com turnê fechada nos EUA, começando no dia 2 de novembro, mas em outubro, já nos Estados Unidos, ainda trabalhava em Dark Horse.

Um álbum com raros momentos que acenassem para o glorioso passado de George Harrison, então com apenas 31 anos. Dark Horse proporcionou o momento mais constrangedor de um beatle em disco. A regravação de Bye Bye Love (Felice e Boudleaux Bryant), hit com os Everly Brothers. George modificou a letra e incluiu Patty, sua ex, e o atual marido Eric Clapton, desejando felicidades aos dois, porém em tom sarcástico, além de modificar o andamento da música, que soa semitonada.

A Rolling Stone o carimbou como “desastroso”. No New Musical Express, o crítico Bob Woffinden desabou toda bílis da imprensa musical inglesa em cima do até então intocável Harrison: “Não há nada mais desapontador do que descobrir que um dos nossos heróis da adolescência está cambaleando na mediocridade da meia idade. Hari Georgeson (como frequentemente se refere a si mesmo), está começando a ser visto como se tudo que tinha a oferecer na carreira solo estivesse compactado no álbum triplo All things must pass.

Misturou exegese “hare hare” com problemas pessoais do imbróglio com os outros beatles, cujos advogados procuravam desatar os laços comerciais, o que se estenderia até o final da década. Dark Horse “flopou”. Na Inglaterra, não chegou a entrar nem na parada dos 60 mais. Nos EUA, vendeu bem em pedidos antecipados. Mas não quando chegou às lojas. As faixas Ding Dong e Dark Horse arranharam as paradas, mas sumiram de vista rapidamente.

Na autobiografia I me mine, publicada em 1980 (relançado em 2017), Harrison aproveita para desabafar o fato de ter ficado à sombra de John e Paul. Não é a melhor história de sua vida. Aliás, George Harrison tem poucas biografias. A mais consistente chama-se Behind the locked door, de Graeme Tonsom, de 2013, e relançada com links que direcionam o leitor para plataformas de streaming, vídeo, e outros penduricalhos da web. Mesmo elogiado, o livro não teve muita repercussão. No final de setembro de 2020, chegou às lojas Be here now, livro de fotos, boa parte inéditas, de Barry Feinstein e Chris Murray, com prefácio de Donovan Leitch. A bibliografia sobre Harrison é muito pequena, sobretudo em relação a John Lennon ou Paul Mcartney.

AZARÃO
George Harrison depois dos Beatles esteve à frente de um dos mais importantes eventos musicais dos anos 1970, que deu início a festivais beneficentes, o Concerto para Bangladesh, mas ali estava ao lado de músicos à altura, além de blindado pela autoconfiança que All things must pass lhe conferiu. Na turnê que ia enfrentar, ele seria jogado aos leões. Estava debilitado fisicamente, muito magro, extremamente pálido. Viajaria com uma banda de bons músicos, mas quase todos com pouca estrada, a exemplo do guitarrista americano Robben Ford, então com 21 anos, que tocava com Joni Mitchell. (ele se apresentou no Recife, em junho de 2007, no projeto Oi Blues by Night).

Harrison ainda foi aconselhado a adiar a turnê. Sua voz estava muito rouca, às vezes ficava afônico, e certamente iria piorar com a uma longa série de shows que faria pelos EUA. Mas pretendia produzir um álbum duplo, e um filme, além do lucro que teria com as apresentações. O beatle místico também pensava no mundo material. Além de Robben Ford, na segunda guitarra, ele teria no seu grupo, Willie Weeks, contrabaixo, Andy Newmark, bateria, Billy Preston, nos teclados, Emil Richards, percussão, Tom Scott, Chuck Findley e Jim Horn, no naipe de metais (o baterista Jim Keltner se reuniria ao grupo nos Estados Unidos).

Na coletiva de lançamento da turnê, num hotel em Beverly Hills, George Harrison lembrou, em alguns instantes, a época das entrevistas hilárias e espirituosas dos Beatles. À pergunta sobre se tinha alguma ansiedade, respondeu: “A principal é ter perdido a voz”. Perguntaram como se sentia à véspera da primeira turnê solo: “Acho que se tivesse tido mais tempo estaria com crise pânico. Mas não tive nem tempo de me preocupar com isto”. Ele não pareceu à vontade quando lhe perguntavam sobre os Beatles: “O problema é que as pessoas querem viver no passado, se apegando a alguma coisa. Temem as mudanças”.

NOVAMENTE NA ESTRADA
A programação da turnê seria de 45 shows em 26 cidades (em algumas com duas apresentações). A entourage era composta por 71 pessoas, num avião alugado, com uma cozinha itinerante de cardápio vegetariano e comida indiana. George instalava-se num camarim com tapetes persas, almofadões indianos, e incensos. Ele enfrentaria uma concorrência forte. David Bowie, Bob Dylan e Crosby Stills Nash & Young também entraram em turnê na mesma data, todas seriam muito elogiadas, sobretudo a de Dylan.

O grande erro de George Harrison foi supor que o público vinha curtir suas novas músicas, e a música erudita indiana de Ravi Shankar. Ele continuaria um beatle até o fim da vida. Suas plateias em 1974 eram de fãs dos Beatles, que tinha acabado apenas quatro anos antes: “Achei que lhes daria outro tipo de experiência em vez de curtir Led Zeppelin pelo resto da vida”, comentou Harrison sobre a insistência do público em escutar músicas de discos do Fab Four. The Beatles, para seus integrantes, foi um casamento que continuou a existir mesmo depois do divórcio. Continuam sendo “Fab” (de Fabulous), semi-deuses.

O diretor canadense David Acomba, convidado para dirigir o filme da turnê, ficou hospedado num hotel em L.A. Estava sentando numa mesa próxima à piscina, quando virou o rosto e viu George Harrison se aproximando. Na biografia de Graeme Thoson, conta que, mesmo esperando por ele, sobressaltou-se, e exclamou: “Puta que pariu, um beatle!”. A aura beatle continuava com George independente dele. Diretor da Warner Music, Ted Templeman contou (no citado Behind the locked door), que depois de assinar contrato com George Harrison, para distribuir o catálogo do selo Dark Horse, foram almoçar num restaurante no Hollywood Boulevard: “Quando entramos todos pararam de comer, o local ficou em silêncio. Já andei com muita gente famosa, inclusive Frank Sinatra, mas nunca vi coisa igual antes”.

Na estreia, em 2 de novembro de 1974, em Vancouver, no Canadá, George Harrison foi quase um coadjuvante. Billy Preston teve direitos a três músicas, Ravi Shankar e seu grupo indiano a seis, e só na quarta canção é que o público pode escutar duas canções dos Beatles, Something e While my guitar gently weeps.

Em 2007, o produtor Giovanni Papaléo levou a imprensa para conversar com Robben Ford, no Shopping Recife, com a presença do prefeito João Paulo (PT), a quem Ford presenteou com uma guitarra Fender autografada (recebeu em troca um kit do centenário do frevo, comemorado naquele ano). Ele se sentou ao meu lado, e puxei conversa sobre como foi trabalhar com um beatle. Disse que George tinha muito bom humor, mas estava sem voz, e não fazia esforços para recuperá-la. Robben não falou sobre consumo de drogas, mas essa foi uma época em que George Harrison competiu com Scarface, personagem de Al Pacino no filme homônimo. Bebia muito, cheirava montanhas de cocaína, e fumava enormes baseados, o que não é exatamente o melhor tratamento para as cordas vocais.

Ele não queria cantar Beatles, preferia que o público curtisse a música dos seus amigos indianos. Porém, o próprio Ravi Shankar compreendeu que o público não entendia sua música, comprava ingressos para ver um beatle, que não cantava hits dos Beatles, dando preferência às novas canções de Dark Horse, um álbum que só chegou às lojas quando a turnê já havia sido deflagrada.

George teimava em não cantar mais Something. Por insistência dos músicos, que tinha convivência suficiente com ele para lhe falar às claras, acrescentou a sua canção mais bem-sucedida no setlist, contudo, modificou a letra, fazendo um trocadilho com o verbo “move”, que pode significar tanto se mover, quanto se mudar: “Se há alguma coisa no caminho, a gente se muda/e encontre um novo amor. Eu já fiz isso” (no original a letra diz “Há alguma coisa no jeito como ela se movimenta/que me atrai como nenhum outro amor”). While my guitar gently weeps virou “My guitar gently smiles” (a guitarra deixou de soluçar, para rir suavemente) In my life, de John Lennon, mudava o final. E lugar de “Na minha vida, você é o que mais amo”, virou “Na minha vida Deus é o que mais amo”.

“Se o que eles querem ver é o beatle George, então que vão assistir aos Wings”, ralhava. Chegou a agredir o público: “Não sei como está aí embaixo, mas daqui de cima vocês me parecem mortos”. Às reações contra a música indiana, ele apontou para a cítara e disse que por ela morreria, depois apontou para a guitarra, e disse que por esta não. Em alguns shows, quando terminava a apresentação de Ravi Shankar, a plateia gritava em coro “Queremos rock and roll! Queremos rock and roll!”. As críticas eram péssimas, com razão. Comparavam George Harrison com Bob Dylan, que também modificava as letras, mas não por retaliação, na verdade Dylan recriava os versos, Harrison os danificava.

Quando a turnê alcançou a Califórnia, apenas um dos oito shows teve os ingressos esgotados. A esta altura, a turnê já soçobrava feito os destroços do Titanic, entre iceberg de frieza dos fãs dos Beatles. Numa entrevista ao repórter da Rolling Stone Ben Fong-Torres, que acompanhou a turnê, George despiu-se da sua aura beatle, da fleuma britânica, e destilou sua bílis: “Olha, não forcei ninguém com um cano de revólver pra vir me ver. Não me importo se ninguém mais quiser me ver, ou se não comprar mais meus discos. Tô cagando e andando, não dou a mínima. Mas vou continuar fazendo o que sinto aqui dentro”.

Não adiantavam mel e chá para amaciar a voz. Seu canto era quase inaudível, o pó e a maconha não ajudavam. Dos 45 shows, meia dúzia, se muito, foram bons. A equipe do documentário registrou a turnê, mas não usou. Os dois últimos concertos aconteceram no Madison Square Garden, em Nova York, o primeiro teria a participação de John Lennon. Pouco antes do show, no entanto, a então namorada de Lennon, May Pang, ligou pra dizer que ele não iria, por ter sido desaconselhado por sua astróloga. O que deixou Harrison extremamente irritado: “Comecei sem ele, e termino sem ele”, seu comentário.

Depois do último show da turnê, George Harrison continuava alimentando rancores. Sobre as críticas que o arrasavam, fez o comentário sarcástico: “Tudo isso sai na urina”. Mas a gentileza permanecia com os que o cercavam. Depois da apresentação final, presenteou todos os músicos. Robben Ford contou que ganhou uma guitarra Gibson especial. E finalmente tudo acabou numa farra numa casa noturna brasileira, do empresário Ricardo Amaral, o Hippopotamus Club de Nova York, com a presença de John Lennon (liberado pela sua astróloga) e a cocaína circulando em porções generosas.

Um momento dos bastidores da turnê mostra como o beatle George continuava gentil, lírico, naquelas suas bravatas para se livrar do estigma de ter sido um beatle. Robben Ford entrou no camarim para conversar com ele. Sem falar nada, Harrison pegou um violão e apresentou uma música inédita para Ford. Para um cara com 21 anos, que cresceu com a música dos Beatles, foi uma emoção que o acompanharia pela vida inteira, me confessou Robben.

George Harrison, segundo a biografia de Graeme, desceu do avião arrasado, foi direto para sua mansão, e nem entrou logo em casa. Deu um tempo no jardim, e se sentiu perto de sofrer um colapso nervoso: “Quando voltei para a Inglaterra, as pessoas diziam que eu tinha acabado, a turnê foi a pior coisa que fiz na vida, segundo a imprensa. Teve shows fantástico, mas toda aquela negatividade era deprimente”.

Ele somente voltaria a gravar um disco que ganhou elogios gerais da crítica em 1987, o álbum Cloud nine, seu último disco solo em vida. George Harrison morreu, em consequência de um câncer, em 29 de novembro de 2001, aos 58 anos.

PS – parte das filmagens do documentário abortado foi aproveitada por Martin Scorsese no doc Living in the material world.

JOSÉ TELES, jornalista, crítico musical e escritor.

 

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